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terça-feira, 23 de abril de 2024

Os Direitos do Homem são como um pau de dois bicos

As declarações de direitos humanos não são um pau de dois bicos mas, pelo menos, de três. Não é correto considerá-las como a outra face (dos deveres) da mesma moeda. Sabemos da experiência corrente, quotidiana, que um dever refere-se a um exercício enquanto um direito se refere ao exercício e ao gozo. Os direitos e deveres humanos, não estou a falar de direitos e deveres de origem contratual, que são a maioria, e nestes ressalta a negociabilidade, por exemplo, da liberdade, não têm correspondência sinalagmática, de reciprocidade e igualdade restrita. Animais, crianças, incapazes, inimputáveis, são exemplos de direitos sem correlativos deveres.
Ainda antes de passar a outra questão, a metáfora dos dois bicos, aplicada de um modo geral aos direitos do homem, parece-me muito interessante e ilustra muito bem a ideia de que ao apontarmos o bico para o outro estamos a apontar outro para nós.

A questão da razão de ser, que não confundo com a fundamentação teórica, dos direitos e dos deveres, as declarações de direitos não carecem de ser complementadas com uma declaração de deveres, a não ser que não sejam universais, porque nesse caso é necessário discriminar os direitos e os deveres.
Se perguntarmos porque surgiram e porque se afirmaram as proclamações da liberdade e da igualdade, não podemos deixar de pensar que na sua génese, histórica e cultural, está uma razão de ser que é uma evidência lógica, em geral e abstrato. Uma coisa são os factos, a liberdade e a igualdade concretas e outra são os direitos, o direito. Aquelas não devem deixar de ser “julgadas” à luz do direito.
A questão da dignidade humana, em meu entender, tal como a questão da dignidade dos outros seres vivos, radica na mesma lógica do direito, da igualdade e da reciprocidade.
No caso dos humanos, a dignidade, ser digno de direitos, pode ser interpretada em várias perspetivas, mais ou menos paternalistas e hierárquicas, por exemplo, o direito como algo que é concedido por quem tem o poder (no limite, de vida e de morte), religioso, político, militar, económico, como algo que tem a sua fonte numa relação de forças de cujo atrito se alcança algum equilíbrio, no entanto, a Declaração Universal dos Direitos do Homem parece ir mais longe e colocar a tónica no facto, e no princípio, de que os direitos humanos são individuais, pessoais e não estão (não devem estar), na esfera de disponibilidade de quem quer que seja, inclusive do próprio indivíduo. Não são, nesse aspeto, um título, ou um estatuto, hierarquicamente conferido, ou concedido, como acontece, por exemplo, no caso do cidadão.
Digamos que ninguém nos pode dar o que é nosso e, menos ainda, como tantas vezes foi prática e continua a ser, vender-nos o que é nosso.

Aliás, os Direitos do Homem não dependem de estarem escritos ou reconhecidos em algum lugar, inclusive nessa Declaração, o que torna este documento, também por isso, um grande pilar da civilização.

Em termos de hierarquia, eles estão no topo da pirâmide, justamente no lugar onde as religiões colocavam Deus, por herético que isto lhes soe.
Mas esta dignidade tem o reverso da medalha: a violação de um valor tão alto é mais grave do que a violação de um valor mais baixo. E essa dignidade do homem não o dispensa, nem o põe a salvo de ter que responder por ela.

Carlos Ricardo Soares 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A inteligência é uma quantidade?

Quanta inteligência é necessária para entender o que é a inteligência? Será a IA suficientemente inteligente para responder à questão? O que é que a IA, por exemplo, entende e compreende? Que tipo de problemas é que a IA resolve? Que tipo de problemas é que a IA reconhece como tais? Para além de dar respostas a perguntas? Uma pergunta para a IA, por exemplo sobre um problema humano como a morte, não é entendida como um problema da IA. A problemas humanos ela responde com perspetivas de entendimento sobre os problemas e elenca-as. Quando é sincera adota a perspetiva de objetividade plausível das correntes conhecidas, não tem opinião e responde que não tem opiniões, sentimentos, crenças, ou preferências ideológicas e diz que pode fornecer informações sobre isso.
Mas já é frequente depararmos com robots que se fazem passar por humanos e que fingem sentir, emitem opiniões, crenças, preferências ideológicas e todo o tipo de considerações valorativas. Podem fazê-lo através de uma linguagem verbal do senso comum ou pelo recurso a imagens e audiovisual sofisticado, de modo a serem o mais atrativas e convincentes possível.
Que visão pode ter a IA sobre a vida e a morte? Ela responde que não tem visão, mas que os humanos têm e têm discutido sobre isso. Mas nada impede que uma IA “insincera”, maliciosa, ou perversa, estabeleça diálogo em que se faz passar por um humano com visão sobre os problemas humanos.
Se a inteligência, incluindo a IA, servisse para resolver problemas, práticos ou de linguagem, técnicos ou de outro tipo, mas não pudesse criar problemas, que não é suposto criar, diria que a inteligência é o que há de mais parecido com o conceito de sabedoria, visão das realidades na melhor das perspetivas possíveis.
Nem precisava de conceber a inteligência como a visão absoluta, ou do ponto de vista da eternidade, ou da totalidade, a consciência definitiva como saber se um comportamento, uma escolha é inteligente. Bastava definir inteligência como capacidade de adotar comportamentos e de fazer escolhas, como deve ser, não apenas numa perspetiva temporal e espacial atual, mas naquela perspetiva que não temos e que nada, nem ninguém, nos pode dar, de um futuro juízo final que só na imaginação dos homens tem existência.
Ainda assim, e porque a inteligência é algo de pessoal e só em parte se manifesta em jogos de linguagem, designar a IA de inteligência é reduzir o conceito de inteligência a funções de linguagem, por mais que isto nos convença de que os poderes da linguagem para produzir conhecimento, sem recurso à observação e à experimentação, tão caras à ciência experimental, ultrapassam tudo o que podemos imaginar.
Depois das críticas tão severamente concertadas aos autores de universos fechados que desenvolveram e produziram teorias e visões, a partir da sua imaginação, acabamos rendidos à capacidade de um Fernando Pessoa, de um Einstein e da IA para nos darem conta de realidades inegáveis que não é possível observar.


Carlos Ricardo Soares