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segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

A literatura é uma arte

A literatura é uma arte, cujo limite é a imaginação e a inteligência e o conhecimento, o engenho, a loucura, de expressar por palavras o humano, o científico e o aberrante, o natural, a natureza, não apenas segundo os cânones científicos da ordem, de que seria, aliás, uma cópia ou reprodução, mas no que essa natureza, supostamente ou apenas por hipótese, "representa" para o escritor, ou este quer representar, porque sim.
Aqui, no escritor, no indivíduo, reside o factor chave, o interesse, o valor, a originalidade, a instauração de uma realidade, não de uma realidade científica da natureza física, mas de uma realidade humanamente significativa, o estado crítico (mais avançado?) da matéria.
A ciência é tão afim da literatura como outra coisa qualquer, como uma pedra ou o sol, ou um rio. A literatura é tão afim da ciência como a vontade ou o desejo de dar expressão a problemas e significados e respostas, ainda que não sejam soluções de nada.
Muitas vezes as soluções vêm com a técnica.
A literatura, não obstante, é a única forma de conhecimento de realidades sociais e humanas que a ciência sabe ou presume existirem, mas que não tem outra forma de conhecer.
A literatura é e será um grande desafio à observação, compreensão e conhecimento das realidades sociais e humanas, tanto mais quanto mais sabemos que, enquanto o conhecimento da natureza é instrumental, o conhecimento das realidades sociais e humanas é incontornável e "existencial".
Se bem que ambas, ciência e literatura, tenham a aptidão para o conhecimento (e o conhecimento não é sempre conhecimento de realidades?) a literatura não se define nem tem como função ou objetivo ou estatuto conhecer seja o que for.
A literatura, enquanto “obra de” arte, não está sujeita a critérios de verdade, de racionalidade, de interesse, de correção, de certo ou errado. Um texto literário não tem de estar certo, nem errado. Nem é bem ou mal escrito, ainda que esteja cheio de erros ortográficos. 
A literatura tem como objetivo ser conhecida, como outra coisa qualquer.
A relação entre a literatura e a ciência parece, assim, fácil de estabelecer.
A ciência, para a literatura é como outra coisa qualquer e vice-versa, mas enquanto a ciência se pauta por critérios de cientificidade e é isso que a caracteriza, a literatura não se caracteriza por obedecer a coisa alguma.

sábado, 15 de dezembro de 2018

A religião é a grande esponja


É interessante a ideia de que a ciência, o método científico, são um sistema de prevenção e de correção de erros e, tanto ou mais do que isso, de exploração do mundo, a partir da imaginação e do conhecimento estabelecido. 
Fica-se com a ilusão de que a ciência é o próprio mundo e não apenas o conhecimento de uma faceta do mundo. E, no entanto, a ciência é apenas um ingrediente muito novo, recém-nascido, nesse mundo.
A ciência deslumbra por ser ela mesma expressão daquilo que, a todo o custo, quer expressar.
Já quanto a existirem “várias actividades humanas além da ciência, por exemplo, a arte, a religião ou a ética", diria que temos um problema clássico de ordenação e classificação inerentes à condição humana de analisar, dividir, separar e juntar de novo com fronteiras, para não esquecer diferenças... Em toda a feitura humana existe algum tipo de preocupação/razão/objetivo/preferência/capricho ...estético.  
Qualquer objeto, desde um sapato à roda de uma carroça de brincar, até os mamarrachos, parecem obedecer a um qualquer gosto ou pretensão estética. A produção de objetos, de obras, de artefactos, não é alheia a algum tipo de racionalidade. 
A valoração envolvida na arte, tantas vezes coincidente com a religião e o sentimento ético do artista, sofre, não raro, com a "desilusão" demolidora introduzida pela ciência. 
Quando as artes são uma forma de reforçar a "crença" ou o gosto que se tem, a ciência pode surgir como desmancha prazeres.
Estando a arte associada ao prazer, muitas vezes resta o prazer de apreciar somente a arte e não o "conteúdo".
Relativamente à religião, ela apresenta-se como algo totalitário, que não dá meças, nem à ciência, nem à arte, nem às outras religiões.
A religião é a grande esponja.
Não concordo que a ciência se deva submeter à ética.
À ética só devem submeter-se os comportamentos, as condutas humanas.
A ciência, como se verifica em manuais da especialidade, é eticamente neutra. Não se diz "deve ser" eticamente neutra. Ser ciência ou não nada tem de ético.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Ainda Esparta e Atenas


