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sábado, 16 de março de 2024

Do mundo ilusório dos desejos

A educação tornou-se um assunto demasiado importante e demasiado sério, a par do ensino, para ser deixada ao acaso e à sorte das ondas e das correntes e dos interesses particulares. Ainda há poucas décadas, em Portugal, não havia educação, nem ensino, propriamente dito. A maioria das pessoas não ia a uma escola. A única escola, quando disponível, era a catequese papagueada por catequistas analfabetas e a igreja que, ainda por cima, falava latim. As comarcas contavam ainda com um tribunal que muito poucos sabiam como funcionava e que persistia em fazer-se representar por figuras e simbologias do tempo dos romanos. E isto era em Portugal, quatrocentos anos depois de terem dado voltas ao mundo, guiados pelas estrelas, nem sempre disponíveis, sem consumirem um côvado de combustível.
Sem consciência das realidades somos cegos ou, o que é pior, sonâmbulos perigosos e irresponsáveis. A educação e o ensino não são fins em si mesmos e é mais do que tempo para os especialistas em educação e ensino dizerem de sua justiça. O que faz com que muitas pessoas, que não são especialistas num assunto importante para elas, questionem e falem dele e tomem posição, não raro, tem a ver com a falta ou o vazio de soluções. 
Aconteceu isso com a metafísica e as teodiceias e as teologias, mas foi preciso construir catedrais para dinamizar a economia e impulsionar o desenvolvimento em geral. É fundamental sobretudo dar sentido ao que se faz, se produz e se constrói. É para isso que também serve a educação e temos visto que, de vários modos, mais ou menos imprevistos e incontroláveis nas suas causas, fomos traídos pelo rumo que o progresso tomou. 
O empoderamento garboso e triunfante de determinadas elites financeiras e políticas, e mesmo científicas e culturais, como se tudo a elas e só a elas se devesse, excepto as externalidades negativas, era aquilo de que não precisávamos mas que, se o tivéssemos previsto, nem por isso teríamos podido evitar. 
Qualquer rumo, qualquer projecto, na educação e na política, em geral, começa com objectivos e propósitos cujos pressupostos de realização e de sucesso, em grande parte, são uma incógnita que se projecta num futuro incerto e ameaçador. Por mais que o saibamos, não temos como evitar esta exposição aos efeitos imprevisíveis e incontroláveis. 
De um momento em que a educação é projectada em contextos de paz, de benevolência e entusiasmo, para dinâmicas e fins pacíficos, depressa se cai numa situação brutal de guerra, que nos faz sentir ingénuos e desprevenidos, ou incautos, culpados, ainda que arrependidos, de o termos sido, de termos confiado de mais na bondade e na alegria de construir pontes e edifícios e paraísos, que outros se comprazem em destruir e conspurcar. E isto é uma lição, mas também é um choque e uma condição que determina mudanças de rumo. É que, nem a educação, nem a economia, nem a política, nem a vida em geral, se deixam conduzir dócil e garantidamente, a partir de modelos, de verdades prévias, de futuros antecipados, e de boas intenções. Mesmo aqueles objectivos que temos por mais valiosos e justificáveis do esforço construtivo da sociedade, sem que o queiramos, podem ter que ser substituídos e adaptados a esforços bélicos, armamentistas e militares, numa tentativa de, pelo menos, salvar o que for possível daquilo que se andou a construir com tanto labor e sacrifício. 
O mundo ilusório deixou de o ser apenas para os poetas. Até para estes as prioridades passam a ser outras, no campo de batalha os jovens precisam de saber trabalhar e sonhar com armas tecnológicas e com sistemas de comunicação e isso não se aprende numa recruta de três meses, como era há uns anos. É uma ironia trágica que os jogos de guerra das consolas das crianças, que tanto criticamos, se tenham tornado uma mais valia, como se já estivessem a antecipar o futuro. 
A educação e o ensino serão aquilo que desejamos, se as circunstâncias e as condições o permitirem e nos deixarem. Esta consciência da realidade ajudará a ver as coisas mais em função daquilo que devem ser, protegendo-nos da frustração e do desaire de não serem como desejamos.

Carlos Ricardo Soares

sábado, 2 de março de 2024

Ser ou não ser humanista

Independentemente de serem ou não serem conciliáveis dogmas ou discursos religiosos com outros discursos ou mesmo com dados da experiência, o que não vou discutir, por serem irrelevantes para a minha questão quanto ao humanismo e às publicações de um grupo de humanistas, quando penso em humanismo tenho sobretudo em mente que é o homem e apenas o homem que dá significado e atribui sentido a tudo, incluindo o próprio homem e quaisquer noções de humanismo.

