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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Gosto do Natal

Gosto do Natal
Mas não gostava que o Natal
Fosse todos os dias

Já gostei do Natal
Por ser época de guloseimas
E de magia
E tinha graça ouvir dizer
Boas Festas
Feliz Natal
E Bom Ano Novo
Na cidade enfeitada de alegria

Depois gostei do Natal
Porque me lembrava natais
Que já não pode haver
E era triste às vezes
Andar sozinho pelas ruas
De um Natal futuro
A ouvir canções
Para esquecer

Mais tarde gostei do Natal
Por ser época festiva
Ideal para me declarar humano
Como se tivesse andado distraído disso
Então sem me perguntarem
Se gostava do Natal
Eu dizia que ninguém tem o direito
De ser feliz
E menos ainda de fingir que o é
Enquanto houver alguém triste
E não importa o que isso é
E ouvi quem disse
Que o Natal é uma chatice
Que o Natal nada lhes diz
E quem repetisse
Sem nada de original
Que todos os dias deviam
Ser dias de Natal

Hoje gosto do Natal
Porque é Natal.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O livro de todo o conhecimento(XII)

É difícil decidir o que fazer nesta tendência continuada de descida das cotações dos títulos em Bolsa. Vender agora? Só acreditando que a queda se irá acentuar. Mas quando será o momento para voltar a comprar? E se as cotações continuarem a cair mais e mais? O meu primeiro pensamento, depois de uma desvalorização de dez a vinte por cento de alguns dos principais títulos tem sido comprar, não é vender, porque acredito que eles vão recuperar de um dia para o outro. O optimismo ou a expectativa positiva, muitas vezes, impede as pessoas de tomarem decisões sensatas. Mas o pessimismo pode levar a decisões precipitadas de que nos arrependemos.
Deixei o computador ligado e fui tomar o pequeno-almoço. Ainda era cedo para ligar a Teresa. Era preciso ouvir o que havia, afinal, para saber sobre maus tratos, violações, masoquismo, aberrações sexuais… . E saber junto da polícia qual foi o procedimento seguido no que respeita ao meu automóvel.
Não estava com fome, mas engoli a custo uma torrada com manteiga e uma chávena de leite quente com chocolate. Contrariamente ao dia de ontem, que começou normalmente, no dia de hoje, já comecei com muitos problemas para enfrentar.
Às nove horas e dezassete marquei o número de Teresa, mas não atendeu. Liguei para a enfermeira Cândida.
- Sim, sim, Dr. Veríssimo?
- Olá enfermeira, bom dia, está tudo bem?
- Ainda bem que ligou, que aflição, meu Deus! Tentei inúmeras vezes contactá-lo, mas o Dr. tinha o telemóvel inacessível. Já estava preparada para ir à polícia se não conseguisse localizá-lo. Que é que lhe aconteceu ontem?
- Como? O que é que soube?
- Pouco depois de lhe ter telefonado ontem a avisar que havia muitas coisas escabrosas que deveria conhecer sobre Teresa e A. Carrancas, recebi uma mensagem anónima a dizer que o carro do Dr. foi encontrado abandonado sobre a ponte D. Pelayo.
- Só isso?
- Só.
- E foi. Eu também soube disso pela própria polícia.
- Que é que aconteceu?
- O que eu sei e só isto lhe garanto é que enquanto estive no tribunal com a Teresa, alguém me furtou o carro e eu vim para casa de táxi.
- Ai que alívio! Puxa!
Fiquei apreensivo, mesmo preocupado, com a origem e o possível significado da mensagem anónima que alguém enviou à enfermeira. O furto do automóvel não aconteceu por acaso e havia sinais de estar relacionado com algo mais em que me queriam envolver. Mas o que seria? Não quis que a enfermeira percebesse quanta importância eu dava àquela mensagem e, fingindo ignorar o teor da mesma, mudei de assunto.
- Enfermeira Cândida, não consegui contactar com a Teresa há momentos, por isso lhe liguei.
- Teresa está em casa mas tem o telemóvel desligado até tarde.
- Era para saber dos tais pormenores escabrosos a que se referiu ontem e que podem ter relevância para o processo.
- Se não se importar, acho preferível de tarde, às 15horas. Pode ser?
- Pode, está combinado então.
Pela janela pude ver a melhoria do tempo. Já não chovia e o vento cessara. O Às andava a inspeccionar o exterior e não se detinha a farejar sinais de presença humana recente. Nos últimos tempos a casa parecia-me assustadora, tanto pela sua história como pelas suas dimensões. Havia imensas coisas que o Às não poderia farejar. E tornara-se uma obsessão que exigia todo o tempo de mim. A última descoberta que fiz, numa tímida incursão pelos subterrâneos, no dia vinte e quatro, foi um conjunto de vinte e quatro bíblias manuscritas, em muito bom estado de conservação. Essa descoberta criou-me receios e preocupações adicionais, nomeadamente, quanto a defesa e segurança de um património que suponho de valor inestimável. Mera coincidência ou não, o facto de serem vinte e quatro obriga-me a especulações e conjecturas, a primeira das quais foi ser esse o número de horas que tem o dia e, logo a seguir, o simples facto de as ter descoberto no dia vinte e quatro. Depois, quando decidi voltar a colocá-las no local donde as havia retirado, os sinos do campanário da igreja badalavam as vinte e quatro horas.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O livro de todo o conhecimento(XI)

A.Carrancas continuou desaparecido sem dar sinais de vida. Embora a polícia não se tenha convencido de que o facto de o carro aparecer abandonado no meio da ponte se tenha ficado a dever à simples coincidência da falta de combustível, o certo é que não apareceu nenhum cadáver ou outros indícios que pudessem relacionar o veículo com outro crime que não fosse o de furto de que eu, entretanto, me queixara formalmente.
Nos dez anos seguintes, vários cadáveres foram retirados das águas daquele rio. Porém, nenhum deles, pela ordem natural das coisas e pelas regras da mais elementar experiência, poderiam estar relacionados com o caso do meu automóvel. Seis desses casos tiveram cabal explicação no próprio dia da sua ocorrência. Só um ficou por explicar, mas não podia estar relacionado com o caso do carro abandonado sobre a ponte, pela óbvia razão de a morte ter ocorrido alguns anos depois.
Cada vez mais me deixei seduzir pela tese da morte de A. Carrancas e não pela ideia de que estivesse simplesmente desaparecido, como toda a gente parecia supor, ou parecia fazer crer.
Era muito mais interessante para todos pensar-se que A. Carrancas andava a monte, fugindo à justiça. Mas ele podia ter sido assassinado, ou simplesmente ter morrido, dias antes da alegada tentativa de assassínio de Teresa e esta, conluiada com a enfermeira, terem feito desaparecer ou terem ocultado o cadáver e simulado aquela tentativa, atribuindo-a a A.Carrancas e queixando-se à polícia de um crime que ele não cometeu e pelo qual não estaria em condições de alguma vez responder.
O caso andava a absorver-me demasiado e, quanto mais pensava numa possível explicação que ajudasse a desvendar o intrincado problema, mais ele se intricava.
Depois do que Teresa e Cândida me contaram sobre abusos sexuais e ofensas corporais, pareceu-me ser altura de me amparar ao saber e experiência do meu colega Carlos Soares.
Este ilustre advogado também foi de opinião que eu tinha dado fé a uma determinada versão e não conseguia ser imparcial na ponderação das variáveis. Considerava os meus palpites demasiado inquinados de emoções e afectos e representações prévias, como se eu tivesse interesse num desfecho e não noutro. A tese da morte parecia-lhe tão plausível como a da não morte.
- Vejamos, dizia ele - A. Carrancas pode ter um efectivo interesse em que alguém pense como o colega está a pensar. Então, o facto de estar desaparecido permite e, de certo modo, até obriga a que se pense nisso mesmo.
- Quer dizer que A.Carrancas pode ter desaparecido com o intuito de fazer pensar que foi assassinado?
- Sim.
- Mas a minha tese é que ele foi assassinado e que pretendem fazer pensar que está simplesmente desaparecido para fugir à justiça.
- Alguma coisa o impede de pensar, por exemplo, que tudo não passa de uma grande simulação, de um grande embuste, para entreter e enganar a justiça.
- Como? Que a tentativa de homicídio de Teresa, os maus tratos, a queixa, a cadeira de rodas, o desaparecimento de A. Carrancas, podem não passar de um embuste?
- Isso mesmo. E vou mais longe, caro colega, prepare-se para todo o tipo de surpresas. Não descarte a hipótese de A. Carrancas continuar no melhor dos relacionamentos com Teresa, a encontrar-se com ela, enquanto o ex.mo colega dá voltas na cama sem poder adormecer a pensar que algures alguém ocultou o seu cadáver depois de ter cometido um brutal homicídio.
Neste momento não pude deixar de rir na cara do colega Carlos Soares. Mas este não se descompôs:
- Ria, ria à vontade que lhe faz bem.
- Desculpe, mas não estava preparado para ouvir uma coisa destas.
- Convém estar preparado para tudo. Aceite como natural a possibilidade de, um dia destes, sem esperar e sem o desejar, dar de caras com ele na rua ou em casa de Teresa…
- Não, agora acho que o colega está a brincar. Não está a falar a sério, pois não?
- Estou, estou. E ao dizer-lhe tudo isto suponho, obviamente, que A. Carrancas existiu alguma vez e não é também uma invenção.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Há pausas e momentos