Só podemos culpar a revolução técnica e industrial, porque, assim, ninguém é responsável. Mas os políticos são os grandes responsáveis por todo o mal, ou quase, que existe no planeta. E, mesmo assim, continuamos a "adorar" os políticos, por mais indecorosos e medíocres que sejam. Tal e qual como acontecia/acontece nas religiões. O indivíduo não é nada. Mesmo depois da dita afirmação do individualismo. As corjas sim. Se não pertenceres a uma corja, és uma vítima certa e irredimível. Junta-te a uma corja e serás salvo. Nem que seja a corja dos traficantes de chifres de rinocerontes.
Os indivíduos têm a sua responsabilidade comportamental, muito bem definida e sancionada. Mas as estruturas e as organizações e os poderes, que cilindram tudo e renascem sempre sobre as cinzas e o betão, encontrarão modos de serem inocentadas, exequíveis e felizes na lua ou em marte.
E, quando a terra "amada", "te arrenego", for inabitável, talvez venha a ser contemplada por uma estúpida "inteligência matemática" da esperança matemática. Não precisamos de pessoas, mas de matemática e de finanças. As pessoas são uma variável dependente. A montanha de ouro, sim, é, será o refúgio e a esperança. Trabalhem para o ouro. Que cada um de vós seja transformado em ouro, no ouro do outro. Eis o poder e a vanglória em todo o seu esplendor.
Se perderes, envergonha-te e não te queixes. Se venceres, aproveita enquanto dura, e vangloria-te, e humilha, porque esse é o teu prémio e o teu momento.
Quem estiver curioso, revisite Esparta e Atenas. Sem embargo de os nossos políticos ignorarem completamente tudo.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O mais revolucionário ateu

“Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio”. Ao ler esta frase, atribuída a José Saramago, diria que ele, a pensar assim, não era ateu. 
Ao criar Deus, o homem não pode crer que está a parir e não propriamente a criar, mas está a parir um "filho" do pensamento indomável, uma espécie de alma sem contornos, nem qualidades, que habita esse pensamento e que está tão presa a ele como ele está preso ao corpo.
E nesta génese de Deus o homem foi significando a religião, as religiões, com os mais variados objetivos, práticos e teóricos, tornando-as em caldos de superstições e de contradições e de sistemas políticos e normativos.
Jesus Cristo parece ter tido uma visão muito clara de que as religiões, incluindo a judaica, eram uma espécie de pseudociências de Deus. Quem soubesse a cassete do "jargão" religioso, sentia-se habilitado a falar disso como um sábio.
Infelizmente, Jesus Cristo não foi devidamente compreendido. Ele era o mais revolucionário ateu numa cultura de pseudociências de Deus. Ele foi o mais lúcido, contundente e demolidor adversário e inimigo dessa cultura.
Mas os próprios cristãos, o cristianismo, os poderes políticos, a igreja católica, trataram de o interpretar e de o integrar no velho sistema de pseudociências de Deus, como se ele fosse mais um, embora diferente e melhor.
E, mais grave do que isso, endeusaram Jesus Cristo. Ao endeusá-lo estavam a endeusar a própria Igreja, o que veio a revelar-se catastrófico, e a destruir, desvirtuando-a e deturpando-a, a grande mensagem de Jesus Cristo contra as religiões enquanto pseudociências de Deus.
O que poderia ter sido um imenso movimento de iluminismo antecipado e fulgurante, verdadeiramente libertador, acabou por ser absorvido em sistemas de mais pseudociências de Deus.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Humanidades

As humanidades e a ciência não estão separadas. Falar em humanidades não pode fazer esquecer as ciências do homem e as ciências da vida, nem a riqueza das línguas e literaturas, das artes, da música à pintura, passando pelos desportos, das filosofias, da antropologia, da psicologia, da demografia, da sociologia, da ciência política, do direito, da justiça, da história, da gastronomia e, porque não?, das religiões...
Falar em humanidades, sem mais, normalmente corresponde a apagar a luz do quarto para dormir. Mas as humanidades, tal com a esperança, serão a última coisa a morrer e as ciências humanas ainda agora iniciaram o seu percurso, a sonhar, de mão dada, ora pelas ciências da vida e da Terra, ora pela estatística, ora pela genética, pela psicologia... 
As humanidades são a expressão da humanidade, ela própria, no seu espectáculo ímpar e pluridimensional, por causa e apesar da ciência, com mais ou menos ciência, sempre do lado da ciência, mas antes e depois da ciência, porque o homem é anterior à ciência, e não apenas à ciência "stricto sensu", com hipóteses de lhe sobreviver, mas não de esta a ele.
As humanidades e as ciências do homem não criaram o homem nem o substituem em circunstância alguma. 
Ao homem deve ser sempre reconhecido o direito de dispor das humanidades e das ciências, mas nunca da humanidade. 
As humanidades não se dedicam apenas às pessoas, e que assim fosse! Mas isso é parte de um lugar comum, que já é tempo de desmontar. 
Todas as ciências, toda a cultura, o próprio Deus, são humanos, fazem parte das humanidades.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

A filosofia vai ter um sucesso do caraças.


