A produção literária, mais do que a produção de livros, tende a ser
banalizada como um efeito da abundância, mas isto não significa que tenha
perdido a importância nem, muito menos, que nunca a tivesse tido.
Ficamos estupefactos quando lemos que alguns dos maiores mentores da
nossa civilização não deixaram obra escrita (Sócrates, Jesus Cristo). Eu
acredito que, se o tivessem feito, tinham assegurado menos o seu futuro, não
obstante, este dependeu da escrita e da sua divulgação.
Também sabemos de casos notáveis, de que Descartes é mero exemplo, que
não publicaram em vida, por medo da polícia do pensamento que, na época, metia
na ordem Galileu Galilei.
Nos tempos que correm tudo isso parece ficção e é difícil, para não dizer
impossível, ensinar às crianças que estamos a falar de absurdidades cometidas
por estúpidos, provavelmente assassinos, contra génios da humanidade a quem
devemos imenso.
Mas a questão nem é essa.
Génio ou louco, qualquer livro e qualquer objecto cultural deve estar a
salvo de qualquer juízo de qualquer humano.
Não é só pela falta de confiança nos humanos para julgar seja o que for,
mas mais pela necessidade de não nos submetermos uns aos outros. Isto é
verdadeiramente crucial.
Nenhum humano, seja em nome de quem for, tampouco em nome do humano,
deverá poder negar este.
Os livros podem conter aberrações, como sabemos que contêm os mais sagrados,
adorados, celebrados e respeitados. Mas não devem deixar de existir, não devem
ser proibidos, não devem ser destruídos, porque não fazem mal a ninguém. Menos
ainda a quem não os ler.
São objectos tão insignificantes, tão quietos, tão inofensivos, só papel
e tinta em caracteres, nem sequer têm ideias, não pensam, nem falam, nem
pisca-piscam, exigem tanta competência e tanto empenho para serem lidos…
É impossível não odiar quem se sente incomodado com a inocuidade de um
livro.
Como justificar guerras por causa de cem ou duzentas folhas de papel? A
culpa é de um livro? Dessem um tiro no livro. Enforcassem o livro. Limpassem o
cu ao livro. Mas não.
O problema dos livros é que eles, mesmo cobertos de teias de aranha, são
terríveis. Dentro deles está algo que, quando entra num cérebro, começa a
produzir efeitos. Quaisquer que sejam estes efeitos, provocar a polícia do
pensamento (coisa terrível de imaginar, mas que é a nossa realidade essencial,
o humano é essencialmente polícia do pensamento, definir o humano implica dizer
que é um EU, que é construído de base, de raiz, por censura, autoridade, dever,
polícia, castigo, violência, deus, pai, poder, dever-ser, punição) não é o
menor deles.
A liberdade ainda está a ser inventada pelos livros. Não propriamente
pelos livros, mas enquanto eles são o suporte dessa experiência que a memória,
só por si, deixa escapar.
E não adianta querer destruir os documentos para destruir a história.
Destruir a história dos outros é destruir a nossa.
No fim, fica uma história, a única que existe.
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