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terça-feira, 9 de setembro de 2025

O poder do olhar

As situações de pobreza são muito variadas e cada pobre vive a sua situação de um modo diferente dos outros. Por outro lado, poder-se-ia dizer que cada pobre é olhado de um modo diferente dos outros, não só por pessoas diferentes, mas também pela mesma pessoa.

O modo como se é olhado pode ser determinante, sobretudo quando se trata de uma pessoa em situação de pobreza ou indigência. Tal como ser olhado de certo modo pode ser demolidor, quem olha também pode estar a ser demolido pelo sentimento de aversão às pessoas em situação de pobreza.

É muitas vezes negligenciado que a pobreza não é uma categoria homogénea, e cada pessoa vive-a com uma história, um contexto e uma dor que são só seus.

A pobreza tem rostos diferentes. Um jovem sem acesso à educação vive a pobreza de forma diferente de um idoso com reforma mínima. Uma mãe solteira que trabalha em dois empregos precários enfrenta desafios distintos de um migrante sem documentos. Há quem esteja em pobreza temporária, por perda de emprego, e quem viva em pobreza estrutural, há gerações. Reduzir tudo isso a “os pobres” é apagar a complexidade e a humanidade de cada situação.

É por isso que soluções genéricas, como subsídios padronizados ou programas de formação em massa, muitas vezes falham. O que funciona para um pode ser inútil ou até prejudicial para outro. O verdadeiro combate à pobreza exige respostas personalizadas, construídas com base na escuta e na confiança.

Na prática, as soluções deveriam passar por um diagnóstico individual. Por exemplo, inquirir não apenas “quantos filhos tens?” ou “qual o teu rendimento?”, mas “como chegaste até aqui?” e “o que te impede de avançar?”. Por planos flexíveis que se adaptam à realidade de cada pessoa, com metas e ritmos diferentes. E representação ativa, porque os próprios beneficiários devem ter voz na construção das soluções, como parceiros e não apenas como “alvos” de políticas. E devolver a capacidade de escolher como viver, onde trabalhar, o que sonhar. É talvez o maior gesto de justiça social que podemos oferecer. A pobreza não é só falta de dinheiro, é falta de escolha.

A forma como olhamos para “o pobre” não é apenas diversa entre pessoas diferentes, mas também instável dentro de cada um de nós. O mesmo indivíduo pode olhar para uma pessoa em situação de pobreza com compaixão num dia, com indiferença noutro, e até com irritação noutro ainda. Isso revela o quanto a nossa perceção é moldada por contexto, humor, ideologia, e até pelo modo como o outro se apresenta. Quantas vezes o olhar sobre o pobre é uma projeção dos nossos próprios medos, medo da fragilidade, da perda, da impotência?! Podemos sentir empatia por alguém que “parece esforçado”, mas rejeitar outro que “parece não querer trabalhar”, mesmo sem conhecer a história de nenhum dos dois. A forma como a pessoa se veste, fala ou se comporta influencia fortemente a nossa reação, como se a dignidade fosse algo que se “merece” pela aparência. Já aqui relatei uma história de um mendigo que só começou a ter sucesso quando se fez passar por uma figura importante que caiu em desgraça.

Não existe “o pobre” como figura única. Existe uma multiplicidade de experiências, e uma multiplicidade de olhares, cada um carregado de julgamentos, afetos, preconceitos e contradições. E reconhecer isso é o primeiro passo para uma abordagem mais justa e humana.

Aprendêssemos nós a reconhecer os próprios preconceitos e oscilações internas. A dar espaço para que pessoas em situação de pobreza contem as suas histórias, sem filtros nem estereótipos. A ouvir sem tentar encaixar o outro numa categoria, acolhendo a sua singularidade.

Quando alguém em situação de pobreza é olhado com respeito, com atenção verdadeira, isso pode devolver-lhe algo essencial, a sensação de existir, de contar, de ser digno.

Por outro lado, o olhar que evita, que atravessa sem ver, ou que carrega desprezo, reforça a exclusão. É como se dissesse: “Tu não és parte do mundo que importa.”

E o mais inquietante é que não é preciso dizer nada, o corpo, os olhos, o silêncio já comunicam tudo.

Pessoas em situação de rua, por exemplo, relatam frequentemente que o pior não é o frio ou a fome, mas serem ignoradas. Passamos por elas como se fossem parte da paisagem urbana, um banco, uma sombra, um ruído. E isso fere mais fundo do que qualquer carência material.

Há olhares que curam. Um gesto de atenção, um cumprimento, um “bom dia” dito com sinceridade pode ser o primeiro passo para reconstruir pontes. E quando esse olhar vem acompanhado de escuta, de presença, de disponibilidade, então, já não é só um olhar, é um ato político e afetivo.

Sempre se pode trabalhar o poder do olhar, na escola, na rua, nos serviços públicos. Podemos sempre tentar devolver visibilidade a quem foi apagado.

Às vezes, tudo começa com um olhar que diz: “Eu vejo-te.”

Outro ponto, que quase nunca é discutido é que a aporofobia não destrói apenas quem é alvo, mas também quem a sente. O olhar de rejeição, quando repetido, pode corroer a própria humanidade de quem o lança.
O sentimento de aversão aos pobres pode gerar desconforto moral, tensão entre valores éticos (como compaixão e justiça) e atitudes excludentes podem gerar culpa, ansiedade ou racionalizações defensivas. Ao negar a empatia, o indivíduo fecha-se ao vínculo humano e isso empobrece a sua capacidade de sentir, de se conectar, de crescer. A prática constante de rejeição pode levar à indiferença generalizada, tornando o sujeito menos sensível não só à pobreza, mas a qualquer forma de sofrimento.
Estou convicto de que muitos dos que rejeitam os pobres o fazem por medo inconsciente de se tornarem pobres, e esse medo, não enfrentado, pode gerar comportamentos obsessivos, consumismo compulsivo ou rigidez ideológica.
No fundo, o olhar que rejeita o outro está muitas vezes a rejeitar algo dentro de si, a fragilidade, a vulnerabilidade, a possibilidade de queda. E isso pode ser devastador, porque impede o sujeito de se reconciliar com a sua própria condição humana.
Assim sendo, se o nosso olhar nos transforma, talvez valha a pena pensar em como podemos transformá-lo.
Talvez curar o modo como olhamos tenha o efeito de curar o modo como vivemos.

                  Carlos Ricardo Soares