Quando se trata de perceber, compreender, investigar, questionar, desconstruir, já não estamos a falar para pessoas que têm como grande preocupação, ou preocupação exclusiva, sobreviver às injustiças e às falsidades perpetradas e cultivadas intensivamente, como quem cultiva e consome cannabis...
Mas vale a pena, tem que ser e é esse o rumo.
Pode ser necessário velejar à bolina, mas o "capital" da ignorância é demasiado valioso e poderoso para ser deixado nas mãos dos ladrões que, sem escrúpulos, a colonizam como um fungo maldito, transformando em deserto tudo à sua volta.
Neste tempo de ópios, futebóis, seitas a imitar as "respeitáveis" igrejas, partidos enformados como seitas, Estados organizados por esses todos, num espetáculo de crime e corrupção, que é ofuscado pelas telenovelas e pelos "shows" de Gouxxass e Ferrreirass e outros entretenimentos de grande sucesso e maior proveito para uns quantos, de jogos de uma dimensão épica nunca vista, nos telemóveis e no momento de morrer, a filosofia vai ter um sucesso do caraças.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

O que importa é a Arte

Ao fim e ao cabo, ociosidade dos discursos à parte, o que importa é a arte. A arte está para a evidência como "o campo" está para a verdade desportiva. Não me refiro apenas às "leges artis", refiro-me sobretudo às habilidades. Nem todos temos habilidades, por ex., para endrominar um júri. Nem todos temos habilidades para fazer o mortal à retaguarda ou voar numa bicicleta, ou grafitar o último animal extinto...Como eu gostava que me ensinassem essas artes! Trocava grande parte dos meus saberes e conhecimentos pela arte de dar cambalhotas sem apoio e sem parar...

domingo, 4 de novembro de 2018

O direito é como o natal

Todos abanam com a cabeça e ninguém tem dúvidas, mas cada cabeça é um centro de vontades e de ignorâncias e de competências. Os políticos, como se tem vindo a confirmar, gerem esta realidade de um modo hábil e oportunístico. 
Os políticos são oportunistas e, se o não fossem, não tinham votos.
Não há como ultrapassar este problema. Tem que se dar às pessoas o que elas querem. 
Não querem direitos humanos? Estão no seu direito. Querem pena de morte? Estão no seu direito. Querem mais direitos para as pulgas ou os cães do que para as pessoas? Estão no seu direito. 
Basta reconhecer o direito às pessoas.
Mas estamos cada vez mais longe de ver reconhecido(s) o(s) nosso(s) direito(s).
O problema fundamental ainda não foi resolvido, qual seja: a que é que uma pessoa (de África, Ásia, Europa, América, Oceania...)tem direito? O que é o direito de uma pessoa? Quais são os direitos de uma pessoa?
O direito é como o natal, é quando uma pessoa quiser...
Talvez devamos concluir que as pessoas não precisam de Declarações de Direitos para saberem o que deve ser o seu direito.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Partido da neutralidade


Pela neutralidade é tomar partido, tanto ou mais que ser contra ou a favor. É urgente que se reconheça o partido da neutralidade, com todos os respeitos e garantias que lhe são devidos. E não só a neutralidade, também a indiferença. Respeitemos. 
Não obriguem ninguém a tomar outro partido. 
O partido dos neutros e dos indiferentes é esse, o partido deles. 
Ou os outros são melhores? 
Não obriguem ninguém a nada mais que respeitar. 
A cultura da partidarização já foi longe de mais. 
Vamos iniciar um ciclo inédito de despartidarização de tudo e de alfabetização construtiva. 
O futebol da política está a ir, quando a política do futebol já está a voltar. 
A bandeiras despregadas!!!

Nota: eu não sou neutro, nem indiferente.

domingo, 28 de outubro de 2018

O povo

O povo tem um sentido prático que chega a ser espantoso.
O povo só aprecia tragédias na tela da televisão ou do cinema.
E é capaz de trocar tudo o que tem, incluindo a dignidade, por um pouco de paz e de misericórdia.
Para por um povo em armas é preciso que o fim do mundo já tenha acontecido nos arredores,
ou que, num arrebatamento de soberba, sem medo, acredite numa vitória expiatória. 

E, ainda assim, alguém tem que lhe dar as armas e a ordem para se defender, ou atacar.

Carlos Ricardo Soares



As coisas não têm de ser


As coisas não têm de ser 
nem têm de ser como são
nem são
entre a vida e a morte
não há
aventuranças
nem há entre a vida e a morte.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A questão de Deus


