Mel
não dorme
Sal acorda
Mel faz um balanço da sua vida
tem a percepção de que viveu
obcecada
com sexo comida bebida guloseimas
esconderijos sombras e
penumbras
mais do que ações e intervenções sociais
como se tivesse vivido dentro
de um filme
de uma narrativa destituída de outros valores que não fossem o
afecto
o erotismo a sensualidade a gula
enfim todos os pecados
tudo o
mais que saísse disso lhe parecera sempre aborrecido
e insuportável
entregava-se de preferência a devaneios sem fim
e procurava livros que lhe
alimentassem essa espécie de vício
passou por todas as dependências de quem
busca
o prazer antes de tudo
e nunca se libertou de nenhuma
nem quando corria
perigo de vida
e o médico alertava
de D. Quixote
Mel nunca teria a alucinação
do cavaleiro corajoso e valoroso
considerava essa faceta desinteressante
Mel
não tinha nenhuma espécie de megalomania
e nunca aspirara a outra grandeza
que
não fosse todas as formas de prazer
com o tempo
tornou-se colecionadora de
receitas de prazer
e se dedicava algum tempo a isso
e a hierarquizá-las
era em
vista do prazer
Mel não sentia prazer nela própria
nunca pensaria nem diria
como o poeta
“sinto-me confortável e feliz comigo próprio”
a felicidade e o
prazer eram exteriores
estavam em coisas e pessoas
dentro dela havia a
carência
o desejo a fome
a paixão o vício
e sentia raiva
sempre sentiu por haver tantos interditos
tantas proibições
tantos limites
tantos
entraves
tantas obstruções
Mel achava que a cultura era uma tentativa de dar
espaço a algo
mais do que regras de conduta e objetivos económicos.