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segunda-feira, 26 de abril de 2021

Conhecer a história para julgar

Parece-me que há duas questões a considerar: a história, do ponto de vista científico do historiador, e a história enquanto objecto de julgamento, por ser acção humana e toda a acção humana ser susceptível de submissão a algum tipo de julgamento.

Quanto à averiguação e determinação dos factos, esta não deve, de modo algum, ser contaminada por preconceitos, prejuízos ou subjectivismos, valorativos ou outros, porque isso poria em causa a credibilidade e a validade dos mesmos, pelo menos nos aspectos em que os factos tivessem carácter mais descritivo ou narrativo.

Quanto a julgar a história, talvez mais importante do que conhecer a história seja conhecer a história para podermos julgar a história e encontrar responsáveis, os culpados e os bons, credores do nosso respeito e apreço.

Mas o julgamento da história não pode deixar de ser feito, quer à luz dos valores e demais circunstâncias do tempo em que ocorreram os factos, quer à luz dos valores actuais.

Não se trata de ignorar ou de apagar a história, bem pelo contrário, é necessário conhecê-la para podermos julgá-la.

E, para podermos julgá-la, é necessário adoptar critérios e aplicá-los. Não serve um qualquer julgamento. Só é admissível um julgamento justo. Que possa contribuir para a visão verdadeira, como a única que nos poderá ajudar a evitar e impedir más escolhas.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Cultura/dever-ser/sabedoria

As preocupações e as inquietações da nossa cultura, como processos humanos que, paradoxalmente, tendem a tornar-nos tanto piores, quanto mais deliberadamente procuram tornar-nos melhores, ou, pelo menos, num certo sentido de melhor, também são cultura.

A cultura, na minha perspectiva, é de matriz normativa. Embora a normatividade ética, moral, religiosa, jurídica, estética, do conhecimento, da política, etc., seja fundamentalmente o mesmo fenómeno de dever-ser, não deixam de ter expressões, conteúdos, objectivos e sanções diferenciados. Importa salientar que, se assim for, é uma realidade, como foi realidade toda a sucessão de guerras e de monstruosidades perpetradas pelos "melhores" que a cultura produziu.

A cultura continuará a fazer aquilo que sabemos e queremos, a todo o custo, fazer, ou, por outra, o homem continuará a fazer o jogo que é suposto dever saber jogar.

As vozes que se levantaram ao longo da história contra a cultura dos guerreiros, de violência e de dominação, de subjugação e de superação dos adversários e dos inimigos, além dos padecimentos, do choro e lamentos, dessa inenarrável e insuportável realidade, pouco puderam mudar. Até o cristianismo, que ensaiou inverter o conceito de homem melhor, acabou por se revelar o maior promotor daquilo que criticava e censurava. Mas os outros, os que fizeram tudo o que estava ao seu alcance para realizar e personificar os valores da civilização, que enfrentaram e anularam o poder dos inimigos, mais não fizeram do que reforçar e promover as razões da cultura de guerra. De tal modo que as sociedades, ainda hoje, são guerreiras e implacáveis para com os fracos, os inúteis, os fardos, os deficientes, os inábeis, os ignorantes, os inaptos para o combate.  Quando descansam, curam as feridas, reorganizam as forças e os recursos, fomentam as suas economias e divertem as populações, não se distraem nenhum momento da principal razão de tudo isso: recuperar a força, o poder militar. Tudo está preordenado e instrumentalizado para esse grande fim, a que chamam Paz.

E não é apenas porque se sentem ameaçadas no quadro do jogo político e militar. Se não for para se defenderem de um ataque, é para impedirem que desrespeitem as regras do jogo, chamemos-lhes assim. E se desrespeitam as regras do jogo, há que obrigar a repor a situação e a respeitar. E se as regras do jogo permitem certos avanços para uns, também permitem para os outros, mas isto não é aceite pelos poderosos. Aliás, só há liberdade para os que podem.

Esta é a cultura dos melhores, dos heroísmos, dos invencíveis, dos laureados, dos troféus, dos pódiuns, e dos que clamam por vingança, que nem fingem acreditar na justiça.