               Como tratar da questão de Deus sem nos envolvermos numa questão da própria questão?
               O significado da palavra chega a ser profundamente contraditório. Desde significar um objeto inerte, uma imagem, um desenho... até significar um animal, um fenómeno natural ou simplesmente fantasiado... ou um conjunto de atributos políticos, morais, estéticos, espirituais...tudo deste nosso reino que muitos acreditam poder descrever outros, completamente diferentes, que possam existir...indo do simbólico até ao conceitual, do objeto de adoração, ou simplesmente de indagação, indiferença ou rejeição, a princípio legitimador de prescrição e de ação e, até, de critério de sanção, Deus é um problema do homem que este resolve do modo que pode, lhe parece melhor, ou dá mais jeito.
             Interrogar "o que é Deus?" é diferente de interrogar "que significa a palavra Deus?" e de interrogar "quem é Deus?" e de interrogar "Deus existe?".
            Debalde se procurará uma resposta objetivamente definida para qualquer dessas interrogações.
           O próprio significado da palavra Deus, que pareceria mais suscetível de ser conseguido objetivamente, depara com subjetividades intransponíveis, talvez por se tratar de algo que, apesar de ninguém saber o que é, tem tantas definições quantas as pessoas que o definem, ou mais.
           Quanto a isso, eu designaria Deus como um significante sem significado, ou, à procura de significado, ou como uma personagem à procura de um actor. E o universo, uma obra à procura de um autor.
           Deus é uma realidade cultural e, como tal, tão histórico como a bíblia, ou os faraós. Enquanto que a bíblia e os faraós são objetos reais e culturais, Deus deixou de ser objeto real (animal, etc....), deixou de ser ídolo e é uma espécie de abstração sobre si mesma, à procura de concretização de que essa mesma abstração está fecundada.
           Para o filósofo, ou para o cientista, Deus é um conceito muito restrito, reduzido a hipótese teórica de Inteligência criadora do universo.
           No entanto, essa hipótese dá azo ao desenvolvimento de teorias que a discussão tradicional entre ateus e crentes, fiéis ou não, tem impedido de acontecer.
           É neste plano que me parece que os ateus também laboram em crenças e, tentar combater crenças com outras crenças é tão impróprio e ineficaz como combater uma religião com outra, embora isto seja uma fatalidade das crenças e das religiões.


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

(Des)humanidade


O tema das universidades europeias é de suma importância, pelo que vi tratado, com inusitada competência, no livro «Os intelectuais na Idade Média», de Jacques Le Goff.
De cada vez que recuo no tempo para tentar encontrar o tempo presente verifico, porém, que as grandes questões filosóficas e religiosas continuam em aberto, como no paleolítico, neolítico, etc..
Vivemos aprisionados dentro de um universo que vamos conhecendo cada vez mais. 

Cada vez mais capazes de descrever e de explicar como funciona. 
Mas o nosso problema humano é outro. 
Que é que substitui ou satisfaz a nossa vontade? 
Pudesse ter todas as verdades no bolso da camisa. Fosse Deus.
Como é que isso iria resolver aquele problema da vontade?
Ou, dito de outra forma mais prosaica, um voto serve para alguma coisa?
E se forem todos os votos?
Vivemos numa sociedade que, embora evoluída cientificamente, se mantém arcaica e que não aprendeu, nem aprende com os erros e as dores dos outros, porque destituída de passado, ou, pelo menos, destituída da consciência desse passado, completamente descredibilizada na sua competência para resolver problemas sociais de sempre, mais empenhada no estudo da física atómica e dos astros do que no estudo dos problemas sociais e político-económicos, mais apodítica sobre as rochas e os meteoros do que informativa sobre a justiça e as desigualdades sociais, com mais conhecimentos sobre as galáxias do que sobre os factos sociais, mais segura das característcas físicas da matéria do que assertiva quanto às qualidades dos organismos vivos, a resvalar em movimento acelerado para mais uma catástrofe provocada por uma coisa irracional chamada (des)humanidade.
Faz falta um Newton e um Einstein e um Schrodinger das Ciências Humanas e Económico-Sociais.
Mas continua a ser muito mais difícil do que pareceria no dealbar das revoluções...

domingo, 23 de setembro de 2018

Estado crítico da matéria


António Gedeão é um dos meus poetas preferidos. 
Para o homem de ciência, não me admira que a poesia tenha sido a descoberta do estado crítico da matéria. 
O que me admira é a forma como ele tratou da matéria.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Novas formas de ganhar

         Não me colocaria do lado dos que se recusam a reconhecer que o planeta terra está a ser destruído pelo homem, de múltiplas formas irreversíveis, sem retorno, incluindo alterações climáticas desastrosas.
         Não é por, hipoteticamente, alguma alteração derivar de fenómenos extraterrestres, que me colocaria, não apenas contra as evidências, mas também do lado das improbabilidades, ignorando a enorme realidade da devastação dos habitats.
        Ou seja, não me colocaria do lado de uma qualquer teoria que torturasse, sacrificasse e maltratasse irreversível e definitivamente os factos, até e principalmente o facto de estarmos a ser destruídos, pela acção do homem e não só.
       Vivemos um tempo de alertas e de alarmes mais do que justificados. 
       As soluções baseadas e preconizadas em princípios e práticas antigas, instituídas pela força dos usos e dos paradigmas milenares de organização jurídico-política e económica são hoje um perigo, impensável nos alvores da industrialização e da exploração económica liberal e individual, dos recursos do planeta.
      Muito está a mudar e muito rapidamente, de tal modo que os modelos conhecidos de resposta política, jurídica e económico-social, nomeadamente internacionais, são incapazes de satisfazer as exigências de racionalidade e de fundamento que se colocam.
      Estou a pensar, por exemplo, no problema dos migrantes, dos refugiados...E no problema da apropriação e exploração dos recursos naturais das diversas regiões do nosso planeta.
      Os Estados e os povos não vão poder continuar a fingir que as coisas podem ser resolvidas e solucionadas com base nos princípios clássicos e antiquíssimos, mas muito primitivos e tacanhos, da soberania territorial estadual.
      O princípio de que o planeta é igualmente de todos, de que ninguém tem mais direitos, hereditários ou outros, nem títulos especiais e privilegiados de vocação ao património da humanidade, científico, cultural, material, vai ter de ser equacionado se se pretender responder a algumas das questões mais dramáticas e prementes do nosso tempo.
      Muitos se manifestam pelo que temem perder, mas vai ser preciso aprender novas formas de ganhar.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