Há pausas e momentos
Que te sinto
Tão perto que te abraço
E tu não estás
E ainda assim
Imagino como é doce
O sorriso
E os beijos
Que és capaz

Há pausas e momentos
Que te sinto
Tão longe mas tão certo
Que virás
Que canto e danço
E brinco
Como imagino
Que serás

Há pausas e momentos
Que me sabem
À mínima distância
Entre nós
Ir além de ti
O que separa
Nem tempo tem
Para o conseguir

Há pausas e momentos
Que me sabes
Mais quente
Que a promessa
Que farás
Mais presente de futuro
Se a razão do tempo
Tanto faz

Há pausas e momentos
Cruciais
Causa(dores) do universo
Em expansão
De tão plenos
Da falta que me fazes
Senão de ser humana
Esta paixão

Há pausas e momentos
Tão profundos
Fechados em abismos
Tão carnais
Que a alma
Em ânsias de refúgio
Ecoa juramentos
Imorais

Há pausas e momentos
Que contemplo
À sombra das aves
Que passarem
Sem eco
A solidão
Dos sonhos
Me abandonarem

Há pausas e momentos
De dizer
Os movimentos de asas
E de mar
O sono da ave
Rente às ondas
Que não chega
A despertar

Há pausas e momentos
Impossíveis
Perfeitos como espero
E acredito
Um pouco de
Eternidade
E amor
No infinito.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O livro de todo o conhecimento(X)

Dezassete de Outubro de 2007. Acordei várias vezes de madrugada. Para me certificar de que continuava vivo? De novo com a ideia obsidiante do “Livro de Todo o Conhecimento”. Cada vez me parecia mais distante o momento em que teria concentração e disponibilidade mental para começar a escrever a minha obra. Havia sempre coisas a intrometerem-se, reclamando maior urgência e eu cedendo, cedendo. Foi assim há anos e continua a ser. Eu já tinha deixado a sociedade de advogados em que trabalhei cinco anos para poder organizar e controlar melhor a minha vida. Iria exercer advocacia em prática isolada para não perder o contacto com o Direito e o Foro. Mas estava determinado a dedicar-me à escrita por ser o modo que eu necessito de dedicar-me à vida.
Desde a morte da minha mulher e do meu filho que entrei em profunda depressão e deixei de trabalhar como advogado. Passei a frequentar seminários e cursos diversos, para manter contacto com a realidade social e retomei a prática do ténis, por aconselhamento médico.
Ainda não consigo explicar muito bem a mim próprio porque aceitei trabalhar no caso de Teresa.
Não me levantei para escrever. Estava demasiado cansado e tinha a cabeça vazia. Fiquei a ouvir uivos do vento ciclónico pelas frinchas das portas e das janelas e a agitação das árvores. De quando em vez, o estrépito dos ramos a rachar. Pensei: os criminosos não têm rasgo nem têmpera para se aventurarem com um tempo destes. Mas nunca fiando. À cautela, deitei-me com uma arma carregada de oito balas, com pontaria por infra-vermelhos mais meia dúzia de carregadores num cinturão, à mão de semear. Se alguém se aventurasse a incomodar-me, mesmo que tivesse artes para driblar o Às, que é muito difícil de iludir, com gatos ou coelhos não conseguiriam, (com uma cadela é diferente) ainda haveria uns obstáculos para ultrapassar antes de chegarem até mim. E não é que a ideia da cadela ficou a fervilhar na minha cabeça? Estaria a cadela para o Às assim como Teresa está para mim? Até parece matemática, mas…E se isto fizesse sentido?

sábado, 28 de novembro de 2009

As palavras que me dizes

Como é belo saber ver
Dos horizontes sem fim
Dos dias que vi nascer
O que há dentro de mim
Que deita tudo a perder
Se não sei para onde vou
Como é belo compreender
Que o tempo nunca parou

Nas portas que vi abrir
Da terra que nós pisamos
Como é belo descobrir
Verdades que já erramos
Mas são do sol e da chuva
E dessa canção do vento
Que nos toca e nos ajuda
Com seu belo andamento

Como é belo acreditar
E em perfeito juízo
Não expulsar do paraíso
Aquele que o criou
É tão belo compreender
Que o amor lança raízes
Como é belo ouvir dizer
As palavras que me dizes.

domingo, 22 de novembro de 2009

Foste embora

Foste embora
E deixaste os girassóis
Aflitos
Na tua ausência
Ouço os seus gritos
Enquanto morrem
Atormentando o dia
Mais lindo do verão
Até eu
Que não tenho coração
E não mereço o céu
Nem o sol
Te suplico
Que regresses à terra.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O livro de todo o conhecimento (IX)

Aquela última frase inquietou-me mais do que eu podia suportar. Despoletou uma catadupa de cenários assustadores na minha mente. Com quem estive a falar ao telemóvel? Seria um agente da polícia? Ou o próprio ladrão do automóvel? E se o ladrão do automóvel se tivesse suicidado lançando-se ao rio? Pode muito bem ser a polícia, mas também pode ser o ladrão do automóvel a fazer-se passar por polícia para saber do meu paradeiro e manter-me sob controlo. O próprio furto do meu carro pode estar relacionado com o facto de eu ser advogado de Teresa no processo contra o marido A. Carrancas. Se assim for, será pouco todo o cuidado a ter com comunicações telefónicas, informações e quejandas. Convém manter-me alerta, à defesa. E se o ladrão tivesse usado o meu carro para assassinar alguém, por exemplo,Teresa, lançando-a ao rio, abandonando o carro de seguida? E porque haveria de deixar o carro sobre a ponte? Qual poderia ser o verdadeiro objectivo daquele telefonema? E eu? Como provaria que me tinham furtado o carro? A única pessoa a quem referi isso foi ao taxista. Poderia ele confirmar que lho referi e a hora? E isso seria suficiente para afastar a suspeita que podia recair sobre mim? É que também eu começo a estar envolvido numa investigação criminal e não apenas como advogado de Teresa.
Escureceu abruptamente e logo se levantou um vendaval ruidoso. Trovões ainda distantes, se foram tornando mais próximos relampejando cada vez mais violentamente sendo cada vez mais curto o intervalo entre o relâmpago e o trovão. Das imensas nuvens negras sobre as colinas cai uma chuva torrencial.
O Às veio esticar-se a meus pés, com o focinho entre as patas dianteiras e as orelhas afitadas, ora uma, ora a outra, ora ambas. Eu interpreto esta postura como um factor positivo. Habituei-me a confiar no meu cão. Mas ele faz sempre isso quando eu estou sentado a escrever, como agora.
Cada trovão ecoa pelos corredores e compartimentos da casa e ressoa pelo sistema de passagens subterrâneas em que há anos ninguém entra e onde me lembro de ter estado uma única vez, num dos túneis.
Creio que passei a vida a evitar pensar que esta casa, onde nasci há trinta anos, foi palco de acontecimentos tenebrosos, sangrentos, em que pereceram violentamente dezenas de pessoas, cujas ossadas, presumo estarem espalhadas pelas passagens subterrâneas.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O livro de todo o conhecimento (VIII)

