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domingo, 5 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVI

Hilário: se o moinho falasse, o que nos diria?!

Amiga: assim o soubéssemos interpretar, porque ele é um documento que fala à maneira dos documentos.

Hilário: ele parece dizer que viemos depois, com passos alheios, e que, sem pedir licença, nos sentamos onde o silêncio de outros repousava.

Amiga: talvez depois de terem rido alto ou chorado em segredo, talvez antes de perderem a memória.

Hilário: se houvesse um rascunho da história deste moinho que alguém tivesse encontrado...

Amiga: mesmo escrito por mãos que nunca souberam escrever, quem sabe?!

Hilário: ou rasgado por mãos que nunca souberam ler, quem sabe?!

Amiga: seríamos sempre confundidos com os que passaram por aqui sem entenderem o que é este lugar.

Hilário: a fragilidade está em quem pensa, em quem sente, em quem hesita. O mundo exige pressa e firmeza, depressa e bem, enquanto tu, querida amiga, tentas caminhar com cuidado, não com receio de tropeçar, mas como quem pisa em folhas secas sem querer fazer barulho.

Amiga: sinto que os pensamentos, neste lugar, pesam mais do que os passos, como se estivessem a ser disputados por forças contrárias umas às outras, e cada palavra tivesse de ser arrancada de memórias que são de outras pessoas.

Hilário: talvez aquela águia, ou será um grifo?, esteja a observar-nos e a ler o nosso pensamento através do nosso embaraço.

Amiga: não sei se sou eu que toco de mais nas coisas, ou se são as coisas que tocam de mais em mim.

Hilário: a mim dói-me não tocar em nada.

Amiga: agora não consigo tirar os olhos daquela águia, ou grifo, que não tira os olhos de nós.

Hilário: talvez nos esteja a ver de outro mundo, ou seja um sinal de que atingimos o limite, a fronteira que separa a vida da morte.

Amiga: como se houvesse fronteira entre o que é e o que já não pode ser.

Hilário: como se este lugar fosse a margem, a última, de algo que não veremos.

Amiga: não sei. Sinto que o tempo aqui parece ter parado para nos deixar pensar.

Hilário: ou para nos deixar partir.

Amiga: mas partir para onde?

Hilário: talvez não seja partir. Talvez seja só deixar de procurar. Ou deixar de fugir.

Amiga: então esse grifo, ou águia, veio dizer que já não precisamos de andar?

Hilário: ou que já não podemos. Que o caminho acabou e o que resta é o silêncio. E que o silêncio, amiga… também é uma forma de estar vivo.

Amiga: ou uma forma de estar quase. Quase…Talvez seja isso que somos: quase a partir, quase a ficar, quase a entender.