O inimaginável


Ninguém conseguiria imaginar uma rua como a minha, nem eu. 
O inimaginável exerce sobre mim uma atracção quase irresistível, mas tem, à partida, uma garantia de insucesso que desencoraja até o mais louco e imprudente dos aventureiros. 
Nada mais desafiante, portanto.
O pior de tudo é que a rua não existe. 
Podemos procurá-la por todo o lado. 
Tão pouco existe na minha cabeça. 
Tão pouco existe nas palavras que escrever sobre ela. 
Mas é uma rua muito interessante e muito antiga.
O que não existe pode ser muito interessante, muito mais interessante do que aquilo que existe. 
A maior parte do que não existe, se existisse, perderia o interesse. 
Ou talvez não.
Não é uma rua direita e sabe-se lá as razões e os sonhos que moldaram as pedras de cada esquina e as fechaduras de cada porta, quantos cavalos, com o barulho dos suas ferraduras na calçada, foram o despertador impiedoso de gente que, de outro modo, nunca teria acordado...
O que é certo é que não há ninguém que se lembre dessa rua movimentada, nem eu. 
Não há vestígios dela.
E isto é muito triste.
Nessa rua ninguém passa, nem passo eu. 
É uma rua habitada pelos fantasmas dos que viveram na esperança de que alguém os inventasse.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

No horizonte das possibilidades


Atrevo-me a dizer que, sem paixão, tudo permanece opaco ao pensamento, incluindo o pensamento e o que acontece é dentro das fronteiras do senso comum.
O filósofo coloca o problema da filosofia como uma questão de amar ou não o conhecimento, o saber, a sabedoria, sem fronteiras. E o amor é reconhecido como uma vinculação à verdade, talvez a única vinculação radical.
Quando as motivações são outras, a filosofia não funciona porque, na verdade, deixa de existir e pode ser uma emulação, uma sofística, uma técnica de manipulação de palavras.
A escola, ao aproximar o aluno do horizonte das possibilidades de aprendizagem e das dificuldades de atingir determinados desempenhos, já cumpre um importante papel.
As aprendizagens são como sementes e as que brotam mais cedo ou mais facilmente nem sempre são as mais consistentes, ou produtivas.
Às vezes a importância do banquete não está no que se come, mas no que se deixou de comer.
O que fica na mesa, e não o que vai para o estômago, pode ser o que fica na memória.

domingo, 5 de agosto de 2018

Violência dos ofensores e violência dos ofendidos


Vou ser breve e cingir-me a poucas considerações sobre um tema tão vasto e complexo.
Ao focar apenas ofensas derivadas da liberdade de expressão/pensamento, omite-se e não se aproveita para a análise, a ofensa, como denominador comum relativamente a todos os tipos de crime, públicos ou particulares.
A ofensa, na óptica do ofensor/agressor e a ofensa, na óptica do ofendido, merecem uma análise "per si". 
Se não houver ofendido, não há ofensa? Ou, por outra, se houver ofendido, há ofensa? Todo e qualquer comportamento de um indivíduo "contra" uma pedra, não é censurável de todo? Qual é o escopo da censura, o objetivo, a teleologia? O comportamento do indivíduo, a adequação da sua conduta social ou os eventuais resultados, efeitos ou consequências dessa conduta?
Mesmo que alguém admitisse, sem se queixar e sem se sentir ofendido, que o maltratassem, injuriassem, difamassem, escravizassem, o busílis da questão jurídica e ético-moral, não estaria apenas na disponibilidade dessa pessoa, como parece óbvio.
A questão das bandeiras é ilustrativa de que o problema talvez não existisse se as "ofensas" à minha bandeira fossem feitas por gente que, igualmente, "ofendia" as suas bandeiras e aceitava/concordava que outros o fizessem.
Vou constatando é que os que mais ofendem as bandeiras dos outros também são os que mais se ofendem com ataques às suas. 
Em qualquer caso, o problema das ofensas é muito mais do que um problema de sentir-se ou ser ofendido.
É sobretudo um problema de limites à liberdade.
Passa-se o mesmo com os atentados ao pudor.
Alguém que se julgue com o direito de c.... na rua, à vista, ou ir nu a empurrar um carrinho, ou f.... à canzana numa esplanada, até pode ter quem goste e quem aplauda, longe de se sentir ofendido.
Até se poderia pensar em propor às pessoas que escolhessem entre vários espaços possíveis, como se faz para fumadores e não fumadores, etc..
Agora, o direito de a pessoa se sentir ofendida não existe. 
O que há é o direito de não ser ofendido.
Não me ofende quem pensa mal de mim. 
Ofende-me quem o expressa, não no mero exercício de uma liberdade de expressão, por mero gozo ou felicidade pessoal, mas à minha custa, à custa da minha reputação, imagem, bom nome, felicidade, paz, com o intuito de me prejudicar, ainda que só me prejudique no foro íntimo.
Não faz grande sentido que sejamos contemporizadores com a violência dos ofensores como se esta tivesse o mesmo significado e valor/justificação da violência dos ofendidos.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Pensar o sentir/ sentir o pensar

