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sábado, 5 de setembro de 2009

O Poeta do Calvário

Há imensas expressões e palavras que cairam tão depressa em desuso que, hoje, só alguém com mais de cinquenta anos que tenha nascido e crescido num meio popular (analfabeto) será capaz de lembrar algumas delas. Lamento muito o facto de se ter substituído em poucas décadas registos linguísticos populares com centenas de anos. Nesse aspecto a escolarização varreu (e para muita gente não suficientemente depressa) toda uma "bio"diversidade que os escritores não tiveram tempo de perceber que era preciso preservar, pelo menos através da escrita. E não estou a pensar apenas em "botar as barbas de molho".
Na minha primeira infância havia personagens que eram estranhamente respeitadas na sua "loucura". Uma delas transfigurava-se no momento em que se punha a dizer versos à porta da taberna. Era um poeta. Dizia que não sabia donde lhe vinham aqueles versos. Falava à maneira de um ignorante para ignorantes. Muitas coisas que ele dizia e fazia "não eram dele" e, de facto, ele nunca tinha estudado e não sabia ler nem escrever. Não conhecia confortos e andava sempre sozinho. Nada tinha e nada ambicionava e com ninguém falava. Quando falava era para um público, fora disso era capaz de passar horas sentado nos degraus da igreja do Calvário, ao sol se fosse inverno e à sombra se fosse verão.
Esse singular e misterioso ancião que nunca perguntava nada, nem respondia a ninguém faz-me pensar que talvez ele fosse um génio que era poeta sem ser "à maneira de" erudito.
Ou sou eu, agora, que estou a ser louco...

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O perdão

O mundo quer o tempo
cento e vinte e oito hexavós
reconhecer fragmentos
que dizer
que ter presente
sempre para limite
restar um momento
alívio de respirar
gastar tempo
tarde é nunca acontece
o que consiste
em sermos espectáculo de ninguém
inventar a parte não menor de ontem
reflexos à escala de amanhã
a vontade intérprete do fazer tudo
faz parte do tempo da mente
acolhe franca mente
o meu pensar possível
que feliz
que elo liga ao que houver
de remoto
uns olhos vêem desde algum primórdio
chegar a perspectiva do pecado
alguma vez
a existência de perdão.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

As línguas do amor

Por favor
Fala-me todas as línguas
Do amor
Que há-de haver alguma
Que eu compreenda

Se me falares só uma
Talvez a não entenda

Se houver uma escola
De línguas do amor
Ou de amor
Ou ao menos de uma das línguas
Do amor
Eu quero aprender

O amor fala todas as línguas
Que nós desconhecemos.

sábado, 22 de agosto de 2009

Fernando Pessoa não mentia

Sem entrar em detalhes, direi, em minha modesta opinião, que toda a gente escreve com sentimento, mesmo a lista de compras. Mais ou menos sentimento, pouco importa e duvido que alguém saiba distinguir o muito do pouco sentimento. É que sentir e pensar são indissociáveis ao ponto de não haver fronteira entre um e outro. Somos capazes de pensar o que sentimos e de sentir o que pensamos.
Em certo sentido poder-se-á dizer que quem mais/menos diz que sente é quem mais mente.
Fernando Pessoa não mentia.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sinto-me feliz

Sinto-me feliz por não encontrar palavras
Desnecessárias
Por não haver socorro para as vulgares certezas
E por acreditar que é belo o dia
Que colho como fruto imperecível
De tempos que excedem todas as fronteiras
De que há memória
Sinto-me feliz porque tenho ódios e amores
Abomino todos os piratas
E todos os terroristas
No auge da batalha sinto-me feliz
Mesmo temendo perder a vida
Admiro os magnânimos.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Quando hoje me conheceste

Os meus infortúnios não cabem na minha mala de viagem
São grandes e pesados de mais para serem transportados
Só a alma tem a fatalidade de não os deixar para trás
Embora tantas vezes os mastigue e outras vomite
Isso não os degrada e só os torna o que são
Ainda mais

Não são grande coisa aliás não são coisa nenhuma
E se há verdadeiro problema é este
Quando hoje me conheceste
Ambos éramos sorrisos
Máscaras decentes de alegrias
Do que isso significa

Os meus infortúnios sempre me pareceram felizmente
Os infortúnios dos outros que temo que me aconteçam
Algo de uma tal gravidade e tão intolerável
Que a loucura se existisse seria isso
Verdadeiramente insuportável

Peço sentença aos juízes para poder dizer
Que as minhas alegrias não são diferentes
Que uns e outras não me são dados
Embora estas sejam concessões que eu finjo poder
Aqueles são grilhões que eu não mereço.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Hoje apetece-me ser vulgar

Hoje apetece-me ser vulgar
Oportunista esperto fanfarrão
Por capricho receber no dar
Hoje quero e vou ser multidão

Hoje vou desiludir-te
Chegou o momento de ser quem sou
Vulgar e não mais
Que o mais comum
Dos mortais

Hoje vou divagar
Sobre a moral da história
Há sempre a ironia à mão
De qualquer um
Para se arrogar glória
E condição
Que não tem.

terça-feira, 28 de julho de 2009

E se um dia

Há um caminho
O dia e a noite
E o infinito
Os meus pés
Pela paz
A diante
Um bando de aves
Planando
Sobre uma montanha
Nada quero
Mas quero ter-te
Em lapsos dementes
De imagem imaginada
Bandeira
Içada sobre escombros
Ao assobio do vento
Palmeira desterrada
Sonho de não ser
Na tarde sem sol
Náufraga viva
Espera
Fora do tempo
Sem margens
Nem pontes
Nem lugar
Templo às divindades de nós
À imagem ignorada
Do tempo sem voz
Amor que se sabe
De ouvir falar
Desejo ilimitado
De não desejar
Sem caminho de ir
Nem de regressar
Prisioneiro
Sem porta de entrada
Cuja saída procura
Sem descanso
Liberdade perdida
Em sonhos reconhecida

Corpo nos braços
Que não salvou
Espelho angular
Que não evitou.