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sábado, 24 de junho de 2023

A soberania das formas sobre os instintos

Aproveitarei para divagar sobre as formas e os instintos.
O prazer, ou a satisfação da escrita, como o modo, o recurso, o instrumento, de concretizar, de preservar e de construir o prazer de ser, de dominar pelo pensamento, pelas ideias e pelo discurso, pela individualidade, pelo estilo, pela voz própria. É como o prazer da música que se produz, enquanto compositor, tanto ou mais do que enquanto instrumentista executante, ou cantor, embora aqui, o prazer possa ter cambiantes mais evidentemente ligados à voz que se tem.
Muitas vezes é um fenómeno de linguagem, independentemente de comunicação e vice-versa, porque o significado, muitas vezes, não é o que está em causa no processo de comunicação, mas o efeito, por mais distorcido ou desajustado, ou inesperado, ou imprevisível, relativamente ao signo, ao símbolo, ao som, ao gesto, à palavra, ao silêncio, presenciados, percebidos, captados.
E este efeito é, antes de mais, um efeito daquele que escreve sobre aquele que escreve.
Tentar negar a individualidade, o eu, o ego, a representação que cada um faz de si próprio, não ajuda a reconhecer a necessidade de dar a cada um o espaço e a liberdade para ser o que é.
Muitas pessoas descobrem que esse espaço e essa liberdade podem ser conquistados através da escrita, ou de outras artes, ou competências. A tal ponto que se identificam sobretudo pelo que escrevem, ou representam, ou fazem, mais do que pelo que têm ou pelo que são.
“Não me perguntes quem sou, ou o que tenho, pergunta-me o que fiz ou o que faço”. Do género, “não estás a falar comigo, estás a falar com o Cristiano Ronaldo”. E se o outro insistisse “não, não, estou a falar contigo, não sei quem é o Cristiano Ronaldo”, até onde poderia ir a conversa?
São raras as pessoas que não precisam de fazer nada, nem de dizer nada, para se sentirem satisfeitas e reconhecidas e valorizadas. A essas basta-lhes existirem. Para essas raras pessoas, sim, existir é um dom, ou antes, uma dádiva. São avassaladoras pelo que possuem, ou pelas suas formas físicas e não há como não ser vassalo desse poder da forma sobre os instintos. Mas não têm mérito, porque não há virtude em ser/ter, e talvez não percebam a virtude de merecer, à qual a maioria, se não se dedica, finge que é devota.
Como nunca perguntam “quem és?”, há quem sinta necessidade de responder, correndo o risco de lhe retorquirem “alguém lhe perguntou alguma coisa?”.
Tudo acontece fora dos subentendidos, mas nada reside fora deles. Seria impensável, por exemplo, que a mãe de Sócrates lhe perguntasse “quem és tu?”. E menos ainda “quem és tu, Sócrates?”. Sócrates que só sabia que nada sabia, não entenderia uma pergunta dessas.
Mas um poeta sabe que as palavras têm aquela soberania das formas sobre os instintos, bastando-lhes existir.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Malditos

Um rio como este

não retomará o bom caminho

que nunca teve

não vai ficar na foto

não sei como vai ficar

se ficar

na minha memória

e até quando

inequívoco

sem olhos na cara

e sem ambição

eterno liquefeito

paraíso entornado

num leito

caldo de peixe cozinhado

no caleidoscópio mágico

de barcos infantis

que nunca foram resgatados

dos grandes delírios

nem arrebatados da corrente

insustentável

de um rio como este

sem dificuldades

de nunca ter havido

original

mas tão doente

que abraça os choupos

aninhados no lixo

como se ouvisse o mar

dos náufragos

e os confundisse com as brumas

da incontável memória

de vir ao mundo

dos malditos.

domingo, 18 de junho de 2023

O processo de pensamento é um processo criativo

Compreender, entender. À medida que vamos escrevendo as ideias vão-se definindo e redefinindo. 
O processo de pensamento é um processo criativo, de busca de satisfação. Pode ser doloroso e ser tormentoso se não for dirigido, focado, ordenado, proveitoso. 
Se escrevermos sobre ideias feitas, para reproduzir ideias feitas e lugares comuns, através de um discurso corrente e vulgar, estereotipado, o processo de pensamento pode ser muito reduzido e quase inexistente, dada a automatização da linguagem. Mas é muito importante para a nossa integração social e saúde mental. 
Essa comunicação superficial, que pode ser divertida, irónica, humorística, provocadora, irritante, ou simpática, está ligada a competências sociais da maior importância. 
Sobretudo entre os jovens adolescentes adquire uma dimensão que nunca é de mais realçar e deve ser promovida.
Já o processo de pensamento como um processo interno e num espaço interior que não é partilhado, senão por algum tipo de compreensão convivencial tecida por comunicação de emoções, e outros tipos de comunicação, nomeadamente linguística, que nos faz acreditar, ou desacreditar, em algum nível de partilha daquilo que pensamos num determinado momento (que pode ser meramente o efeito que pretendemos na comunicação, ainda que não corresponda, ou seja até contrário, ao que honestamente pensamos) ou, em que nos colocamos como observadores da própria convivencialidade social e tentamos entender e compreender os processos e os fenómenos aí envolvidos, porque nos surpreendemos a nós próprios como marionetas cujos cordelinhos nos escapam ao controlo, incluindo quando pensamos e escrevemos e ordenamos, definimos ou redefinimos as ideias e os pensamentos, nestes casos, o processo de pensamento nutre-se de uma necessidade de satisfação que se vai potenciando a si mesma se os mecanismos de compensações do próprio indivíduo forem funcionando.
Compreender e entender, por si sós, podem não ser suficientemente apelativos ou aliciantes, para indivíduos em determinados contextos de “ignorância”. 
Há na necessidade de compreender e de entender algum nível ou génese de conhecimento e de interesse que podem ser já um patamar avançado de entendimento e de compreensão.
Se extrapolarmos para as aprendizagens, para a Escola, teremos aqui muito material para argumentar a favor de uma educação para as aprendizagens, uma educação compreensiva dos processos físicos, psicológicos, individuais, sociais, linguísticos, da comunicação e das motivações, sem reducionismos "visgarolhos", sem prejuízo, aliás, de estes serem, eles também, processos de pensamento zarolho, que "vesgam"(visam),  compreender e entender.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Ciência e Filosofia