Ai de nós se a intensidade com que pensamos fosse proporcional à intensidade com que sentimos e vice-versa! 
A nossa dor ou alegria dura algum tempo, às vezes menos do que desejaríamos, e depois funciona como memória ou lembrança em que pensamos. 
Se assim não fosse, éramos capazes de festejar um golo da nossa equipa no início do jogo e, sem parar de festejar, ainda o estarmos a fazer quando o jogo terminasse com a nossa equipa a perder. 
Ou, constantemente, chorarmos porque a todo o momento alguém sofre injustamente.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Como esta chuva que cai

E nesse tempo distante
A que houvesse de voltar
Ninguém me peça que cante
Nem me lembre de cantar

Não me peçam que não chore
Só me apetece chorar
Nem esperem que tudo ignore
Porque me quero lembrar

Passei metade da vida
A fugir da confusão
Mas não encontro saída
Da solidão

Eu não confio em deuses
Quem confia no diabo?
Sigo só como os ateus
Mas não sei como é que acabo

Olho para os meus desertos
Como um lagarto olha o mundo
Estar com os olhos abertos
É o que há de mais profundo

Como esta chuva que cai
Como este corvo crocita
Como esta gente que trai
Princípios em que acredita.

Tutela perniciosa

Das inúmeras variáveis que é necessário sopesar e ponderar para um conhecimento do sistema de ensino/educação, que existe, mormente com alunos e professores no centro das pressões, a aguentar forças centrípetas e centrífugas, assim muito esquematicamente, refiro os decisores políticos, que se assumem, inquestionavelmente, como os senhores (donos) disto tudo.
       E nada há de mais errado no sistema de ensino/educação.
Este tem condições para estar, e deveria estar, emancipado, há muito, dessa tutela tão perniciosa quão perversa.

Carlos Ricardo Soares 

domingo, 27 de maio de 2018

Brilhantina


Um dos pedintes mais bem sucedidos do burgo costumava vestir-se como um valete, de que se arrogava o título. Abrilhantinava a cabeleira e, com pose de alteza, porém lamuriando-se da sorte, pedia na rua, não como um pobre, que não assumia ser, mas como um rico, que detestava de tal modo o dinheiro gastando-o a rodos, que acabou por cair em desgraça. Nas lojas, onde era acolhido, até com honras e mesuras, ouviam a sua triste história, quando o trato que davam aos maltrapilhos era corrê-los porta fora. E todos, até os pobres, se condoíam desse personagem, até saberem que era, simplesmente, um pobre mas hábil ator, e logo se arrependiam de ter ajudado um farsante.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Presunções

    A presunção de inocência ou a presunção de culpa, juridicamente e, na prática, serão irrelevantes, porque não alteram o estatuto do arguido, nem alteram a realidade dos factos, nem interferem no julgamento. Aliás, como é sabido, "presunção e água benta, cada um toma a que quer". O que justificaria, talvez, não estar a ocupar espaço na letra da lei, que já é tão extensa. 
    O problema com interesse, com grande afinidade deste, é o do ónus da prova. Neste ponto, em vez de presumir inocência ou culpa, importa provar. Aliás, uma condenação judicial é uma presunção de culpa ou de imputabilidade, etc.. e uma absolvição nem sequer é uma presunção de inocência, e não é um juízo de inocência
    Com o tempo, perante novos elementos de prova, essas presunções podem ser revertidas. Ainda assim, relativamente ao ónus de prova, na minha opinião, no caso de certas entidades políticas e financeiras, pelos cargos que ocupam, pelo que representam, pela posição privilegiada em que sempre estão para apresentarem e fazerem prova, haveria toda a vantagem para a justiça que o ónus da prova recaísse sobre eles e não ao contrário, como sucede. 
    Indiciados que fossem da prática de certo tipo de crimes, caber-lhes-ia o ónus de provar o contrário. Atualmente, não têm qualquer ónus. Não precisam de provar nada para serem absolvidos, basta que se frustrem as acusações.


