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sábado, 24 de fevereiro de 2024

Malfeitores

Os sonhos eram feitos a partir

De imagens do que víamos

E partilhávamos

Mas os nossos pensamentos

Inquietavam-nos com algo

Que não sabíamos

Quando mais tarde recordávamos

Todas aquelas imagens

Do mundo à nossa volta

Eram as imagens que depois

Abandonávamos

E esquecíamos

Embora mais tarde nos surpreendam

E façam sentir saudade

Inexplicável saudade

Mas agora sabemos

Que a vida

É esta imparável mobilização

De insatisfações

De ânimos solidários

De sonhos

E de pensamentos

A desbravar espaços

A reclamar justiça

A exigir liberdade

A condenar malfeitores

A proclamar a verdade.

              Carlos Ricardo Soares

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Aproximações à verdade XXIV


Hilário: boas memórias?
Amiga: se tivesses que lembrar, em duas palavras, sem hesitar?
Hilário: uma inexplicável gratidão por todas as mulheres que me compreenderam
Amiga: e memórias más, ou menos boas?
Hilário: desculpa? não percebi. Ah, sim, o contrário?
Amiga: a vida também é feita de coisas desagradáveis
Hilário: nessas só penso quando algo me diz que já passei por isso e não gostei
Amiga: estávamos a falar de mulheres
Hilário: acredito num poder intuitivo para curto-circuitar mal entendidos
Amiga: como galã és um fracasso
Hilário: olhando para trás, diria um desastre
Amiga: mas houve mulheres que te compreenderam

Carlos Ricardo Soares

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Imperativo de verdade, imperativo moral e imperativo ético-jurídico

A ética da responsabilidade é uma redundância que se justifica pela necessidade de enfatizar o dever. Eu diria que a fonte do dever é a função de verdade inerente ao inseparável binómio consciência/racionalidade. O humano é a fonte de verdade e de falsidade, de mal e de bem, além de ser produtor de causas, mas não de efeitos.

O sentido do dever e o sentido do direito são correlativos, de um ponto de vista lógico, mas não percepcionados, ou nem sempre percepcionados como tais, ou seja, quando falamos de direitos do indivíduo, afirmar um direito da pessoa humana é, implicitamente, ou correlativamente, ou consequentemente, afirmar o dever de respeitar esse direito. Mas a afirmação e prescrição de um dever, na prática, revela-se algo mais difícil de aceitar e de sustentar e de legitimar do que afirmar e prescrever um direito. Este é entendido como uma conquista natural, como algo devido, enquanto que aquele não, antes pelo contrário, por hábito e tradição, tem havido deveres a que não correspondem direitos positivos, sobretudo para quem está numa posição de sujeição ou escravatura, e situações de direitos e privilégios a que não correspondem deveres.

Normalmente, as declarações de direitos fundamentais do homem são declarações de direitos e não de deveres, como se bastasse aquela. Talvez por serem declarações originadas de revoluções político-sociais, reivindicativas, de libertação, a tónica nos direitos pareceria, à primeira vista, ser mais favorável, evidenciando a conquista desse estatuto.

Se, de um ponto de vista lógico, parece não fazer diferença entre declaração de direitos e declaração de deveres, uma vez que a um direito corresponde um dever, o meu direito à vida implica o meu dever de respeito pela vida dos outros, na prática, é muito diferente para as pessoas dizer que têm direito, ou que têm o dever. Assim, enquanto o dever é mais expressamente prescritivo de ação, por exemplo, quando diz “deves circular pela direita”, em vez de “tens o direito de circular e de ultrapassar pela esquerda”, ou, “é proibido circular pela esquerda da faixa de rodagem”, já o direito é muito menos enfático e expressamente prescritivo. Assim, o meu direito à vida significa sobretudo que todos, incluindo eu, se devem abster de desrespeitar, violar, aquele direito. No fundo, é um dever de omissão, de proibição de uma ação censurável. Ou seja, não envolve nenhum imperativo, ou ordem, de preocupação ou responsabilidade pela vida do outro. Se em vez de dizermos a um rico poderoso que ele tem direitos fundamentais, lhe disséssemos que ele tem deveres fundamentais, o sentido e eficácia dessas prescrições poderiam ser maiores.

Diria que, desta forma, os direitos são definidos pelo mínimo de quem não pode e pelo máximo de quem pode mais, sendo que o dever também é pelo mínimo. O direito à liberdade de um carenciado, sem poder, não lhe assegura as mesmas condições do direito à liberdade de um rico e poderoso. E não impõe nenhuma obrigação específica ao rico e poderoso. Ou seja, são iguais quanto aos deveres que supõem, ou implicam, mas diferentes quanto aos direitos efetivos que envolvem.

Talvez devêssemos pensar um pouco mais no caso do código da estrada, que afirma, predominantemente, deveres e proibições, em vez de direitos e faculdades.

Não vou ao ponto de defender que, por defeito, ou como regra, o ordenamento jurídico definisse deveres e só por excepção direitos, à semelhança do direito fiscal, em que o caráter unilateral do dever é muito acentuado, mas talvez se pudesse pensar numa solução em que a afirmação geral e abstrata de um direito civil não se traduzisse, na prática, numa vantagem para os favorecidos, que não têm nenhuma obrigação ativa, e numa desvantagem para os desfavorecidos, para quem o direito se revela, praticamente, vazio de efeitos.

Quanto aos direitos fundamentais constitucionais e à declaração universal dos direitos do homem, o serem estabelecidos pelos direitos e não pelos deveres parece-me bem e está em consonância com serem declarações de direitos face aos poderes, nomeadamente políticos, do Estado.