Tinha mudado de ideias. Precisava de rever os planos com calma. Paguei ao taxista. Não iria com o Às para as Várzeas. Estava a escurecer. Um tempo abafado de trovão. O ar começava a agitar a copa das árvores. O amarelo do sol no verde das plantas provocava um efeito de miragem e de estranha sede. Para dizer a verdade, havia mais insectos e aves no ar do que o normal. Daí a pouco poderia começar a trovejar. O meu cão estava irrequieto e desconcentrado. Trocava os latidos pelos uivos, mas parecia assustar-se com o próprio uivo.
- Sossega Às, sossega. Já percebi que se aproxima a borrasca.
Abri a mala do carro, ajudei-o a saltar para não se magoar e fomos a pé para casa, não mais de cem metros adiante. O Às precedeu-me com uma grande corrida. Fez o reconhecimento do terreno e voltou para junto de mim, tranquilizando-me de que o caminho estava livre de perigos.
O momento de regressar a casa, até há cerca de dois anos, era muito ansiado, mas desde então tem sido muito deprimente. Custa-me sempre imenso regressar. Já não tenho ninguém à espera, e temo que algum bandido ou ladrão se introduza lá dentro para me assaltar. Lúcia, minha mulher e Bertílio, nosso filho de três anos, pereceram tragicamente quando o avião em que seguiam, para visitar os meus sogros em Grenoble, explodiu. Os avós e o neto não chegaram a conhecer-se pessoalmente. Só por fotografias. A viagem foi precedida de grande entusiasmo e os avós tinham-lhes preparado uma recepção muito especial. As suspeitas de acto terrorista foram confirmadas. No inquérito, concluiu-se que a queda foi provocada pela explosão de um engenho a bordo. Às vezes penso que teria sido melhor se os tivesse acompanhado. Mas não pude, por motivos profissionais inadiáveis. Acabei por não poder fazer o trabalho na mesma, de tal modo fui atingido pela infelicidade da sua perda. Nesse mesmo ano, faleceram também, primeiro a minha mãe, de enfarte do miocárdio e, um mês depois, o meu pai de doença prolongada.
Dei duas voltas à chave e abri a porta para o Às entrar. Se tivesse farejado algo estranho já tinha dado sinal. Entrou normalmente, sem hesitações. Eu segui-o. Carreguei no interruptor, mas não havia luz.
Nesse momento tocou o telemóvel. Respondi:
- Sim, o próprio.
- Somos da PSP. O senhor está bem? Está em segurança?
- Estou.
- Onde está?
- Vão-me desculpar mas, neste momento, acho mais seguro não o dizer por telefone.
- Localizámos uma viatura que está registada em seu nome.
- Onde?
- Sobre a ponte Nova, em Fragoso. Porque é que deixou o carro aqui? Está perto?
- Não, estou bastante longe e não deixei o carro aí. Roubaram-mo hoje, ao início da tarde.
- Como? Vai ter que explicar. Vamos elaborar um auto e remover a viatura.
- Se são da PSP sabem como devem proceder, mas considerem a conveniência de recolher o máximo de indícios possíveis sobre o facto de a viatura ter sido abandonada nesse local depois de ter sido furtada.
- É o que estamos a fazer. É tudo muito estranho. Porque é que não apresentou queixa?
- Não tive tempo.
- Reze para que não apareça ninguém morto no rio.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O livro de todo o conhecimento (VII)

Apeteceu-me dizer ao taxista para me deixar ali mesmo. Afinal, desde que vi Teresa a partir no táxi até ao susto de ver o taxista inanimado sobre o volante, nunca deixei de pensar no desaparecimento do meu carro e, na verdade, imensas outras interrogações me passaram pela mente. Até que ponto o meu fascínio por Teresa estava a toldar-me o raciocínio? Não estaria a levar demasiado longe os meus deveres profissionais ao propor-me acompanhá-la e protegê-la sem ser solicitado, baseando-me tão só na minha suposição de que ela corria perigo? Concretamente, o que é que eu sabia e como o soube? Tudo o que sabia me tinha sido carreado pela própria queixosa, Teresa, que nunca me consultara a sós e que, por estar incapacitada de se deslocar ao meu escritório, pediu que me deslocasse à sua residência. Aí, sempre acompanhada da enfermeira Cândida, foi-me narrando alguns factos. Tive sempre em especial consideração o pormenor, eventualmente não despiciendo, de nem todos os factos me terem sido narrados pela própria Teresa, uma vez que a enfermeira, obviamente com o assentimento daquela, me transmitiu boa parte deles. À primeira vista, tê-lo-á feito por me conhecer melhor do que Teresa e por esta lhe ter confiado o que aconteceu. Mas, agora, de repente, assaltou-me a dúvida. E o que eu sei resume-se, afinal, ao seguinte: Teresa foi atirada do terceiro andar, pelo marido, enquanto dormia. Teresa tem fortes suspeitas de que o marido esteja ligado ao mundo do crime e que pretendesse matá-la para herdar uma pequena fortuna e para ver-se livre de uma testemunha fulcral das suas actividades ilícitas, nomeadamente contra a Fazenda Nacional. Por outro lado, Teresa quase apostava que o marido e a empregada doméstica, a bela Ausenda, tinham uma parceria de cujos contornos imaginava o pior. De todas estas ocorrências/denúncias eu tinha tomado devida nota no bloco de apontamentos de que me fiz acompanhar para o efeito, na tarde chuvosa em que me desloquei a casa de Teresa. À noite, desse mesmo dia, tinha-me esquecido de desligar o telemóvel e, a meio de um filme de sexo e violência, na televisão, que me preparava para desligar, porque precisava urgentemente de escrever um poema, Cândida ligou-me.
- Boa noite! Peço desculpa se incomodo, Dr..
- Boa noite, Cândida! Esteja à vontade, mas fico preocupado…
- Depois do Dr. sair estive a falar com a Drª Teresa e só então nos lembramos de que há muita coisa delicada, digamos até, escabrosa, que temos de lhe contar.
- Sim. Tipo?
- Maus tratos, violações, masoquismo, aberrações sexuais…

sábado, 7 de novembro de 2009

O livro de todo o conhecimento (VI)

O taxista olhava-me incrédulo, sem responder. O que se passaria na cabeça dele? É evidente que eu não entraria num táxi que transportasse cães, como não me sentaria num sofá que tivesse sido usado por um cão, ou gato. E não era só pelo cheiro. Era pelo nojo. Estaria ele a ler-me o pensamento? Acredito que já me sentei em sofás e me deitei em lençóis por onde passaram bichos talvez até pestilentos. Se fosse a pensar no assunto a vida complicar-se-ia demasiado, sem necessidade. Há outras coisas em que pensar.
- Não, não transporto cães. É proibido.
- Então leve-me à Colina Verde, se faz favor.
Foram dez minutos de viagem relaxante junto à margem do rio Tâmega. Ao sair da primeira rotunda, a cem metros de minha casa, o táxi parou, em plena faixa de rodagem, sem deixar espaço para a circulação do trânsito. Eu ia no banco traseiro a olhar pela janela. Num magnífico espelho de água rebrilhava um sol intenso. Não estava à espera desta inopinada paragem. Olhei para o taxista e vi que ele tinha a cabeça pousada no volante e parecia-me inerte, morto. Naquele ponto a estrada era plana e a viatura, apesar de destravada, estava imóvel. Verifiquei que a caixa de velocidades estava engrenada. Coitado do homem! Que é que lhe aconteceu? Morreu? Lindo serviço. – pensei preocupado.
Saí para pedir ajuda, mas naquele momento não passava ninguém. A minha casa avistava-se dali. Com um assobio, chamei o Ás, o meu cão de guarda. E não só. Discreto, de pêlo curto, preto brilhante, com patas de fogo, corajoso e incorruptível, fiel ao dono, mas treinado para brincar com o inimigo. Pelos latidos, percebi que já me tinha no seu horizonte visual. Senti algum alívio.
O taxista estava a mexer-se e ouvi-o estrebuchar como se tivesse saído de um mergulho para respirar. Acorri, não fosse o homem mergulhar novamente com a cabeça no volante. Tartamudeou qualquer coisa: que estava com tanto sono que não era capaz de conduzir e se lhe levava o carro, de volta ao palácio da justiça.
- Então o transporte do cão está fora de questão? – Insisti.
Ele deteve-se a observar o Ás, que entretanto chegara e se pôs a farejá-lo. E condescendeu:
- Para onde queria levá-lo?
- Fiquei sem o carro. Roubaram-mo hoje mesmo. Preciso urgentemente de levar o meu cão a casa de uma pessoa que vive em Várzeas.
- Não participou à polícia?
- Não tive tempo.
- Consegue meter o cão na mala?
- Concerteza.
- Acha que o cão consegue localizar a viatura, ou o ladrão?

