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sábado, 13 de março de 2021

Bitolas, o papa e o sacristão

Novo ou velho não é nenhum certificado de valor, ou mérito, ou garantia de ser melhor, é apenas de ordem cronológica. Nem sequer é, penso eu, de ordem biológica. Os nossos esquemas mentais de classificação e ordenamento de tudo, seja no espaço, seja no tempo, seja na balança, seja na lógica, seja na causa, seja no efeito, seja na dor, seja no prazer, seja na memória, seja no esquecimento, seja no ganho, seja na perda, seja na verdade, seja na mentira, na fraqueza ou na virtude, no menos e no mais, no pequeno, ou no grande, no bom ou no mau, no bonito ou no feio, etc., conduzem-nos a avaliar tudo e mais alguma coisa tomando sempre qualquer bitola, ainda que seja a nossa bitola, em função seja do que for. Se assim é, parece que tem de ser. Mas não.

O grande mérito da ciência, que é um grande paradoxo, está em, ao tentar conhecer o ser, o que é, o que tem-de-ser, por força da objectividade e do rigor, descobrir que o ter-de-ser é um conjunto de possibilidades daquilo que é.

Enquanto a religião e os sistemas morais e éticos, já para não falar em político-militares e económicos, de subjugação do indivíduo, coarctando a sua vontade e os seus interesses, ainda, alegadamente, em nome do seu interesse, indivíduo que, na retórica da publicidade, é rei, mas sem que tenha uma palavra a dizer, desde que nasceu, ditam, sem pejo e sem respeito pelo indefeso indivíduo, numa tábua de deveres tão ampla e tão violentadora do ser, as leis, não naturais, do que eles devem ser, em nome de deuses ou divindades que antecipam, por revelação misericordiosa, a resposta que não precisa de ser questionada, nem procurada, sem contemplação do que eles são ou sejam, ou possam ser.

O verdadeiro problema do humano não são tanto as bitolas, mas quem as estabelece e quem não está sujeito a elas.

Aceitaríamos as leis mais duras, se todos, e em primeiro lugar quem as dita, estivessem sujeitos a elas. Não aceitaremos nem as leis mais sofríveis, se quem as dita não estiver igualmente obrigado por elas. Podemos por a tónica nos direitos ou nos deveres, tanto faz.

Supostamente, não conseguimos viver sem elas. Mas há quem viva.

Elas tornaram-se mais importantes do que nós. Mas não para nós. Nós não somos nada, as bitolas são tudo. Sobretudo no dia em que só vai haver bitolas.

A explicação da música vai estar em registos, assim como toda a explicação do universo, que até já pode existir, mas enquanto não passar pela minha cabeça, é como se não existisse, para mim.

Nenhuma ciência, filosofia, ou música, religião ou discurso poderão, todavia, abrir uma simples caixa de sapatos, ou limpar as lentes de uns óculos embaciados. Nem todo o saber do mundo o poderá fazer. Até o papa, que lê os evangelhos, precisa de um sacristão que lhe abra o livro. E o sacristão, provavelmente, não achará interesse em saber lê-lo.