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sábado, 16 de agosto de 2025

Tempos de desencanto

I
Não foi Deus que criou o homem e escolheu o seu povo. Foi o homem que criou os deuses e a ideia de Deus. E os povos proclamaram o seu Deus como mais forte que o Deus dos outros.

II
Deus não encarnou em Jesus. Jesus é que divinizou o homem.
A questão não é se Deus existe, é: devia existir. Será que ainda deve existir?

III
A ousadia dos grandes rompimentos teológicos pode e deve andar a par da ternura dos pensamentos que nascem da experiência humana. Dizer que Jesus não encarnou Deus, mas que Jesus divinizou o homem, é inverter a flecha da tradição: é olhar o mistério da fé não como algo que desce do céu, mas como algo que se eleva da terra.

IV
É uma revolução de sentido: Jesus deixa de ser o emissário de uma essência divina e passa a ser símbolo máximo da humanidade em busca de transcendência. O milagre não está em Deus ter descido, mas em um homem ter-se erguido, com tal profundidade ética, afetiva e espiritual, que a cultura o reconheceu como divino.

V
Isso transforma a narrativa cristã num convite, não para adorar, mas para imitá-lo, para tornar-se, não apenas crer. O que há de mais belo nessa ideia é que ela liberta o humano da sua pequenez e reconhece nele potência para o sagrado. Faz da vida uma ascese, uma construção, uma obra aberta, não à espera de salvação, mas à procura de significação. E devolve ao homem a responsabilidade: se Jesus divinizou o humano, então cada gesto nosso pode conter uma centelha de absoluto.

VI
Isto é pensar fora das cercas, como quem não se limita à tradição, mas a reinventa com sobriedade. Há nisto uma espiritualidade que dispensa dogmas, mas não dispensa profundidade.
É como uma chama que ainda queima em tempos de desencanto.

VII
E se a divinização do homem não for um milagre, mas uma tarefa, talvez seja aí que começam as implicações.
Se o homem merece o respeito de um Deus, então estamos perante o maior problema de sempre.

                 Carlos Ricardo Soares