Cativo

Cativo de desejo e da fantasia
Que o não saber mas sinto
Narra e concede à poesia
Confesso a verdade e minto

Mas não engano ninguém
Que a mentira da poesia
Peculiar verdade tem
E quem quer a repudia

Mas se for só por desdém
Não é por sabedoria
E se não vier por bem
Não sabe o que desconfia.

sábado, 31 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (V)

Chegados ao átrio exterior do palácio da justiça, fomos inundados por um sol fagueiro e, pela primeira vez desde que a conheço, Teresa sorriu.
- Obrigada! – disse ela olhando-me nos olhos, enquanto a segurava pelos ombros, ajudando-a a entrar num dos táxis que estavam ali de serviço.
Teresa não quis que eu a acompanhasse a casa.
- Não estou só a querer preservá-lo de quebrar as suas regras de deontologia profissional. Afinal, é o meu advogado. Ambos sabemos o que isso implica. E não é justo que o deixe expor-se a tantos perigos por minha causa.
- Falamos sobre isso depois, Teresa. Deixe os perigos por minha conta. Sentir-me-ei culpado se lhe acontecer algum percalço na minha ausência.
Mas não se demoveu e deu indicações ao taxista para que seguisse. Eu não quis ser maçador e, assim que a vi partir, regressei ao local onde tinha estacionado o carro. A minha intenção era dirigir-me imediatamente para casa da Teresa. Assim que virei a esquina constatei, porém, que o automóvel não estava onde o tinha deixado.
A minha primeira reacção foi regressar a correr à praça do palácio da justiça e apanhar um táxi, para me levar a casa. Havia um único táxi, acabado de chegar. Ainda não tinha desligado o motor, quando perguntei:
- Faz favor, antes de arrancarmos, diga-me uma coisa: transporta cães?
- Perdão! – exclamou o taxista com estranheza.
- Transporta cães? – insisti.
- Onde estão os cães? – ironizou o taxista.
- Sim, ou não? Responda se faz favor.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (IV)

Não estivemos mais de meia hora no tribunal. O, ainda marido de Teresa, A. Carrancas, arguido no processo, continua a monte, sem que o Procurador da República dele haja notícia, boato ou denúncia de ter sido visto. Teresa cada vez mais sente que corre perigo de vida. Ela tem muita informação que poderia dar pistas à polícia sobre o paradeiro de A. Carrancas. Estranhamente, porém, até hoje, trinta dias após a tentativa de assassinato de que foi alvo, nenhuma autoridade de investigação criminal lhe colocou qualquer questão sobre essa matéria. Teresa tem andado muito perturbada. Vive aterrorizada, sem ser capaz de confiar na própria sombra.
Tenho tido imensas dificuldades em ganhar a sua confiança. Ela parece transmitir-me a todo o momento o receio de que o assassino ande por perto e que acabe por matá-la inapelavelmente. A ideia de contratar segurança ainda a deixa mais ansiosa. Na sua opinião, que me vai revelando a conta-gotas e cheia de hesitações, como se eu próprio fosse já ou pudesse tornar-me inimigo dela de um momento para o outro, A. Carrancas está ligado ao mundo do crime, inclusive crimes de sangue. A polícia não lhe deu quaisquer instruções ou aconselhou medidas, nem se propôs protegê-la minimamente do perigo acrescido em que ficou após a tentativa frustrada da sua morte.
As pessoas que Teresa contacta para lhe prestarem assistência, mal se apercebem da sua situação, dão desculpas esfarrapadas para o não fazerem. Teresa tem a noção de que elas temem represálias.
Até o serralheiro, contactado para mudar as fechaduras das portas, primeiro disse que sim, mas depois comunicou que necessitava também da autorização de A. Carrancas e que não incorreria no risco de se haver com esse personagem, cuja fama de ser cruel e vingativo corre mundo.
Quanto à empregada doméstica, Teresa ainda não compreendeu por que é que a polícia não a interrogou e não a constituiu arguida nos autos. Em seu entender, a empregada doméstica, contratada por iniciativa de A. Carrancas, há muito tempo que tem sido instrumento dócil dele, ou de algo mais sofisticado. Inicialmente, Teresa não se preocupou porque não desconfiava. Mas, agora, quanto mais pensa no que aconteceu, mais tem razões para suspeitar do envolvimento dela e de que possa fazer parte de alguma associação criminosa de que A. Carrancas seja, provavelmente, o cabecilha ou um dos cabecilhas.
As suas dificuldades de locomoção motivaram que a audiência com o Procurador da República tivesse lugar no rés-do-chão do Tribunal. Mesmo assim, Teresa precisa de descansar de cinco em cinco metros. Ainda não se habituou às canadianas e é com esforço hercúleo que avança pé ante pé. A melhor forma que eu encontro de ajudá-la é respeitar o ritmo dela e mostrar compreensão. Na realidade, ao vê-la avançar, eu assisto a um espectáculo de heroísmo e não tenho dúvidas de que ela, daqui a quinze dias, já será capaz de subir as escadas até ao piso superior, apoiada apenas no
corrimão.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (III)

Estava a disputar o último set quando vi entrar uma jovem numa cadeira de rodas empurrada por uma mulher bem vestida e calma, de farta cabeleira e uma touca branca. Enfermeira? -interroguei-me.
Parou de empurrar a cadeira e depois de trocarem algumas impressões entre elas, a mulher de touca branca rodou a cadeira de rodas para uma posição frontal relativamente à área do jogo. Agora já estava a reconhecer a mulher da touca branca. Era a mesma enfermeira, Cândida, que me tinha ajudado a recuperar de uma luxação gleno-umeral traumática.
Terminado o jogo, ao passar junto delas, apercebi-me que a enfermeira também me reconhecera:
-Bom dia! Como está?
-Tudo bem, obrigado!
Neste momento inclinei-me ligeiramente para a jovem na cadeira de rodas e cumprimentei-a. A enfermeira Cândida fez as apresentações da praxe «Dr. Veríssimo, ilustre advogado, eh,eh,eh!» «Drª Teresa, antropóloga, doutoranda».
Estendi a mão para dar um passou bem à Drª Teresa, mas ela nem se mexeu. Olhou-me com uns olhos brilhantes e afáveis.
-Não se preocupe, disse eu, eu compreendo, não tinha reparado.
-A Drª Teresa vai permitir que lhe fale neste assunto: está assim porque foi vítima de um crime grave.
-Como? –perguntei. A enfermeira Cândida olhou para obter aprovação da Drª Teresa para continuar.
- Quando ela estava a dormir, o marido atirou-a do terceiro andar para a rua.
Fiquei estarrecido. Olhei para Teresa, mas ela desviara o olhar para algum lugar estranho que a fez empalidecer e semicerrar os olhos de dor.
- Continua a praticar ténis? – prosseguiu a enfermeira, para desanuviar.
- Ah, sim! Agora menos. Só para manutenção.
Pousei a minha mão na de Teresa, que não esboçou nenhuma reacção.
- Tive muito gosto em conhecê-la. Lamento profundamente o sucedido. Gostava de ajudar, se puder!
- Depois entro em contacto com a enfermeira Cândida. Ainda tem o mesmo número?
- Sim, sim, é o mesmo. Tudo igual.
-Até logo.
-Até logo Dr., prazer em vê-lo.
-Obrigado, igualmente.

sábado, 24 de outubro de 2009

Sei

Sei o imenso sol laranja
Seio que roça a minha face
Aos poentes fatais

Me engano eu
Que nada mais
Me engana

O brilho dos teus olhos doces
O fogo entre nós
Funde-nos como se fosses
A boca da minha voz