Numa perspetiva mais civilística da ordem jurídica, há sempre quem entenda que o seu direito à vida é inviolável, mas não pense que o direito à vida dos outros o é igualmente. Para quem assim pensa poderia ser mais pedagógico prescrever o dever de respeitar o direito à vida, colocando a tónica do direito no outro e o ónus no eu. Até em tribunal, poderia ser mais fácil invocar e arguir o dignificante e nobre dever de respeitar do que o “penitente” e humilhado direito de ser respeitado.

Se há um imperativo categórico, ele há-de ser categórico para ser imperativo e não o contrário. E há-de ser categórico por força da necessidade moral, resultante da lógica de identidade e de não contradição, da função de verdade que rege o processo de pensamento consciente. É no domínio da consciência e do conhecimento, da ciência, que reside a esperança, não propriamente numa responsabilidade/responsabilização, mas numa humanidade que faz boas escolhas. Também faz falta enfatizar uma ética da responsabilidade por boas escolhas, embora seja mais popular e bem aceite punir do que sancionar positivamente. A punição não é vista como discriminação, enquanto que o reconhecimento tende a ser uma forma de desvalorizar, ainda que indiretamente, os não contemplados.
Uma das dificuldades dos humanos em conhecer a realidade está no facto de termos uma percepção qualitativa da realidade. Como organismos vivos, essa percepção é fundamental e até dispensa o conhecimento. O que eu designo de imperativo de verdade, ou simplesmente função de verdade, como necessidade lógica, princípio do pensamento lógico, ou inerente ao princípio de identidade e de não contradição, por ser meramente teórico-abstrato, e resultar de uma faculdade intelectual, de exercício, em vez de uma determinante necessidade natural inelutável, mesmo quando é ativado e exercido pelo indivíduo, tende a ceder aos reflexos de sobrevivência e a toda a cultura acomodatícia do interesse, individual e de grupos, ao ponto de ser corrente que, na maioria das situações, as pessoas só considerem verdadeiro, justo, o que lhes for favorável, ou concordante, não propriamente com o que pensam, mas com os seus interesses. O imperativo de verdade opera numa instância logico-quantitativa das representações mentais, enquanto que as percepções humanas são percepções qualitativas da realidade. Estas são fundamentais para a sobrevivência e até dispensam aquela função de verdade, que é normalmente a fonte de todos os problemas sociais. É ela que coloca em confronto os egoísmos e as subjetividades e não dá tréguas.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O ópio do povo

Karl Marx, talvez a pensar que estava a fazer uma crítica severa à religião, com a frase "A religião é o ópio do povo", talvez não tenha pensado que dificilmente lhe faria melhor elogio. Assim o merecesse a religião. Haver algo que, sem ter os efeitos secundários, intelectual e fisicamente devastadores, sem as náuseas, vómitos, ansiedade, tonturas e falta de ar, de uma droga como o ópio, tivesse apenas os efeitos de alívio da dor e da ansiedade, diminuição do sentimento de desconfiança, euforia, flash, sensação de bem-estar, tranquilidade, letargia, sonolência, seria uma solução provavelmente preferível à luta de classes.
Mas eu não queria ir por aí. O que faria arrepiar Dante Alighieri, duvido que mentes nadas e criadas em ambiente de vedetismo pimba e fervor futebolístico clubopartidário, que induzem ardilosamente um farrapo, passe a expressão, sem intenção depreciativa, a sentir-se e a comportar-se como um rei, passe a expressão, sem intenção apreciativa, tenham alguma possibilidade de serem resgatadas porque, infelizmente, julgo eu, se houvesse forma de o fazer, e outro mundo para oferecer, elas lutariam até à morte para ficarem no mundo que é o delas, até porque teriam que reaprender tudo.
Por outro lado, por mais que se promiscuam e se interpenetrem, os poderes alimentam-se uns dos outros e uns aos outros. O jogo nunca está ausente e as bancadas também fazem parte do jogo. Os espectadores, cada vez mais fazem parte do espectáculo, sobretudo se forem espectadores qualificados. Existe um efeito de comprometimento, por exemplo, entre políticos e agentes do futebol, que é mais um ingrediente a adensar as tensões. 
No turbilhão e na barafunda, todos credibilizam todos e ninguém credibiliza ninguém. 
É tudo ao molho e fé em Deus. 
Até Deus tem de estar lá e, se possível, em destaque, com a devida veneração.
A sensação que tenho é que ninguém escapa a este espectáculo total e não há instância onde possa apresentar queixa de o mundo ser tão triste assim. 
Assim, à semelhança do reino dos corruptos, traficantes e contrabandistas que zombam das alfândegas da lei e da fé. Assim, à semelhança dos que apostam na visibilidade e têm prejuízo nisso. Porque é preciso dar palco a toda a gente se se pretende conhecer a gente, dar liberdade para ser e se mostrar quem é para se poder agir em conformidade. 
No futebol, na religião, na guerra, na política, para só falar em áreas competitivas tradicionalmente conflituosas e devastadoras, em contraste com as ciências, a filosofia, as artes, a literatura, que podem ter a plumagem e os tiques daquelas, mas não têm as garras, nem o dinheiro, as insígnias, as bandeiras, os hinos, os espíritos (desportivo e outros) são o piloto, a razão e o princípio que todos esperam que prevaleça, contra tudo e contra todos. Todos esperam que, a cada momento, o seu rei seja rei para si como para os outros. E esta condição das massas, a necessidade de alguém, ou de algum fantoche, que exerça a autoridade, que se imponha a todos e não apenas a uns quantos, ainda é mais preocupante e triste se for uma fatalidade.
 
Carlos Ricardo Soares