Partir desta simples constatação de facto é fundamental para entendermos a autoria do ser humano em tudo o que podemos reconhecer como cultura e reconhecermos que, fora do ser humano, do indivíduo humano, há aquilo que não foi criado, nem produzido por ele e que, comummente, se designa de natureza, por oposição a cultura.

Esta constatação é fundamental ainda para definir a esfera do humano relativamente àquilo que não é humano.

Para ser humanista não basta ser contra tudo o que seja contra o homem, é ainda necessário ser a favor e promover tudo o que for favorável à sua realização. Mas é ainda necessária uma condição sem a qual aquelas duas posições colapsam: reconhecer e respeitar a igualdade de direitos e liberdades de todos os indivíduos humanos (não apenas quem nos apetece) e, no limite desta lógica, de todos os outros seres vivos e da natureza, porque a razão pela qual o ser humano deve ser respeitado e promovido é a mesma pela qual tudo o que não é humano também o deve ser.

E, quanto à liberdade de cada um agir sobre os outros seres vivos e sobre a natureza, ela só tem razão de ser na necessidade de sobrevivência à custa deles.

Basicamente, o direito dos humanos relativamente aos outros humanos, numa simples lógica de igualdade, autonomia, liberdade e reciprocidade, é o direito de não ser prejudicado por eles. Relativamente aos outros elementos da natureza, incluindo seres vivos, aplica-se o mesmo princípio.

Pensar em humanismo não pode passar ao lado destas considerações (humanas) de que o “tu” não é apenas o humano que eu reconheço como tal é também o que, reciprocamente, me reconhece a mim.

Nas relações com a outra natureza, seres vivos incluídos, não posso esperar senão que me reconheçam em função das suas aptidões e dinâmicas de interação física e bioquímica, mas não tenho um direito de disposição sobre eles para além das minhas necessidades de sobrevivência e, nas disputas humanas que sobre eles houver, todo o abuso e dano carece de justificação.

Por aqui se vê quanto estamos longe de sermos humanistas que colocam o indivíduo humano no topo dos valores e, justamente por este ser o autor, a fonte e intérprete dos mesmos, também o único responsável.

Nenhuma ideia deve ser, nem merece ser defendida contra um direito do homem, do ser humano, que o ponha em causa.

As ideias, a maior parte das vezes, prestam-se ao papel de armadilhas poderosas para capturar e neutralizar, ou anular determinados homens. Mas não devem servir para isso, até porque, se servem para capturar uns, também podem servir para capturar os outros.

Nesta ordem de ideias, mitos, deuses, religiões, filosofias, ciência, paganismo, judaísmo, cristianismo, islamismo, humanismo, enfim, toda a cultura, não são mais ou menos racionais, são racionais, o mais e o menos não são atributos da racionalidade e os atos são racionais, as manifestações de cultura são atos, são racionais.

É desta faculdade que, nos humanos, por efeito de uma necessidade de verdade (ter razão, estar certo), de direito (de acordo com a razão), moral, a que chamaria instância de dever-ser, em função da ética, decorre aquilo que, vulgarmente, se designa por progresso.

Na minha teoria o progresso é uma consequência, efeito, resultado, das escolhas ditadas em função daquele dever-ser. Mesmo que não fosse assumido como um programa e como objetivo, o progresso só poderá ser impedido, ou travado, por força das circunstâncias imprevistas, ou inelutáveis.

O mecanismo que criou deuses e demónios é o mesmo que criou o humanismo e as tecnologias.

Ao dizer que não há racionalidade mais ou menos racional não estou a significar, nem a querer dizer, que todos os indivíduos pensam sobre os mesmos termos com idêntico grau de consciência e de avaliação das possibilidades.

Cada indivíduo desenvolve mais ou menos atividade mental, intelectual, dentro de condições próprias, endógenas e exógenas, de acordo com situações e contextos, mais ou menos acidentais, mais ou menos voluntários e premeditados, dirigidos ou preparados para o trabalho de pensar.

Assim, por exemplo, o labor intelectual subjacente à elaboração e escrita deste artigo, envolve mais atos de racionalidade e de conexão entre memórias, onde a intuição opera e promove também memórias de conexões de memórias, do que se estivesse displicentemente a conversar, por exemplo, sobre o frio que faz hoje, mas a faculdade de racionalidade é a mesma. E, por outro lado, há efetivamente um conjunto de conclusões e uma sistematização de informação, a par de um processamento de conhecimento daí derivado, que é algo do mundo do pensado, inteligível, da linguagem, da codificação, mas que não deve considerar-se do mundo do sensível, da experiência. Não seria capaz e não me parece que seja possível, por exemplo, transmitir estas ideias através de sensações não codificadas.

E mesmo assim, codificadas, não posso ter certezas sobre a descodificação, por causa da subjetividade funcional e interpretativa do descodificador.

Carlos Ricardo Soares