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sábado, 10 de fevereiro de 2024

Imperativo de verdade, imperativo moral e imperativo ético-jurídico

A ética da responsabilidade é uma redundância que se justifica pela necessidade de enfatizar o dever. Eu diria que a fonte do dever é a função de verdade inerente ao inseparável binómio consciência/racionalidade. O humano é a fonte de verdade e de falsidade, de mal e de bem, além de ser produtor de causas, mas não de efeitos.

O sentido do dever e o sentido do direito são correlativos, de um ponto de vista lógico, mas não percepcionados, ou nem sempre percepcionados como tais, ou seja, quando falamos de direitos do indivíduo, afirmar um direito da pessoa humana é, implicitamente, ou correlativamente, ou consequentemente, afirmar o dever de respeitar esse direito. Mas a afirmação e prescrição de um dever, na prática, revela-se algo mais difícil de aceitar e de sustentar e de legitimar do que afirmar e prescrever um direito. Este é entendido como uma conquista natural, como algo devido, enquanto que aquele não, antes pelo contrário, por hábito e tradição, tem havido deveres a que não correspondem direitos positivos, sobretudo para quem está numa posição de sujeição ou escravatura, e situações de direitos e privilégios a que não correspondem deveres.

Normalmente, as declarações de direitos fundamentais do homem são declarações de direitos e não de deveres, como se bastasse aquela. Talvez por serem declarações originadas de revoluções político-sociais, reivindicativas, de libertação, a tónica nos direitos pareceria, à primeira vista, ser mais favorável, evidenciando a conquista desse estatuto.

Se, de um ponto de vista lógico, parece não fazer diferença entre declaração de direitos e declaração de deveres, uma vez que a um direito corresponde um dever, o meu direito à vida implica o meu dever de respeito pela vida dos outros, na prática, é muito diferente para as pessoas dizer que têm direito, ou que têm o dever. Assim, enquanto o dever é mais expressamente prescritivo de ação, por exemplo, quando diz “deves circular pela direita”, em vez de “tens o direito de circular e de ultrapassar pela esquerda”, ou, “é proibido circular pela esquerda da faixa de rodagem”, já o direito é muito menos enfático e expressamente prescritivo. Assim, o meu direito à vida significa sobretudo que todos, incluindo eu, se devem abster de desrespeitar, violar, aquele direito. No fundo, é um dever de omissão, de proibição de uma ação censurável. Ou seja, não envolve nenhum imperativo, ou ordem, de preocupação ou responsabilidade pela vida do outro. Se em vez de dizermos a um rico poderoso que ele tem direitos fundamentais, lhe disséssemos que ele tem deveres fundamentais, o sentido e eficácia dessas prescrições poderiam ser maiores.

Diria que, desta forma, os direitos são definidos pelo mínimo de quem não pode e pelo máximo de quem pode mais, sendo que o dever também é pelo mínimo. O direito à liberdade de um carenciado, sem poder, não lhe assegura as mesmas condições do direito à liberdade de um rico e poderoso. E não impõe nenhuma obrigação específica ao rico e poderoso. Ou seja, são iguais quanto aos deveres que supõem, ou implicam, mas diferentes quanto aos direitos efetivos que envolvem.

Talvez devêssemos pensar um pouco mais no caso do código da estrada, que afirma, predominantemente, deveres e proibições, em vez de direitos e faculdades.

Não vou ao ponto de defender que, por defeito, ou como regra, o ordenamento jurídico definisse deveres e só por excepção direitos, à semelhança do direito fiscal, em que o caráter unilateral do dever é muito acentuado, mas talvez se pudesse pensar numa solução em que a afirmação geral e abstrata de um direito civil não se traduzisse, na prática, numa vantagem para os favorecidos, que não têm nenhuma obrigação ativa, e numa desvantagem para os desfavorecidos, para quem o direito se revela, praticamente, vazio de efeitos.

Quanto aos direitos fundamentais constitucionais e à declaração universal dos direitos do homem, o serem estabelecidos pelos direitos e não pelos deveres parece-me bem e está em consonância com serem declarações de direitos face aos poderes, nomeadamente políticos, do Estado.

Numa perspetiva mais civilística da ordem jurídica, há sempre quem entenda que o seu direito à vida é inviolável, mas não pense que o direito à vida dos outros o é igualmente. Para quem assim pensa poderia ser mais pedagógico prescrever o dever de respeitar o direito à vida, colocando a tónica do direito no outro e o ónus no eu. Até em tribunal, poderia ser mais fácil invocar e arguir o dignificante e nobre dever de respeitar do que o “penitente” e humilhado direito de ser respeitado.

Se há um imperativo categórico, ele há-de ser categórico para ser imperativo e não o contrário. E há-de ser categórico por força da necessidade moral, resultante da lógica de identidade e de não contradição, da função de verdade que rege o processo de pensamento consciente. É no domínio da consciência e do conhecimento, da ciência, que reside a esperança, não propriamente numa responsabilidade/responsabilização, mas numa humanidade que faz boas escolhas. Também faz falta enfatizar uma ética da responsabilidade por boas escolhas, embora seja mais popular e bem aceite punir do que sancionar positivamente. A punição não é vista como discriminação, enquanto que o reconhecimento tende a ser uma forma de desvalorizar, ainda que indiretamente, os não contemplados.
Uma das dificuldades dos humanos em conhecer a realidade está no facto de termos uma percepção qualitativa da realidade. Como organismos vivos, essa percepção é fundamental e até dispensa o conhecimento. O que eu designo de imperativo de verdade, ou simplesmente função de verdade, como necessidade lógica, princípio do pensamento lógico, ou inerente ao princípio de identidade e de não contradição, por ser meramente teórico-abstrato, e resultar de uma faculdade intelectual, de exercício, em vez de uma determinante necessidade natural inelutável, mesmo quando é ativado e exercido pelo indivíduo, tende a ceder aos reflexos de sobrevivência e a toda a cultura acomodatícia do interesse, individual e de grupos, ao ponto de ser corrente que, na maioria das situações, as pessoas só considerem verdadeiro, justo, o que lhes for favorável, ou concordante, não propriamente com o que pensam, mas com os seus interesses. O imperativo de verdade opera numa instância logico-quantitativa das representações mentais, enquanto que as percepções humanas são percepções qualitativas da realidade. Estas são fundamentais para a sobrevivência e até dispensam aquela função de verdade, que é normalmente a fonte de todos os problemas sociais. É ela que coloca em confronto os egoísmos e as subjetividades e não dá tréguas.

Carlos Ricardo Soares