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quinta-feira, 7 de abril de 2022

Não há causas do que não acontece

Voltaire era demasiado intelectual para a minha adolescência de índole beata e sentimental, suspeitando, mais do que acreditando, que o homem pudesse ultrapassar-se a si próprio, como se alguma coisa o possa fazer, ou isso alguma vez tivesse acontecido. Mais do que as ideias, na minha adolescência, eu trabalhava as palavras como um obstáculo real, como uma barreira que se levantava entre os olhos e o mundo visível, não como se ocultassem, mas como se, estranhamente, denunciassem a existência de mundos invisíveis, não porque fossem objectivamente invisíveis, mas porque não estavam ao alcance dos meus olhos e do meu pensamento. Mas Voltaire era demasiado lúcido para quem estava de olhos fixos na árvore e não conseguia ver a floresta. Eu lia-o e tinha a impressão de que ele falava da floresta sem falar das árvores. Nunca desisti de pensar que o defeito devia ser meu. E não esqueci algumas metáforas com que ele dizia o que pensava. Em parte, porque elas vinham em meu auxílio, sem que lhes pedisse nada, nos mais inadvertidos momentos, como se quisessem fazer-me compreender e apreciar o seu alcance. Estou a pensar no “Cândido”.

A primeira vez que o li, com o despeito e a desconfiança que me mereciam os romancistas e os poetas e os panfletários, e outros que tais, não vi mais do que um exercício de imaginação e de criatividade para impressionar, uma espécie de malabarismo de um tribuno repentista e imaginativo. Mas, curiosamente, Voltaire, a meus olhos, não pretendia e não fazia nenhum esforço, antes pelo contrário, para parecer outra coisa, como se me advertisse de que não me queria convencer do contrário.

Pois bem, Voltaire escrevia com o acerto e a desenvoltura com que escrevem os que têm uma visão lúcida daquilo sobre que escrevem. É como quando se domina um assunto e se está à vontade para falar sobre ele, qualquer que seja a questão colocada.

Uma das coisas que, frequentemente, lembro de Cândido, de Voltaire, porque sempre fiquei a pensar nisso desde a minha adolescência, é o problema do melhor dos mundos possíveis. E tenho-me deparado com a ideia de que Leibniz, que Voltaire satirizava, estava a pensar bem.

Aliás, Voltaire, ao dizer que “A História serve para provar que tudo pode ser provado com ela”, parece estar a concordar com Leibniz, embora este talvez dissesse, de outro modo, por exemplo, que tudo o que pode ser provado aconteceu e que não poderia acontecer de outro modo, ou que não há como provar que poderia ter sido diferente.

Voltaire sabia, no entanto, e nós também, que nem só o que aconteceu pode ser provado. Salvo erro, o sarcasmo dele visava esta banalidade humana de trágicas implicações.

Sem embargo, digo eu, de que não há causas do que não acontece.