E os melhores são aqueles que superam e vencem os desafios de salvaguarda dos valores em que acreditam. São os que ganham os jogos e os campeonatos, em todos os campos ou, pelo menos, mais do que os outros.

Os melhores no sentido de terem mais bondade, de se tornarem mais solidários, pacíficos, tolerantes, empáticos, dotados de compaixão, de paciência, de generosidade, companheirismo e de amor pelos outros, não deixam de ser, como os outros, expressão e fruto da cultura, mas não há competição nestes domínios.

É lancinante pensar que o dever-ser que a cultura é, seja expressão de sabedoria. Principalmente, quando são os melhores, sempre em nome do que “escolhem”, ou “elegem” como melhor, a perpetrar o pior.

domingo, 11 de abril de 2021

Arbitragens e batota

A cultura partidária, clubística, religiosa, comercial, mercantil, não escapam de uma determinante, que a todos entristece, ou exalta de euforia, consoante as coisas sejam desfavoráveis ou favoráveis.

Essa determinante, que em minha opinião, só por si, já justificaria que não há justiça privada (justiça privada é um contrassenso), é a mesma que faz que alguém acredite que o seu Deus é mais forte que o dos outros, que justo é o que lhe é favorável (o que for desfavorável é sempre injusto), que nenhum partido esteja na política para promover as melhores escolhas e soluções, em geral e abstracto, mas para impor as suas escolhas e soluções como sendo as melhores, do mesmo modo que jogar é para ganhar.

E, quando se trata de inimigos, já nem é um jogo, mas uma guerra. Os inimigos nunca têm razão. Esta mentalidade arcaica, no fundo, embora saiba que a batota não faz parte do jogo e não a aceite, também está construída sobre a constatação, ou a convicção, da sua inevitabilidade.

Por mais que a odiemos e haja a preocupação educacional de a mascarar com a eloquência de grandes e belos princípios e leis e símbolos e hinos, templos e basílicas.

Nascemos e crescemos a ser educados nas virtudes como se elas fossem universais, mas cedo aprendemos que o egoísmo e a disputa pelos interesses é que são a regra, são promovidos como ideologia estrutural, e até como um valor.

Assim, todos os árbitros são maus quando arbitram contra nós. Mas isso também é o que faz deles bons para os outros, quando beneficiam da arbitragem.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Polícia do pensamento


A produção literária, mais do que a produção de livros, tende a ser banalizada como um efeito da abundância, mas isto não significa que tenha perdido a importância nem, muito menos, que nunca a tivesse tido.

Ficamos estupefactos quando lemos que alguns dos maiores mentores da nossa civilização não deixaram obra escrita (Sócrates, Jesus Cristo). Eu acredito que, se o tivessem feito, tinham assegurado menos o seu futuro, não obstante, este dependeu da escrita e da sua divulgação.

Também sabemos de casos notáveis, de que Descartes é mero exemplo, que não publicaram em vida, por medo da polícia do pensamento que, na época, metia na ordem Galileu Galilei.

Nos tempos que correm tudo isso parece ficção e é difícil, para não dizer impossível, ensinar às crianças que estamos a falar de absurdidades cometidas por estúpidos, provavelmente assassinos, contra génios da humanidade a quem devemos imenso.

Mas a questão nem é essa.

Génio ou louco, qualquer livro e qualquer objecto cultural deve estar a salvo de qualquer juízo de qualquer humano.

Não é só pela falta de confiança nos humanos para julgar seja o que for, mas mais pela necessidade de não nos submetermos uns aos outros. Isto é verdadeiramente crucial.

Nenhum humano, seja em nome de quem for, tampouco em nome do humano, deverá poder negar este.

Os livros podem conter aberrações, como sabemos que contêm os mais sagrados, adorados, celebrados e respeitados. Mas não devem deixar de existir, não devem ser proibidos, não devem ser destruídos, porque não fazem mal a ninguém. Menos ainda a quem não os ler.

São objectos tão insignificantes, tão quietos, tão inofensivos, só papel e tinta em caracteres, nem sequer têm ideias, não pensam, nem falam, nem pisca-piscam, exigem tanta competência e tanto empenho para serem lidos…

É impossível não odiar quem se sente incomodado com a inocuidade de um livro.

