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quinta-feira, 28 de abril de 2022

A memória que amamos

Como dizer o que não sabemos

Pensar o que ignoramos

Contar o que não passamos

Sem ser em romance

Do que guardamos

Que sendo saga nossa

Ou não sendo a nossa

Gostávamos que fosse

Porque nenhuma paisagem substitui

A memória que amamos

Dos sonhos

Do que acreditávamos ser

Maior que o mar

E mais belo do que se pode contar

Nos roteiros da história dos outros

Na saudade de algum momento

Do que é possível desejar

Nos mapas

Outrora para nós legíveis

E agora cada vez mais desbotados

Embora muito mais inteligíveis.

 

terça-feira, 26 de abril de 2022

A vida é isso

Um problema subsiste na nossa cultura que, mais ou menos tacitamente, opõe artes e humanidades a ciências, não tanto porque umas contestem as outras, mas sobretudo porque umas veem as outras numa perspectiva não suficientemente compreensiva, ou mesmo redutora, para já não falar dos pruridos de estatuto ou dos preconceitos de ambos os lados, como se o que estivesse em causa fosse um critério de validade/verdade, independentemente de qualquer perspectiva ou critério de valor.

As coisas apresentam-se, normalmente, ou tradicionalmente, como se houvesse áreas culturais, discursivas, retóricas, expressivas, representativas, performativas, estéticas, lúdicas, artísticas, linguísticas, literárias, poéticas, imagéticas, icónicas, musicais, histriónicas, audio-visuais..., éticas, morais, religiosas, jurídicas, económicas..., claramente delimitadas das áreas do pão-pão, queijo-queijo, da análise quantitativa da realidade física e química medida e mensurável e que é praticamente toda a realidade, incluindo a referida anteriormente. A aplicação do método científico, aliás, não está limitada às realidades físicas stricto sensu e as ciências sociais e humanas são exemplo disso. Ou seja, tudo o que é cultura (arte, expressão, conduta, comportamento, acção, movimento, som, conhecimento, significado, comunicação, norma, crença...) está sob a alçada da ciência, do método científico, incluindo Deus.

Mas não pode ser reduzida a isso e quem tentar fazê-lo incorre em erro crasso, até aos olhos do mais ignaro.

Em certo sentido, a ciência também não escapa à alçada de Deus e, em geral, de todas as manifestações de cultura. O problema não é simplesmente um problema de rivalidade entre a ciência e as artes, religiões, políticas, ideologias, sistemas de adaptação e de integração da realidade social e do próprio modo de hierarquização social dos valores morais e patrimoniais.

O problema é fundamentalmente de ordem existencial, ou, se quisermos, de ordem moral, do indivíduo como última e irredutível instância do valor, dos valores, mesmo quando adopta e segue e se identifica e se conforma e respeita e cultua esses valores.

Assim, o problema não está na ciência ser ciência, ou na arte ser arte, mas no cientista e no artista serem indivíduos, humanos, personalizados, únicos, com uma história e uma representação individual das experiências e um sentimento e mundivisão próprias. Nestas, a própria ciência e artes mais não são do que experiências, entre outras.

O problema existencial é o problema do que fazer com aquilo que sabemos, ou julgamos saber. E este problema, se não é insolúvel, é, pelo menos, o verdadeiro e único problema da vida de cada um, ou seja, a vida é isso.

 

sábado, 23 de abril de 2022

Lua sobre os destroços eternos

Aquilo a que chamamos realidade

A lua sobre os destroços eternos

Que fumegam

Arrancados das unhas sujas

De ferrugem e pólvora

Das explosões

Que incendeiam a noite

Dos imortais

É veneno que se infiltra

No coração dos inocentes

E obnubila para sempre

Como uma maldição inconcebível

A que não escapará

Nenhum dos seus pensamentos

Por mais lembranças que tenhamos

Dos bons tempos

Em que não conhecíamos os inimigos.


domingo, 17 de abril de 2022

Mediatismo e valor

É desmoralizador constatar que a popularidade e a influência e o papel de referencial de valores de inúmeros vultos, que aparecem nos meios de comunicação social, desde pimbas a políticos, passando por ícones das indústrias de lavagem de dinheiro e de fugas aos impostos, até chefes de Estado que apostam tudo na morte e na destruição do alheio, não se deve ao mérito nem à bondade do que dizem, ou do que fazem, nem do que representam, mas, pelo contrário, o que dizem, o que fazem e o que representam torna-se socialmente relevante, e é seguido por adeptos e imitadores, por serem dessas figuras mediáticas e provir delas.

O mediatismo e a visibilidade da popularidade impõe-se como critério de valor e de mérito e não o contrário, como seria de esperar.

E isto é muito preocupante.

Tem muito a ver com a propalada inversão ou crise de valores.

Não é por seguirem valores associados à prática das virtudes de pensar e de ajuizar e de agir, segundo critérios de sabedoria e de prudência e de sã e informada convivencialidade social e cultural, porque isso está fora dos rituais primitivos dos seus correligionários.