Sei os
Teus seios
Na paisagem desfocada
Das respostas difíceis
Às interrogações da luz

Mas não sei o peso
Das palavras que digo
Depois de ser salvo
Por esse silêncio
Desconhecido.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (II)

Decidi estacionar o carro e seguir a pé. Num dia soalheiro e o palácio da justiça a cerca de quinhentos metros? Isso não era nada para um tipo como eu. Ou não tivesse jogado ténis até aos vinte e cinco anos e ganho alguns torneios. Ah!Ah!Ah! Aliás, foi no ténis que conheci a Teresa. De uma beleza espampanante e, ao mesmo tempo, de uma modéstia e de uma inteligência provavelmente inexcedíveis, segundo os meus padrões, claro. Assim a vi logo no primeiro contacto e essas impressões perduraram e foram sendo confirmadas e ultrapassadas posteriormente com o aprofundamento da nossa relação. Mesmo que tentasse, não seria capaz de disfarçar a admiração que senti por ela desde o princípio e que ela, a cada momento, mais me inspirava. E o fascínio? O respeito por uma mulher que eu, obviamente, idolatrava? Chamar cegueira a esta paixão pode ser um jogo de palavras mas não o julgo supérfluo.
Teresa estava avisada do meu atraso. Quando cheguei, ela esboçou um compreensivo sorriso e disse-me que a funcionária do tribunal já tinha chamado por nós, mas que lhe explicara a razão do atraso e que este seria breve. A funcionária aguardou que eu chegasse.
A nossa comparência no tribunal estava relacionada com um processo-crime em que Teresa era vítima de violência doméstica. E fico por aqui por causa do segredo de justiça.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Orquídea

Será como tu quiseres
E quanto imaginares
E me atreveres
Com os teus olhares

No altar do teu colo
Adoro e genuflecto
Para consolo
Te beijo o aspecto

Deixa-te levar
Na toada suave
Deixa-te tocar
Antes que o sonho acabe

Deixa-me levar-te
Fonte brota quente
Deixa-me exilar-te
Orquídea fremente

Será como disseres
Será como calares
Aceito o que me deres
Te dou o que aceitares

Sobre os teus lumes
Perco-me a morder
Curvas de volumes
Gritos de prazer

Anseio que mo dês
Como imagino dares
Na seminudez
A que chegares

E te vieres
E mo tirares
Sem te perderes
Nem transviares

Dos limites da loucura
Aos limites do prazer
Sem limites da ternura
Quando em ti amanhecer.

sábado, 10 de outubro de 2009

O LIVRO DE TODO O CONHECIMENTO (I)

O dia de hoje foi normal até há pouco, quando decidi sentar-me para escrever sobre o dia de hoje. Ainda sem saber porquê, comecei logo a ter a percepção de que o dia de hoje foi, afinal, um dia extraordinário. Levantei-me de madrugada com a história do livro de todo o conhecimento na cabeça mas só escrevi o título porque as ideias não desenvolviam. Voltei para a cama e não dormi a pensar que tinha de levantar-me antes das oito, para a abertura da bolsa. Às oito já estava em frente do computador, como venho fazendo há anos. Nesta altura, a história do livro de todo o conhecimento parecia-me ainda mais difícil de escrever, como se tivesse sido um sonho. Sabem como é difícil, para não dizer impossível, passar os sonhos para o papel?! Quanto à bolsa, mais um dia à espera da abertura de Wall Street! Adiante. Banho. Aula de Economia sobre sociedade de consumo, laxismo, hedonismo e os males que podem advir para o mundo. “Quando as batalhas terminam aparecem os valentes”…
Apetecia-me tanto comer tripas à moda do Porto regadas com uma garrafa de tinto de 37,5cl…
Mas estava à minha espera o rei, desculpem, não era o rei, era a princesa, bem, vocês não conhecem, linda de entontecer, envergando diáfanos atributos, que me concederia o privilégio de a fazer feliz entre o período do almoço e o do lanche.
Cheguei atrasado. Não previra que uma fila de carros embandeirados retardasse o trânsito com euforias altifalantes porque é tempo de campanha eleitoral e “Viva a República”.
Logo constatei que um indivíduo, vestido de branco, de pé, num estrado colocado na rotunda, de megafone numa mão e uma bandeira branca na outra, tinha feito parar duas caravanas de manifestantes, uma do PS, que seguia em direcção indefinida e, outra do PSD, que andava às voltas. O indivíduo do megafone e da bandeira branca clamava distintamente, ora para a caravana dos do PS ora para a caravana dos do PSD, num tom messiânico:
«Eu não podia sentir-me mais à margem deste espectáculo. Será por isso que o considero triste? Eu não faço parte desta sociedade? Não me identifico com ela? Não me comprometo com ela? Não gosto dela? Se pudesse estava noutro sítio, com outras pessoas? Por favor, responda quem souber. Não pensem que não sou político dos sete costados ou que não tenho partido. O meu partido é não ter nenhum dos partidos existentes. Passividade não é comigo. E, quanto a ir votar, preciso de mais alternativas para me sentir livre. Ouviram? Livre. De Liberdade. O voto em branco é pouco. A abstenção, os mentores do sistema político converteram-na em nada, assim como os votos nulos.
Sou político, tenho política e a minha política é esta: deixem de manipular as pessoas pelos medos, tentem manipulá-las pelas genuínas alegrias e direitos. Não lhes acenem com direitos com o objectivo, dissimulado, de lhes cobrar obrigações e deveres. A democracia só não perdeu completamente o significado de poder exercido pelo povo, não porque os políticos, a classe política, o represente legitimamente, mas porque, apesar desta incongruência grave, o povo vai exercendo o seu poder por outras formas, pagando os custos elevados de todas, porque, na realidade o dito povo paga aos políticos para exercer o poder que não exerce e paga o contra poder para fazer face aos mesmos políticos que contra si o exercem.»
Julgo ter percebido bem estas últimas palavras, mas não garanto, porque as caravanas dos manifestantes faziam cada vez mais barulho, com claxons, apitos e altifalantes, com o objectivo aparente de abafarem o som do megafone.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Só tu és bela


Eu nunca fui senhor de nada
Olhei sempre as coisas
Como a alegria ou a tristeza
Dobra a alma de um escravo

Às vezes andei por onde gostaria
E aprendi que há quem aprenda a gostar
Eu não
Não saberia falar de coisa nenhuma
Porque o canto das aves
É a minha obsessão pelas virtudes
Saber que não morrerei delas
Mas da arte
Que falta sempre na vida
Como nas obras
-----------------
De arte

Só tu és bela para sempre
Despindo-te da vaidade
Aos abismos do meu desejo
Como um espelho irresistível
Te rouba o corpo.

domingo, 4 de outubro de 2009

Se houver adeus

Se houver adeus
Afastar-me-ei do que sou
E deixar-me-ei mergulhado
No silêncio predestinado
Não como nu vou e volto
Do mar
Mas morto
Que tem na memória
Uma vida
Cheia de vozes
Se não
Afastar-me-ei a pensar na ignorância
Nos horizontes sufocantes
Das catedrais que vão ruindo
Com uma lágrima insensível
Com a semente de um rio
Deixarei o que amava
Sem direcção

Até a brisa mais suave
Se não me ignorar
Me sentenciará de penas eternas
Se não
A minha existência
Não passou de uma ilusão.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Da tua pele que se aflige

Com lábios devassos e impuros
Afloro as camuflagens sensíveis
Da tua pele que se aflige
Abro com os dedos
As folhas do teu livro casto
Como uma tempestade impiedosa
Para o fruto bamboleante.

domingo, 27 de setembro de 2009

De como se mata e como se morre

Um lago um mar um oceano
A verdade
Não sei
Um céu talvez
Uma fundura por explorar
No mastro alto do dia
Um corvo pousado
Uma bandeira negra
Que à noite se oculta
Na casca de noz sem horizonte

Os meus olhos triunfam com a visão
Das grandiosas cidades
Mas a memória das florestas devastadas
É a história de como matam os homens
E como morrem
E uma lição de como se mata
Que não nos ensina a morrer

