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sexta-feira, 3 de março de 2023

Por que escreves?

Lembro-me de inúmeras vezes, fora as mais de que me esqueci, em que, à míngua de “inspiração” para escrever e porque não houvesse algo melhor para fazer, em vez de tentar responder à pergunta “por que não tenho algo melhor para fazer?”, ficava a magicar razões para escrever, que acabavam por ser o objeto da minha escrita. Mais do que o clássico “conhece-te”, deparava-se-me o irrespondível “por que escreves?”.
Nem quando escrevia uma carta de amor eu era capaz de confessar a mim próprio que sabia o motivo pelo qual me sentava a buscar as melhores palavras e a mais eficaz concordância entre elas.
Às vezes, mas por razões bem diferentes, perguntava “por que estudas?”, ou “por que lês?”. Estas questões pareciam ser desnecessárias, como perguntar “por que trabalhas?”, ou “por que comes?”.
Hoje, julgo perceber que há um princípio de sabedoria na indagação dos motivos que nos levam a fazer o que fazemos, mais do que na indagação do ser quem somos.
Se considerarmos que cada um de nós é uma ilha, que não há mais do que o ponto de vista de cada um, e que somos seres de linguagem, sociais, que provavelmente não conseguimos demonstrar a objetividade de nada que comunicamos, do mesmo modo que não conseguimos saber até que ponto a subjectividade é comunicada, torna-se desafiante tentar perceber por que motivos tantas pessoas, e eu sou uma delas, se sentem atraídas pela linguagem, sobretudo a escrita, que começa por ser imposta como o fiel e o garante das verdades mais sagradas e mais inquestionáveis, por uma autoridade que remete a sua própria autoridade para essa escrita, como se a escrita, em si mesma, fosse já a face, não de alguma forma de verdade, mas da verdade a que estamos sujeitos, até pelo uso.
Assim que alguém percebe que as palavras para dizer verdades não são as verdades, ou que é preciso usar falsidades para dizer verdades, que é o modo de ser da linguagem, mormente a escrita, o fascínio pela escrita instala-se, se nisso formos tendo um repetido prazer, até se tornar um vício, uma busca do prazer pelo prazer, como um reflexo condicionado de pressionar um botão gratificante.
Na prática, descobrir que é difícil, ou impossível, dizer alguma coisa sem dizer o seu contrário, é como encontrar o santo graal.