Mas o mediatismo confere à ignorância e à grosseria um estatuto social que é seguido por multidões de fanáticos e torna-se exemplo, valor sufragado por muita gente que, à falta de outros critérios ou referenciais críticos, legitima exercer e manifestar o poder de facto que o ruído, as claques e a estupidez dos rebanhos revelam. Como se ser mediático, ou ser bem pago, fosse alguma garantia de idoneidade e do que deve ser imitado e valorizado.

 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Não há causas do que não acontece

Voltaire era demasiado intelectual para a minha adolescência de índole beata e sentimental, suspeitando, mais do que acreditando, que o homem pudesse ultrapassar-se a si próprio, como se alguma coisa o possa fazer, ou isso alguma vez tivesse acontecido. Mais do que as ideias, na minha adolescência, eu trabalhava as palavras como um obstáculo real, como uma barreira que se levantava entre os olhos e o mundo visível, não como se ocultassem, mas como se, estranhamente, denunciassem a existência de mundos invisíveis, não porque fossem objectivamente invisíveis, mas porque não estavam ao alcance dos meus olhos e do meu pensamento. Mas Voltaire era demasiado lúcido para quem estava de olhos fixos na árvore e não conseguia ver a floresta. Eu lia-o e tinha a impressão de que ele falava da floresta sem falar das árvores. Nunca desisti de pensar que o defeito devia ser meu. E não esqueci algumas metáforas com que ele dizia o que pensava. Em parte, porque elas vinham em meu auxílio, sem que lhes pedisse nada, nos mais inadvertidos momentos, como se quisessem fazer-me compreender e apreciar o seu alcance. Estou a pensar no “Cândido”.

A primeira vez que o li, com o despeito e a desconfiança que me mereciam os romancistas e os poetas e os panfletários, e outros que tais, não vi mais do que um exercício de imaginação e de criatividade para impressionar, uma espécie de malabarismo de um tribuno repentista e imaginativo. Mas, curiosamente, Voltaire, a meus olhos, não pretendia e não fazia nenhum esforço, antes pelo contrário, para parecer outra coisa, como se me advertisse de que não me queria convencer do contrário.

Pois bem, Voltaire escrevia com o acerto e a desenvoltura com que escrevem os que têm uma visão lúcida daquilo sobre que escrevem. É como quando se domina um assunto e se está à vontade para falar sobre ele, qualquer que seja a questão colocada.

Uma das coisas que, frequentemente, lembro de Cândido, de Voltaire, porque sempre fiquei a pensar nisso desde a minha adolescência, é o problema do melhor dos mundos possíveis. E tenho-me deparado com a ideia de que Leibniz, que Voltaire satirizava, estava a pensar bem.

Aliás, Voltaire, ao dizer que “A História serve para provar que tudo pode ser provado com ela”, parece estar a concordar com Leibniz, embora este talvez dissesse, de outro modo, por exemplo, que tudo o que pode ser provado aconteceu e que não poderia acontecer de outro modo, ou que não há como provar que poderia ter sido diferente.

Voltaire sabia, no entanto, e nós também, que nem só o que aconteceu pode ser provado. Salvo erro, o sarcasmo dele visava esta banalidade humana de trágicas implicações.

Sem embargo, digo eu, de que não há causas do que não acontece.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Agressão, defesa e contra-ataque

Não conheço maior maldade nem maior perversidade, pela monstruosidade dos intentos, mas mais ainda pela determinação e escolha do poder de causar dano e destruição e morte gratuita, sobretudo desencadeando um fenómeno de violência de imensas dimensões, antecipadamente admitido como possível e desejado e promovido, tendente a abalar os alicerces da organização social e política e económica, sem sequer ter o ensejo de tirar proveito disso, dizia eu, não conheço maior nojo do que alguém iniciar uma guerra.

E é-me tão odioso, tão revoltante e insuportável que alguém o faça que, enfrentar um tal inimigo, se torna o mais nobre e glorioso dos feitos.

Mas, até por assim ser, por a guerra desencadear mecanismos sociais de reorganização e de defesa e contra-ataque, que mobilizam grupos e organizações cada vez mais alargados, devendo atingir a eficácia necessária, desencadear uma guerra é uma decisão de incomparável responsabilidade e gravidade.

De positivo, ou tolerável, não tem nada. Censurabilidade máxima. Intolerância máxima.

Quem inicia uma guerra dá causa e terá que assumir a responsabilidade, não só da guerra que faz, mas também da guerra que lhe for movida. Esta sim, é uma guerra justa, honrosa e valente para os seus militares. E será gloriosa, ainda que não totalmente vitoriosa. 

Quando alguém inicia uma guerra, inicia uma guerra má, desumana, injusta, odiosa. 