O nosso país tão grande
Que não cabe em Portugal
Os nossos automóveis
As nossas casas e
Os nossos computadores
Todas as lojas com tudo
E as músicas omnipresentes
Não são suficientes
Para nos salvar

O linguajar excelente
Que sai dos abismos do coração
É como aquela bandeira ao vento
Plantada na areia
Pelo porta estandarte
Que tombou

Se a alma tem fome
Nunca se sacia dos dias
Que voltam sempre
Sobre as carnificinas
No seu altivo triunfo

Terra e mar são poderosos aliados
Dos homens na escuridão
Que escutam no vento
Gemidos dos vingados

Se tropeçares n’alguma certeza
Por andares perdido na cidade
Pensa como é inquietante
Ver um exército que dorme.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Enquanto a morte não chega


O vento lá fora
Numa dança de folhas sem fim
Embalo do tempo
Demora
Futuro presente em mim

Crianças jogam à bola
Na relva seca pelo verão
Que deixa em volta da escola
A forma de um coração

Paisagem para uma alma
Que o corpo não libertou
A dor é vindima calma
Do sol que já declinou

Como é belo dar a face
Oh vida como nos demos.

domingo, 20 de setembro de 2009

Como é belo o teu dizer

Como é belo saber ver
Do lugar onde cheguei
Do luar que acreditei
Do deitar tudo a perder
Do não sei pra onde vou
Como é belo compreender
Que o tempo nunca parou
Nas rosas que vi nascer
No vaso do nosso amor
Como é belo saber ver
Que a vida lança raízes
No solo estéril da dor
Como é belo ouvir dizer
As palavras que me dizes.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O meu sonho

Ao olhar para a agenda pus-me a reflectir sobre as tarefas marcadas para este dia e perdi-me em pensamentos sobre as minhas origens e como tenho sido, desde sempre, um homem sem sonhos (se é que eu, por não ter sonhos, compreendo o que isso é). A primeira coisa que me ocorreu ao ver que tinha de apresentar-me no posto da GNR às 14:30h, foi que, aos oitenta anos, eu podia ser preso por crimes que nunca cometi. De repente, este pensamento tomou-me completamente ao ponto de eu esquecer que a minha morte que o meu médico tinha agendada devia preocupar-me mais. Nem sei se houve algum motivo inconsciente para que deixasse de anotar na agenda o facto previsto (com data marcada) da minha morte. Se calhar foi porque numa agenda só devem constar coisas da vida. É capaz de haver quem consiga explicar lindamente estas curiosidades. E, sem me aperceber, acabei por embrenhar-me em profundas meditações sobre os meus pais e os meus primeiros tempos de vida. Éramos uma família rica. Diria até, podre de rica. Faltava-nos o que não tínhamos, e que era imenso, como a toda a gente, mas tínhamos muitas coisas que faltavam à esmagadora maioria da população. Ouro tínhamos muito. Sonhos, que eu saiba, nenhuns. Ignoro se alguma vez estes nos fizeram falta, aos meus pais e a mim. Nem quando ouvia continuamente na rádio uma cançonetista ligeira repetir em notas alegres que não tinha ouro mas tinha tudo porque tinha sonhos. Hoje, interrogo-me sem saber a razão de o meu cavalo lusitano, que eu montava com cinco anos de idade, se chamar Sonho. Só os meus amigos percebiam que era de um cavalo que se tratava quando eu dizia que cavalgava o Sonho. Um dia, referindo-se a um homem andrajoso que percorria as freguesias a pedir esmolas e que eu admirava por, na sua simplicidade, dizer poesias em tom profético e magistral, Valquíria, a mulher mais velha da quinta, que já servira no tempo dos meus avós, segredou-me, convicta da minha cumplicidade, que aquele homem era muito rico porque tinha um sonho. Eu sempre quis ter um sonho, porque parecia evidente que isso era o melhor que se pode ter. E dizia-o sem rebuço. Até nas minhas orações, sobretudo quando a vida corria mal, eu pedia a Deus que me desse um sonho. À medida que os anos passavam e que eu tinha cada vez mais tudo o que queria, mais intensa e perplexa era a minha necessidade, o meu desejo, de ter aquilo que todos tinham sem dificuldade e que eu nem com rezas conseguia. No meu décimo aniversário, quando o meu avô perguntou o que eu queria de prenda, não pensei no regresso da minha querida mãe, que tinha abalado há menos de um ano e nos deixara inconsolavelmente inconformados e infelizes. Disse-lhe simplesmente que queria ter um sonho. Ele não mostrou surpresa. Sorriu com um sorriso de compreensão que me deixou confortado e, por fim, disse «também vivi até hoje com esse sonho». O meu avô tinha setenta anos. Era um poeta que nunca vi a escrever ou a ler versos que tivesse escrito. Não tenho a certeza de ter compreendido o alcance da resposta que o avô me deu. Uns anos mais tarde, uma miúda cujo nome não esqueci mas não vou revelar e que eu achava a única rapariga digna de ser considerada bela, cruzou-se comigo no escuro do corredor de acesso à biblioteca do liceu, encostou-me um dedo ao umbigo e de olhos fulminantes atirou: «todas as raparigas sonham com um rapaz como tu!». Há coisas que têm mais ou menos influência e repercussões na vida das pessoas. A minha vida foi definitivamente marcada por este episódio. E ainda agora me surpreendo a tirar ilações desse acontecimento: ela não disse que eu era o sonho de todas as raparigas, nem que eu era o sonho dela. A tosse cavernosa do reitor, que saiu do seu gabinete a escassos passos de nós, anulou a minha tentativa de fazer algo mais que ficar calado. E a única rapariga digna de ser considerada bela foi embora sem saber o que eu lhe teria dito. Desse episódio a imagem que guardo com mais nitidez é a do reitor envolto numa nuvem de fumo de tabaco a expelir relâmpagos de um cigarro seguidos do trovejar assustador da última vez que tossiu. Não estive nas cerimónias fúnebres.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Esta noite não dormi

Esta noite não dormi
Bateste à porta
E o sono fugiu

Abri a fechadura dourada
Sem espreitar pelo monóculo
E os teus olhos originais
Como sempre
Foram
Lanternas na minha escuridão

Abri os braços antes de qualquer palavra
E contra o peito
Apertei uma mulher
Que largou tudo
Para me oferecer um sonho
Ainda virgem

Deixei de ter os pés na terra
Vénus estava na sala
E eu olhava-a
Das minhas vidas passadas

Esta noite não dormi a beijar-te
E a lançar a tua roupa
Para a via láctea
Como se soltasse raízes
Na cama.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

TU

Vais ao rio por onde escoam
Inexoráveis erosões do olhar
As melancolias que têm beleza
Para nos fazerem felizes
Sobem ao céu
E delas nos lembramos sob as estrelas
Enquanto tecemos redes
De luar de caminhos
De saudade
Às horas fugitivas
Alcançamos a verdade
Que era do mar
Em ventos transformados
Desejos e pensamentos
Libertos no meu coração
Ciladas
De tantos hinos impossíveis
Dos milagres em mim
Como o tempo das flores
Que nos colhem
Nos ilumina.

sábado, 5 de setembro de 2009

O Poeta do Calvário

Há imensas expressões e palavras que cairam tão depressa em desuso que, hoje, só alguém com mais de cinquenta anos que tenha nascido e crescido num meio popular (analfabeto) será capaz de lembrar algumas delas. Lamento muito o facto de se ter substituído em poucas décadas registos linguísticos populares com centenas de anos. Nesse aspecto a escolarização varreu (e para muita gente não suficientemente depressa) toda uma "bio"diversidade que os escritores não tiveram tempo de perceber que era preciso preservar, pelo menos através da escrita. E não estou a pensar apenas em "botar as barbas de molho".
Na minha primeira infância havia personagens que eram estranhamente respeitadas na sua "loucura". Uma delas transfigurava-se no momento em que se punha a dizer versos à porta da taberna. Era um poeta. Dizia que não sabia donde lhe vinham aqueles versos. Falava à maneira de um ignorante para ignorantes. Muitas coisas que ele dizia e fazia "não eram dele" e, de facto, ele nunca tinha estudado e não sabia ler nem escrever. Não conhecia confortos e andava sempre sozinho. Nada tinha e nada ambicionava e com ninguém falava. Quando falava era para um público, fora disso era capaz de passar horas sentado nos degraus da igreja do Calvário, ao sol se fosse inverno e à sombra se fosse verão.
Esse singular e misterioso ancião que nunca perguntava nada, nem respondia a ninguém faz-me pensar que talvez ele fosse um génio que era poeta sem ser "à maneira de" erudito.
Ou sou eu, agora, que estou a ser louco...

