Blogs Portugal

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Deixar o mundo seguir

A última vez que perdi um comboio

Teria gostado de saber que era o último

E que no dia seguinte não haveria outro

Com pior sorte

A gare de súbito silenciosa

Sem gente e eu

No frio inóspito

Até os pensamentos eram cães

E os cães confusos

Na noite cerrada

Atiçados contra os vultos sem refúgio

Uns dos outros

Com uma raiva de ladrar danada

Aos comboios inventados para isto

Ao fim de mais de quinhentos quilómetros

Para onde tinha viajado meses

Senão anos

Para estar no funeral de amigos

Dos anos sessenta

Que eu esperava num banco

Que há em todas as estações

Com mil nomes e mil rostos diferentes

Que coincidem com o que dizem ter sido

O fim e o começo de tudo

Em finisterra

Quando o comboio apitou

Já era tarde

E se me soergui

Num assomo de vida

Foi para vê-lo por um momento

A afastar-se veloz e sem alarde

Até desaparecer

Onde as linhas paralelas se encontram

Teria gostado de me corresponder

Com essa dor imerecida

Mesmo sendo minha

Escrever-lhe intermináveis cartas

Na vã tentativa de obter resposta

Do que sinto

Por tanto amar

Teria gostado de acreditar

Que há mais do que uma chave

Para sair sem entrar

Noutro labirinto

De fantasias

De estações vazias

Aonde nunca cheguei a tempo

Como se tivesse planeado

Que era melhor assim

Ter todo o tempo 

Para mim.