Quando tocam os clarins dos exércitos de defesa e contra-ataque, o que acontece é uma grande epopeia, de inesquecíveis guerreiros, por uma causa sublime e magnânima, contra soldadesca desprezível, sem sentido de honra nem brio militar, cuja coragem e valentia é despejar explosivos a esmo sobre casas e gente desarmada, sem sequer pensarem nas consequências.

Mas, também por assim ser, quem inicia uma guerra não deixa de o fazer sob os auspícios de uma propaganda que apresenta a agressão como uma defesa ou legítima defesa, ou, no mínimo, de excesso de legítima defesa, para incutir ânimo aos profissionais do tiro a eito.

E isto agrava ainda mais a culpa de quem toma a decisão e dá as ordens com a coragem de quem está à distância, talvez acreditando que, quem começa a guerra pode pará-la quando quiser, como se estivesse num filme violento, em que tudo lhe corre mal e a violência se volta contra si.

E torna muito simples o trabalho de quem tiver de o julgar e de o condenar.

Mas a parte difícil de o combater, por fases, pacientemente, dolorosamente, com frentes e retaguardas sucessivas, sem perder a cabeça, essa parte é a que dá razão à história e pode dar sentido à vida.

Como um problema que não se pode deixar de resolver.

 

domingo, 3 de abril de 2022

Dialogar com quem não quer ouvir

Falar em dialogar já é colocar o problema num plano muito elevado de cultura e de civilização. Há coisas, ou temas, ou áreas culturais, afiliações, bandeiras, acerca das quais o diálogo é praticamente impossível, não por causa dos assuntos, mas por causa das pessoas. Em princípio, poderíamos dialogar sobre qualquer tema ou problema, diferendo, conflito de interesses, ou litígio. Mas isto requer uma preparação e uma cultura de convivencialidade e de aceitação de convenções e de mecanismos heterocompositivos das disputas que, parece-me, nenhum indivíduo está em condições de exercer, senão através de estruturas tutelares, institucionalizadas para esse fim e às quais essa competência seja reconhecida positivamente, normativamente e, ainda assim, sem prejuízo da moral individual, quando funciona como última instância.
Muitas vezes o diálogo é uma chusma de provocações e de desconversas, um não diálogo, de que é possível extrair algumas conclusões, sobretudo nos casos em que os dialogantes não estão, nem querem, pensar da mesma maneira, ou estar de acordo com uma linha de argumentação, ou estilo de questionamento, mormente quando se pelam em não reconhecer nenhuma das alegações ou razões da outra parte.
Se o diálogo for um travar-se de razões no plano académico, ainda é possível alguma consensualidade em torno da ciência e de teorias científicas, desde que estas não ponham em causa os interesses relevantes de alguém com poder.
Mas o diálogo não é, nem tem de ser, um litígio ou uma confrontação entre pessoas que não querem estar de acordo em nada.
Pelo contrário, fora das arenas dos gladiadores, normalmente, é pelo diálogo que as pessoas descobrem afinidades, interesses e ideias comuns e novidades de que nem sequer suspeitavam. Pelo diálogo aprendem o que antes não sabiam, encontram o que desconheciam, trocam informações, mais ou menos codificadas, que não trocariam de outro modo. Pelo diálogo, falam, formulam, organizam ideias, pacotes de significação, para elas próprias e para os outros, e escutam, tentam decifrar, compreender os outros através dos recursos próprios, das representações próprias daquilo que é formulado pelos outros. Pelo diálogo podem ser seduzidas ou avisadas, perder a inocência ou visitar cidades invisíveis.
Pelo diálogo, poderíamos continuar a sonhar, por exemplo, com uma democracia política que não seja pervertida pelo dogma das maiorias demográficas, nem pelo controlo do poder económico-financeiro.
Há barreiras para o diálogo, ou que se levantam ao diálogo, ou então para ocorrer diálogo (como em quase tudo na vida) é preciso mais do que querer.
A esfera da vontade, ou do capricho, por exemplo, de uma criança de dois anos, estabelece uma realidade respeitável, não em relação ao que é ou não é verdade, mas em relação ao que ela quer, ou não quer, gosta, ou não, está ou não “de acordo”, entendido aqui no sentido da satisfação do seu “interesse”.
A verdade, a moral, o direito, o bem comum, podem e devem ser objecto de diálogo, como tudo o mais, mas não é como tal, como problemas académicos ou filosóficos, que tocam a maioria das pessoas.
Na prática, os indivíduos, os grupos, os clubes, as religiões, os partidos, as tribos, as confrarias, acreditam naquilo que querem e tendem a considerar verdadeiro e justo o que lhes for favorável e não o contrário.
Até eu acredito, sem que isto me seja favorável, que o Luís XIV acreditasse que era rei por instituição divina e que a maior parte dos clérigos, incluindo o papa, todos os dias invocassem isso nas suas orações.
Mas não acredito que alguém pudesse dialogar com o rei ou com o papa sobre a hipótese de tal não ser verdade e, muito menos, de ser uma retumbante falsidade e, menos ainda, de ser uma mentira e, de todo, uma fraude.