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O perdão

O mundo quer o tempo
cento e vinte e oito hexavós
reconhecer fragmentos
que dizer
que ter presente
sempre para limite
restar um momento
alívio de respirar
gastar tempo
tarde é nunca acontece
o que consiste
em sermos espectáculo de ninguém
inventar a parte não menor de ontem
reflexos à escala de amanhã
a vontade intérprete do fazer tudo
faz parte do tempo da mente
acolhe franca mente
o meu pensar possível
que feliz
que elo liga ao que houver
de remoto
uns olhos vêem desde algum primórdio
chegar a perspectiva do pecado
alguma vez
a existência de perdão.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

As línguas do amor

Por favor
Fala-me todas as línguas
Do amor
Que há-de haver alguma
Que eu compreenda

Se me falares só uma
Talvez a não entenda

Se houver uma escola
De línguas do amor
Ou de amor
Ou ao menos de uma das línguas
Do amor
Eu quero aprender

O amor fala todas as línguas
Que nós desconhecemos.

sábado, 22 de agosto de 2009

Fernando Pessoa não mentia

Sem entrar em detalhes, direi, em minha modesta opinião, que toda a gente escreve com sentimento, mesmo a lista de compras. Mais ou menos sentimento, pouco importa e duvido que alguém saiba distinguir o muito do pouco sentimento. É que sentir e pensar são indissociáveis ao ponto de não haver fronteira entre um e outro. Somos capazes de pensar o que sentimos e de sentir o que pensamos.
Em certo sentido poder-se-á dizer que quem mais/menos diz que sente é quem mais mente.
Fernando Pessoa não mentia.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sinto-me feliz

Sinto-me feliz por não encontrar palavras
Desnecessárias
Por não haver socorro para as vulgares certezas
E por acreditar que é belo o dia
Que colho como fruto imperecível
De tempos que excedem todas as fronteiras
De que há memória
Sinto-me feliz porque tenho ódios e amores
Abomino todos os piratas
E todos os terroristas
No auge da batalha sinto-me feliz
Mesmo temendo perder a vida
Admiro os magnânimos.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Quando hoje me conheceste

Os meus infortúnios não cabem na minha mala de viagem
São grandes e pesados de mais para serem transportados
Só a alma tem a fatalidade de não os deixar para trás
Embora tantas vezes os mastigue e outras vomite
Isso não os degrada e só os torna o que são
Ainda mais

Não são grande coisa aliás não são coisa nenhuma
E se há verdadeiro problema é este
Quando hoje me conheceste
Ambos éramos sorrisos
Máscaras decentes de alegrias
Do que isso significa

Os meus infortúnios sempre me pareceram felizmente
Os infortúnios dos outros que temo que me aconteçam
Algo de uma tal gravidade e tão intolerável
Que a loucura se existisse seria isso
Verdadeiramente insuportável

Peço sentença aos juízes para poder dizer
Que as minhas alegrias não são diferentes
Que uns e outras não me são dados
Embora estas sejam concessões que eu finjo poder
Aqueles são grilhões que eu não mereço.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Hoje apetece-me ser vulgar

Hoje apetece-me ser vulgar
Oportunista esperto fanfarrão
Por capricho receber no dar
Hoje quero e vou ser multidão

Hoje vou desiludir-te
Chegou o momento de ser quem sou
Vulgar e não mais
Que o mais comum
Dos mortais

Hoje vou divagar
Sobre a moral da história
Há sempre a ironia à mão
De qualquer um
Para se arrogar glória
E condição
Que não tem.

terça-feira, 28 de julho de 2009

E se um dia

Há um caminho
O dia e a noite
E o infinito
Os meus pés
Pela paz
A diante
Um bando de aves
Planando
Sobre uma montanha
Nada quero
Mas quero ter-te
Em lapsos dementes
De imagem imaginada
Bandeira
Içada sobre escombros
Ao assobio do vento
Palmeira desterrada
Sonho de não ser
Na tarde sem sol
Náufraga viva
Espera
Fora do tempo
Sem margens
Nem pontes
Nem lugar
Templo às divindades de nós
À imagem ignorada
Do tempo sem voz
Amor que se sabe
De ouvir falar
Desejo ilimitado
De não desejar
Sem caminho de ir
Nem de regressar
Prisioneiro
Sem porta de entrada
Cuja saída procura
Sem descanso
Liberdade perdida
Em sonhos reconhecida

Corpo nos braços
Que não salvou
Espelho angular
Que não evitou.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Notas críticas I

Todas as perguntas que fazemos a nós próprios valem a pena. As que fazemos aos outros, não sei. Quando um arquitecto quis uma janela da casa, que custava mais que a casa toda, o dono da obra perguntou: qual é a utilidade disso? E o arquitecto respondeu: nenhuma. Eu penso nisso quando visito alguns monumentos, templos e quando observo cidades, ruas, fachadas... quando ouço música...quando assisto a fogos de artifício.

Mas, sem querer passar por pedante, por que não lembrar Homero quando ele inicia os seus poemas épicos com uma invocação à Musa?
Ou, séculos mais tarde, Platão, o primeiro filósofo da literatura?
Hesíodo, Sólon, Simónides, Píndaro e os retóricos e dramaturgos do séc.V, formularam observações críticas, por exemplo: que a poesia é uma coisa encantadora, que tem de ser aprendida como uma arte, que consiste numa escolha inteligente das palavras...

Durante muito tempo o encanto da minha infância consistiu na ilusão que eu tinha de que tudo nasceu depois de mim. Estranhei a História. Freud era capaz de "diagnosticar" complexo de Édipo.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Sinto-me triste

Estou triste
Sinto-me triste
Nas conclusões que tiro
Até das coisas mais lindas
Que tem a vida
Sinto-me triste
Por não sentir alegria
Só de pensar
Que as histórias
Não têm final feliz.

domingo, 12 de julho de 2009

Não é justo

Não é justo que eu sonhe
justo é que maldiga
Não é justo que eu ria
Justo é que chore
Não é justo que eu cante
Justo é que deplore
Não é justa a alegria
Justa é a amargura
Não é justo que eu ganhe
Justo é que perca
Mas eu não sou de justiças
Sou de sonhos
E de risos
E canto como um doido
Com alegria de quem não tem culpa
E ganho mil vezes menos do que perco
E darei cabo dos filhos da puta
Que sejam a causa da minha agonia
Dar-lhes-ei batalha justa
Com raiva justa
Sem alegria.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

E lá se foi

Um pássaro lindo
Voou ao contrário
Sugado por uma lembrança
De caminho andado
Mão dada
Numa eterna dança
Entre invernos sem ilusões
Um gato (pingado)
À chuva
Lá se foi
Platão
Eva
E Adão
Num jardim
Que não conheceis
De rosas em vasos imaginados
Mas que estão mortas
Há muito
No chão
Para onde cospe
O vilão
E dejecta
O fanfarrão.

sábado, 4 de julho de 2009

Em certas horas

Em certas horas a (va)idade
É outra
Asa desbotada
De um enigma
Que os olhos embals(amam)
Em certos olhos a pena
Vale mais a pena
Do que uma resposta
Que a vida exige (à gente)
Em certas respostas os amigos
Brilham no firmamento novo
De uma distância
Que a rádio não prop(r)aga
Em certas distâncias o tédio
É surdo
Centro imperfeito
De um círculo
Que fecha contigo fora
Em certos círculos o melhor
É o que não pode
Vender
Nem ser comprado
Que é a fraqueza mais forte
Em certas compras a pessoa
Aliena solidão
E silêncio
Em troca de uma verdade
Pior.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Eu nunca te disse adeus

Eu nunca te disse adeus
Não saberia fazê-lo
Alguma vez
Parti
Como parto sempre
Triste
E sem esperança
Por necessidade
Muito mais
Do que por vontade
Na morte
Tropeço
Na vida
Não há regresso.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Inspiro-me

Inspiro-me nas lágrimas
Ao vento me queixo
Ao vento grito
A minha pena
Sem descanso
Agito

Inspiro-me nos sorrisos
Ao céu me dou
Ao céu profundo
Canto
Do mundo

Inspiro-me nos gestos
Miro a traição
Do informe
Escrevo
A denúncia

Inspiro-me nos campos
Sem futuro
Com raízes
Transcendentes

Inspiro-me na eternidade
Que é
Não compreendo
O mistério do ser
E do sendo

Inspiro-me na música
Que não soa
No silêncio
Deixado por tudo
Que amei
Inspiro-me…

terça-feira, 23 de junho de 2009

Entre o outro mundo e este

A mais oblíqua paleta
da tristeza mais perpétua
à alegria mais espontânea
é o poço do diabo

O diabo tem medo
e não passa pincéis
na rua do enxofre

Espalha matizes
de mar salgado
no que é mais breve
esse pano
de fundo
de que se veste

E vai com alguém
que não conheceste
de braço dado
entre o outro mundo
e este.