Como justificar guerras por causa de cem ou duzentas folhas de papel? A culpa é de um livro? Dessem um tiro no livro. Enforcassem o livro. Limpassem o cu ao livro. Mas não.

O problema dos livros é que eles, mesmo cobertos de teias de aranha, são terríveis. Dentro deles está algo que, quando entra num cérebro, começa a produzir efeitos. Quaisquer que sejam estes efeitos, provocar a polícia do pensamento (coisa terrível de imaginar, mas que é a nossa realidade essencial, o humano é essencialmente polícia do pensamento, definir o humano implica dizer que é um EU, que é construído de base, de raiz, por censura, autoridade, dever, polícia, castigo, violência, deus, pai, poder, dever-ser, punição) não é o menor deles.

A liberdade ainda está a ser inventada pelos livros. Não propriamente pelos livros, mas enquanto eles são o suporte dessa experiência que a memória, só por si, deixa escapar.

E não adianta querer destruir os documentos para destruir a história.

Destruir a história dos outros é destruir a nossa.

No fim, fica uma história, a única que existe.

sábado, 3 de abril de 2021

A invenção da liberdade


Que fragilidade é essa

Que vês uma foto e desfaleces

Como se ela disparasse balas

Do tempo em que nada existia

Ouves uma canção e adoeces 

Como se a música fosse um veneno 

Só teu

Vês uma mulher e falas 

Sozinho

Como se a sombra dela

Te possuísse

Começas a escrever um verso

E antes que enlouqueças

Invocas um exército de razões

Para adormeceres

E perseguires

O rumo dos ladrões

De todo o mistério?

 

Que liberdade é essa

Que podes fazer

Mas não fazes

queres pensar

E não obedeces

Queres não ter

E tens

Dizer

E não dizes?


Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 2 de abril de 2021

As expectativas da democracia


A nossa democracia, apesar do foguetório com que se anuncia, e das mistificações políticas à volta de fogueiras e de bandeiras e de marcas que valem mais do que programas, tem sido do mais anémico que há. As expectativas criadas são sempre imensas. Respeita-se mais a palavra Democracia do que o Povo.
O povo, induzido pelos altifalantes e pelas girândolas, amplificados pelos telejornais sempre e cada vez mais apocalípticos, numa espiral de temporizador de contagem regressiva ao vivo com animações de feira, lá foi trocando estas e os arraiais minhotos pelos hipermercados e pelas confissões ao domicílio, entre guerras frias e cataclismos mais globalizados do que os benefícios das tecnologias, ora aliciado por algum produto milagroso, ora fascinado por promessas de liberdade, de riqueza e de justiça, no fim de contas, confirma o que sempre suspeitou, que não foi enganado ao trocar as igrejas pelas assembleias e pelos parlamentos.
O povo nem sequer pode invocar como desculpa que foi enganado.
Se há coisa que todos sabemos é que a democracia é mais uma das charneiras, mas que goza de presunção de indiscutível superioridade a qualquer religião ou igreja, através das quais os poderes se afirmam e se impõem. Devidamente avalizados, governos e oposições, passados os momentos populares e pseudofestivos das bebedeiras eleitorais, entram em modo sonâmbulo, também conhecido como hibernação, ou fantasmático, como convém à natureza da máquina dos poderes.
Mas a democracia não deixa de ser uma máquina em que as oposições nada fazem que não pudesse ser feito sem elas.
Nenhum dos grandes escândalos em democracia foi despoletado pelas oposições. Estas são sempre quem menos sabe do que andam a fazer nos bastidores do poder.
A máscara da democracia é demasiado valiosa para ser usada indiscriminadamente. Quando a democracia não é mais do que um simulacro de democracia, temos de começar a pensar em que é que a palavra corresponde à realidade e se devemos transformar a realidade ou a palavra.
A descentralização, por sua vez, não deve ser outro expediente para centralizar ainda mais o que nunca devia ter sido centralizado. Há matérias, e esta é uma delas, em que não podemos pensar acertadamente senão através de números. Tudo o mais que venha embrulhado em retórica só serve para nos distrair e desprevenir de que não poderemos queixar-nos se formos enganados.