quarta-feira, 23 de maio de 2018

A privacidade

Há que teimar em trazer à liça um problema de suma importância para cada um de nós, tanto mais importante quanto mais inócuo se faz sentir, a violação da privacidade.
Não é por acaso que a privacidade é tão mal entendida e tão mal tratada. 
Estou a pensar na segurança e nos interesses policiais. Limitar-me-ei a considerar que a minha privacidade é um reduto interdito, sobretudo, às polícias. Diria até que é o oposto de policiamento, sabendo nós que as "polícias" não são apenas os agentes de segurança e da ordem pública investidos da autoridade do Estado.
A privacidade é incompatível com os "guardiões", legisladores do medo, corruptos que o são porque podem, sem medo e sem vergonha, guardiões dos privilégios.
E não estou a pensar na criminalidade, que deve ser prevenida e combatida, sobretudo a alta criminalidade do venal.
Estou a pensar na saúde mental, na liberdade de pensamento, de criatividade e de significado, do significado atingido livremente, não do significado infiltrado, hospedado à força no cardápio das nossas alternativas avassaladas.
Esta sensação de falta de mundo e de espaço para respirar outro ar que não seja o da vigilância, sobretudo quando perpetrada pelos alvos inelutáveis do nosso ódio, acaba por viciar também os comportamentos, sobretudo os de maior visibilidade, que se tornam à medida, ou seja, o próprio processo de invasão e controlo da privacidade subverte-se ao ponto de o privado ser também uma máscara. E cada vez se torna mais pública e convencional a ideia de que o que é visível pode ser a melhor forma de invisibilidade.
Cada vez mais, as iludências aparudem!!!
Até porque quem quer ser olhado do modo que os outros escolhem?  Ou gosta do modo como é olhado, ou de quem olha/observa, independentemente da finalidade?
Temos o direito de odiar, recusar e rejeitar o "mau olhado".
De resto, no inferno da privacidade só entram almas danadas e não se constroem paraísos onde possa entrar quem não se quer.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

A humildade

A humildade, a verdadeira humildade e não a estratégica, manhosa e venenosa, com que alguns hipócritas, retorcidas víboras, ostentam aclamadas virtudes para disso tirarem proveito à custa de lorpas=humildes=estúpidos=submissos, é um capital de que se faz uso apenas quando se quer e com quem nos aprouver, ou, por engano, para proveito dos tais répteis. 
A humildade não é uma virtude e não pode ser uma virtude porque a chamada humildade do arrogante ou do prepotente, é uma estratégia de domínio e a chamada humildade do humilde ou do dominado, é uma condição. 
Discutir qualquer assunto na base da humildade ou da arrogância, não me parece que faça sentido. 
A humildade e a arrogância não fazem parte das equações. Assim como o tom de voz. 
Mas se chamam arrogante a quem não ouve nem quer ouvir e humilde a quem ouve e quer ouvir, o caso muda de figura. 
É diferente falar para um arrogante ou para um humilde.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Robots humanos robots

Embora o assunto seja muito técnico, a avaliar pelo que sabemos do poder e eficiência das calculadoras, dos sistemas informáticos de localização e de identificação de sinais e dos computadores que jogam melhor do que os humanos, para já não falar nos aviões que voam mais e melhor do que os pássaros, etc., é mais provável que os humanos se transformem em robots do que os robots em humanos.

sábado, 14 de abril de 2018

Já não sinto, nem penso, só sofro, mas resisto?

Se eu pudesse escolher sentir tudo o que pensasse seria enlevante como as arquiteturas mais ousadas que nos aquietam os ânimos numa interpretação do mundo que acreditamos já ter sonhado e temos diante de nós ainda melhor realizada. 
Mas todo o sentimento profundamente nosso parece suscitar imensa cobiça ou perturbação em redor, porque nos deixa exacerbadamente sensíveis a perturbações, tornando tudo mais insuportável.
Se eu pudesse escolher sentir, amava, amava tanto mais umas coisas quanto mais odiava outras…
Se eu pudesse escolher pensar não sei o que pensava, talvez pensasse em tanta coisa que não me interessava, mas como não posso escolher, penso que me interessa…
Se eu pudesse escolher fazer sei o que queria, mas não saberia fazer…
Se eu pudesse escolher dizer o que diria?

O mundo torna-se muito pequeno quando cais dentro de um buraco 
e só te resta esperar que alguém por acaso caia nesse buraco sem querer e te encontre.
A tua sorte é a fonte das maiores alegrias, 
mas saber lidar com isso pode ser um problema.
Não foi o mar que fez os barcos nem os barcos que fizeram o mar 
e os barcos engolem o mar de um modo muito mais interessante do que o mar engole os barcos. 
As palavras não são o que nos faz falar, 
as palavras são o que nos prende 
àquilo de que gostaríamos de dispor livremente.