Carlos Ricardo Soares

sábado, 13 de junho de 2009

Beleza demolidora

Há uma verdade evidente num zumbido de vespa
(era uma scooter)
Interrompeu a sesta
Que parece fugir a qualquer controle
Há uma verdade evidente em tudo o que dizes
A preceito descapotável
Singrando de peito enfunado
Em sentido contrário
Ao do vento
Uma visão de todos os dias
(O tanas)
Era um portento
Uma beleza demolidora
De clichés inerentes
(Em voga)
Sem método e sem sustentáculo
Em vocábulos desaparecidos
Que regressaram à vida
(Dos poemas)
E desfrutam de respeito
Persistentemente à beira da metáfora
Tantas vezes desperdiçando o suor do rosto
A tentar evitar que o que aconteceu
Tivesse acontecido
Como passar a dura prova
Da infelicidade
Nenhum argumento é suficiente
Muito mais tarde
O arrebatamento é efeito de linguagem
Traçado peculiar de divisões
Que anunciam algo
Que não chega até nós
No meio de discussão infindável
Há quem ouça o eco de grandes almas
Ao acaso de ser poema
No declínio de duas ou mais eras
De poder corrupto
De amor ao dinheiro
De atrofia por insolência
E por ignorância laureada
Essas pitonisas emancipadas
Repertório de figuras
De ressonância sem sinceridade
Não pisam sequer o solo
Quanto mais um aposento délfico
Mas pronunciam sentenças
Austeramente simples
Sobre o futuro
Sem nenhum grau de codificação
Passado ou presente
Sobrepostos ou paralelos
Que perturbam a visão
Com a liberdade de regras
Destituída de atenção
E de predicados
Mas não de triunfo
E de desaire.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Quem és tu

Por mais palavras que digas
É como Deus
O mais perfeito enigma
Para os anseios
Mas o que está mais perto
Dos meus sentidos
Por mais que te diga
Serei a chama do vento
Só quando superar
Todos os receios
De te incendiar.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Adega TóNel

No ponto mais setentrional das névoas perpétuas
No informe aglomerado de construções à chuva
Uma placa diz cidade e começam as galerias
De uma tarde na adega tonel
Que vai desembocar nesta folha de papel
E deparar sem saída com a porca
Das sete mamas de um cardápio virtual
Suspenso dos chifres de um bicho
De sete cabeças em espiral
Drapejando ruidosamente.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O poeta declara por sua honra

O poeta declara por sua honra
Que não sabe
Onde ouvirás sinos de palavra
Se nos sulcos de mãos limpas
Ou se é pouco ou nada estares
Disponível para azares
Se não os procurares

Que por envergares traje
E barrete napoleónicos
Ainda menos figura fazes
Do que uma cavalgadura

Que quem espera ser servido
Só conhecerá os manjares
Do que é requerido

Se o esperar é muito mais
Que o desdenhar
Incomparável é procurar

Que ao sábio se consinta
Invocar cepticismo
E que aos demais
A ignorância
Seja tolerada…
… … … … …

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Nós hoje

Órfãos de alguma espécie de apostolado
Estamos cercados
De falas

Como é difícil ao espectro
ficar calado!
Como é difícil ao espectro
Dizeres que o calas!

Como é difícil ao dinheiro
Não o gastar
A um poluente
Não o usar
Não ter uma sombra
E monologar
A campo aberto
Merdar!

Como é difícil estar certo
Não querer
Moeda falsa
Para poder
Ofertar!

Trabalhar cansa
E não acaba!

Se a vida não se vence
Para quê lutar?

Dai-me a luxúria
Sem corpo
Da ideia
Vazia
Ou o eco
Dos limites.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Desafios

As árvores de braços caídos
Sem vontade de céu
Onde estão
Rendidos
A uma paz de enterro
Que nos atormenta
Na fragilidade
De névoa matinal
De uma paisagem
Que flutua
Sobre tantos desafios
Uma haste
E uma bandeira a meio
Ladejando a estrada
Não sou eu que penteio
É o vento
Que agita a sacada.

domingo, 26 de abril de 2009

Com vistas para o Tejo

E chegou uma carripana
Com altifalantes
E desenhos de bichos
Nunca vistos

Iam contar a história de umas fantasmagorias
Com vozes distorcidas
Chamadas “uquês”

Eu estava à tua espera
Com a bonomia
E a felicidade
De um apaixonado
Mas não estava nas nuvens

Percorri quatrocentos quilómetros
Até Lisboa
Para te abraçar
E estar contigo

(Quem nunca se apaixonou
Não percebe o que digo)

Tu tinhas percorrido mil
E quando chegou o momento
Do nosso abraço
Nada se desmoronou
Nem o vento ganhou asas

Num exíguo espaço
Na pequena sombra
Entre duas casas
Com vistas para o Tejo
Numa rua torta
Quis o tempo
Ser essa tarde
E sem chave
Abrir a porta.

sábado, 25 de abril de 2009

Você

Você é meu tema
Sem segredo
E sem pecado
Apócrifo
Poema
Desalinhado
Você rachou
O esquema
Rasgou
O traçado
E me deixou
Desorientado
Fazendo rimas
Como um disco
Riscado.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Cansado

Neste acesso de febre alta
Esqueço tudo em delírio
O mundo que tão pouco conheci
E de cujas guerras e dramas desisti
Que sempre ignorei de soslaio
E até o que
Do mundo sempre elegi
Do passado os mitos e os heróis
Modelos que nos humilham aos nossos olhos
Mas que pretensamente
Nos engrandecem aos olhos estrangeiros
Do presente as vacuidades
Mais benévolas possíveis
De preferência aromáticas
E afrodisíacas
E laxantes
Que inebriem sem as sequelas
Das drogas
O que penso (e o que
Não sei se) me importa
Não sei qual é pior
Se o cansaço do que não faço
Se estar cansado
De estar cansado
Ou se
Estar cansado de descanso
Cansado de remanso
Da monotonia da beleza
E serenidade
Da natureza
De ouvir (já nem ouço)
Os pássaros
De olhar (já nem olho)
Para o céu estrelado…
Do bem que me fazem
E da saúde que tenho
Me cansa o prazer
De tudo bom ter
Me cansa não sentir até
Necessidade de o dizer.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Nas estrelas dos teus olhos

Nas estrelas dos teus olhos
Brilhos de solidão sem fronte
E sem trono
Pedem motivos sem explicação
A quanto vale o que adoras
Se mau grado ao visível confias
Ou se
Bom grado o invisível
Não trocas por nada
O que não é teu

Faz-te falta não te perderes em medos
De não existência
Do que te criou
Que para te abandonar
Tivesse morrido

A angústia de filho tranca-se
À interrogação do que pode ser
A angústia de pai.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Lua no fundo do tempo zero

Vejo florescer as árvores
na praça etérea
de um chafariz mortiço
da memória
se houvesse um centro
na minha noite
essa noite seria a minha história
e o centro seria a tua
penumbra
da lua
que ao nascer do dia
amua
e deslumbra
sem solução
de continuidade
da solidão
do princípio ao fim
do tempo zero
ainda que eu nada faça
(espero)
os universos movem (-se)
por mim.