É importante, mas sobretudo mentalmente excitante, 

perceber, 

através do pensamento dedutivo, 

tão característico do pensamento filosófico, 

que a ciência não se funda em deduções, mas em observações e constatações impossíveis de deduzir.

 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Entre ensinar e aprender

O que acontece entre ensinar e aprender é um problema de todo o tamanho. Mas ainda bem que acontece. Não creio que esse problema possa ocorrer, por exemplo, na IA.

Esse é um problema que se vai resolvendo, mas nem o conhecemos bem, nem temos à mão a solução. O que sabemos fazer é baseado na experiência, na observação e na tradição.

O facto de querermos colocar o foco todo num problema que, paradoxal e ironicamente, estamos longe de conhecer, é uma excelente desculpa para não pensarmos que eficiência pela eficiência não faz sentido. A eficiência, pelo menos na educação, só faz o sentido que cada um lhe quiser encontrar. É quando começamos a falar de educação a todo o custo, de disciplina e adestramento humano em função de valores mais altos, que começamos a esvaziar de sentido a educação e os valores.

O enigma do que devemos fazer não se resolve com uma resposta sobre aquilo que podemos fazer. Em tempos recuados, a humanidade logrou resolver esse enigma de um modo incrivelmente sofisticado, que foi o modo de acabar com as perguntas, dando uma resposta em vez de formular outra pergunta e proibindo o questionamento.

Se não questionássemos a realidade, e tantas vezes, de vários modos, e tanto tempo, o fazemos, a simplicidade das respostas e dos veredictos seria de tal modo confortante e divertida, que aceitaríamos como um dado, por exemplo, que há humanos estúpidos e humanos inteligentes, assim como damos quase como certo que somos mais inteligentes do que as outras espécies.

Se não questionássemos a realidade, seríamos estúpidos, sem sabermos que os humanos até podem ser inteligentes.

A inteligência só falta quando interrogamos, quando perguntamos, quando duvidamos. É pois natural que o não façamos, porque assim nos sentimos totalmente esclarecidos e satisfeitos. É talvez daquelas evidências de que os humanos estão mais desprovidos mas não menos convencidos, porque ela é como um foco e uma linguagem, na justa medida do que vê, do que diz e do que induz. Não chamemos a isso cegueira. De resto, dizer a um cego que é cego não o faz ver. É fundamental que aprendamos a respeitar o cego e o surdo e o mudo, porque ver não corresponde a ter visão.

É preciso e imprescindível fazer um percurso de aprendizagem daquilo que já se sabe há muito. Não basta, relativamente a um assunto, fornecer as conclusões, ou as sínteses, do mesmo modo que, para quem não sabe escrever, não basta mostrar as palavras escritas para ela ser capaz de escrever. No conhecimento, na aprendizagem, a apropriação das trivialidades é tão fundamental como se cada aprendizagem fosse uma invenção, de novo.

Vulgarmente, quando alguém se entusiasma, por exemplo, com ideias consabidas, como se as tivesse criado, ou porque as criou, embora elas já o tenham sido por outros, logo aparecem críticos enfastiados a desmerecer novos Sócrates e Platões, como se isso já não tivesse valor. Como se o facto de alguém pensar o que outros (até filósofos importantes) já pensaram, fosse menos importante por isso.

A educação como um produto que se pode comprar é algo que se integra na tendência actual dos poderes do dinheiro, à semelhança do que acontecia com certas bulas papais. A ideia e a percepção de que o dinheiro pode comprar a virtude (em sentido amplo) andam muito próximas da ilusão de que a droga transforma um farrapo num deus.

Há uma ilusão, tavez compreensível se considerarmos o processo de pensamento, de aspiração e de adaptação dos humanos, de que podemos saber sem aprender, valorizando até alguma espécie de saber, supostamente, inato, que anda próximo do conceito de talento natural. Se há algo com que os humanos sonham, e almejam alcançar sem esforço, é prodígios. São muito facilitadores e estão em linha com a lógica da eficiência económica. Até há quem acredite que a inteligência não sabe, e que ser inteligente é fazer sem saber.

O que poucos consideram interessante e prodigioso é aprender, observar, ler, mais do que ler um livro sobre “como observar pássaros”, observá-los, de preferência com aquele livro à mão. Mais do que escrever sobre o “espaço interior”, no cárcere, sobre o cárcere, manipulando palavras, como uma IA, observar, e descrever, porque a realidade é algo que não se pode meramente deduzir, como acontece com as fantasias, ad infinitum.

É muito importante centrar a educação nas aprendizagens como processo de realização e de envolvimento pessoal nos prazeres e nos trabalhos da vida.

E isto não é utópico. Está mais próximo das necessidades naturais do que transformar a educação numa linha de formação de mecânicos, por mais necessários que estes sejam.

Utópico é considerar que ensinar “2+2=4” é liberdade de ensinar.