Poeta

É assim que o poeta é 
a motivação do poeta é 
do mais sagrado 

há 
quem o tome por louco 
que diz coisas estranhas
quem o não entenda
quem se ria
quem desdenhe
quem tolere

o poeta "trabalha pro bono"
por vezes com sacrifício da própria vida
a sua motivação não o implica com a desumanidade
nem com os ataques mortíferos e destruidores à natureza
nem com a ignorância e o amorfismo

o poeta não pretende roubar nada
nem tirar nada a ninguém
nem pretende ficar calado e quieto
quando é preciso ser alguém.

sábado, 31 de março de 2018

Como se nada fosse

Há-de haver sempre uma atriz
ou um ator
no lugar onde o teu pensamento
é a forma de alguma dor
que atua
que é tua
que é a tua
de alguém ou de ninguém
à deriva no sem fim
em que tudo se dilui
tão abruptamente quanto a solidão
do silêncio e do frio
da ignorância
dos séculos erodidos
expõe
seus ossos tristes
esbugados
rochedos carcomidos
que o sol devora calmamente
como se nada fosse
como sempre.

sábado, 3 de março de 2018

O poder da literatura

A literatura (da poesia ao ensaio, passando pelo romance e pela profecia, adivinhação, ladainha, canção, fado, escárnio, maldizer, drama de faca e alguidar, relatos, de viagens, de todo o tipo de crónicas e de policiais, até às orações e sermões e elogios...) permite uma expressão verbal, praticamente sem limites, de todo o tipo de representação ou signo, sem condicionamentos de lógica, sentido, significado, noção, conceito, moral, licitude, virtude, respeito, dever, etc.
À literatura nada é vedado, nem a invenção, nem a mentira, nem a verdade, sobretudo aquela verdade em que tanto se vive, que é uma verdade feita de falsidades, hipocrisias e mentiras. Na minha biblioteca de filosofia e de ciência e mesmo de uma grande parte da literatura (bem comportada) é tudo tão convencional, tão conceitual, tão voltado para o objeto que pouca diferença faz ler um livro escrito há mil anos ou um acabado de sair. Dá a impressão de que a vida e a história, as traições, as trapaças, o assédio, o incesto, as vigarices, os roubos, as violações, as escravaturas, as guerras ocultas, os ódios inconfessáveis, os fantasmas invencíveis que atormentam até os mais esclarecidos filósofos e cientistas, as verdadeiras dores e misérias humanas, da guerra e da discriminação que tantas pessoas sofrem...dá a impressão de que nada disso acontece. Tudo é transformado em conceito abstrato, ou seja, em nada mais do que ideia.
A literatura pode, e muitas vezes tem-no conseguido, "falar" da vida como ela é, sem estar subjugada sequer a qualquer dever de "falar" e, menos ainda, de "falar" como deve ser.
Tudo é susceptível de ser utilizado, tocado, tratado ou maltratado, incorporado, atacado, "destruído", pela literatura, que pode ser usada como arma impiedosamente letal de religiões e de costumes e, quantas vezes, de pessoas já mortas, ressuscitando-as em memórias para as poder matar as vezes que for preciso... ou amar sem limites.
Na minha biblioteca de filosofia e de ciências e de literatura, só alguns livros de literatura me falam da verdadeira vida e do pensamento e das ideias e dos fantasmas, dos medos e das tormentas e das injustiças irremediáveis, da dor que impede os humanos de serem felizes e da grandeza, da magnanimidade daqueles que, apesar de tudo, garantem, com o seu trabalho e a sua virtude e o seu talento, a vitória da vida sobre a morte e do bem sobre o mal. 
     Ela denuncia as podridões dos malditos e os heroísmos dos justos, ela nos mostra o verdadeiro rosto por trás das máscaras, despertando-nos de ingenuidades perigosas e inocências fatais, chamando as coisas pelos nomes...porque as palavras são, quase sempre, a única arma de que dispomos no conflito interminável com os demónios e os deuses e também é com palavras que podemos construir as nossas asas e as nossas praças fortes, os nossos tribunais e os nossos paraísos de procura e encontro de sentido para os problemas...
A literatura mostra, patenteia, ostenta, incorpora pelas palavras tudo o que quiser e puder a imaginação do escritor. Muitas vezes até faz um aproveitamento desmesurado da importância de certos assuntos, acontecimentos, realizações, artes, monumentalidades, indo buscar brilho ao próprio objeto. 
      Muitos livros de notáveis escritores são constituídos em 90% de "materiais" artísticos, ou potencialmente estéticos, alheios, seja o convento de Mafra, sejam as personagens bíblicas...
Um homem com a sua ciência e a sua filosofia pode não precisar de uma religião, mas precisa de literatura para sair do deserto.


sábado, 27 de janeiro de 2018

Solo


Sento-me na superfície do planeta
na capa externa 
das rochas
a contemplar
o nascimento do solo
complexo e dinâmico
mineral e orgânico
vegetal e animal
orgástico
por onde o ar e a água circulam
recebendo e redistribuindo
a energia solar
que arde na lenhite
na hulha e na antracite.