terça-feira, 21 de dezembro de 2021
Devia Haver Deus
Por tudo e por nada
Devia haver Deus
Mas não
Não existe
E isso chega a ser
Muito mais triste
Do que saber
Que Deus não pode ser
O que é.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
Para nunca mais
E foi assim que eles chegaram
Esqueletos barbudos
De olhar alucinado
Sobretudo de sobretudos
Sem memória de quem eram
Marinheiros
Que não sabem que o foram
De uma embarcação
Que os pintores encalharam
No poente mais triste
Que a saudade tem
De mastros tão altos
Que se quebraram
Contra a abóbada celeste
De velas rasgadas pelos vendavais
Foi assim que eles foram
Para nunca mais
Nos versos de fumadores de abismos
Que adivinham o destino
Em espreguiçadeiras suspensas
Do cachimbo.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Deixar o mundo seguir
A
última vez que perdi um comboio
Teria
gostado de saber que era o último
E
que no dia seguinte não haveria outro
Com
pior sorte
A
gare de súbito silenciosa
Sem
gente e eu
No
frio inóspito
Até
os pensamentos eram cães
E
os cães confusos
Na
noite cerrada
Atiçados
contra os vultos sem refúgio
Uns
dos outros
Com
uma raiva de ladrar danada
Aos
comboios inventados para isto
Ao
fim de mais de quinhentos quilómetros
Para
onde tinha viajado meses
Senão
anos
Para
estar no funeral de amigos
Dos
anos sessenta
Que
eu esperava num banco
Que
há em todas as estações
Com
mil nomes e mil rostos diferentes
Que
coincidem com o que dizem ter sido
O
fim e o começo de tudo
Em
finisterra
Quando
o comboio apitou
Já era tarde
E
se me soergui
Num
assomo de vida
Foi
para vê-lo por um momento
A
afastar-se veloz e sem alarde
Até
desaparecer
Onde
as linhas paralelas se encontram
Teria
gostado de me corresponder
Com
essa dor imerecida
Mesmo
sendo minha
Escrever-lhe
intermináveis cartas
Na
vã tentativa de obter resposta
Do
que sinto
Por
tanto amar
Teria
gostado de acreditar
Que
há mais do que uma chave
Para
sair sem entrar
Noutro
labirinto
De
fantasias
De
estações vazias
Aonde
nunca cheguei a tempo
Como
se tivesse planeado
Que
era melhor assim
Ter todo o tempo
Para mim.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
Ciências da vida, ciências humanas
Penso na frustração que atingirá qualquer cientista por não
poder operacionalizar o seu conhecimento e a sua tecnologia, incluindo a IA,
para propor à comunidade científica internacional uma lei do bem e do mal, em
que, o bem fosse a vida e o mal fosse a morte. Reconhecer que, na essência e
nos fins, todas as ciências têm em comum serem ciências do Homem, ciências
humanas, e todas serem motivadas e justificadas pela necessidade e pelo valor da vida e das ciências (da vida).
O que fundamenta o direito e correspectivo dever de respeito
pelo indivíduo humano também fundamenta o dever de cada indivíduo humano, e
todos em geral, respeitar tudo aquilo que não é sua autoria e que tem
relativamente ao Homem existência independente, como acontece com a natureza, incluindo a humana.
O facto de dependermos dessa natureza e não o contrário, confere-nos
alguma legitimidade baseada na necessidade física e biológica de sobrevivência.
Não nos é possível respeitar a integridade daquele mundo
exterior, físico, biológico, de que dependemos visceralmente, vitalmente. Mas
é-nos possível, é desejável e imperioso, moral, diria até, imperativo
categórico, reduzir ao máximo os efeitos nefastos e devastadores da utilização,
exploração, que fazemos dos recursos naturais, se não pudermos evitar
completamente os efeitos, nocivos e irremediáveis, dessa utilização.
Nada de matar, como princípio. Nem pessoas, nem animais, nem
plantas.
O mais que se pode permitir, porque nada se pode fazer, por
mais que nos custe, é ver morrer o que não se pode salvar.
A inteligência do homem, quanto a isto, historicamente, delegou todos os
poderes em Deus, que ainda não resolveu nenhum dos problemas, como seria de
esperar por um homem inteligente. O homem não é inteligente. Pelo menos não é
inteligente no sentido de ser capaz de "ver" para além daquilo para
que é dotado, ou naturalmente apetrechado.
Se o homem é o diabo, ou deus, o que constato é que muitos
estão dispostos a admitir que seja o diabo e ninguém esteja minimamente
inclinado sequer a pensar que seja deus. Isto diz muito sobre o que pensamos a
próprio respeito, mas não diz nada sobre o que a natureza do homem é, ou, por
outra, sobre quanto do homem é natureza e nada mais do que a natureza a seguir
os seus rumos irreversíveis.
Ninguém, senão o homem, se queixa de as coisas não serem de
um certo modo.
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