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domingo, 28 de novembro de 2021

O poder da música

Porque é que a música

Tem tanto poder

E ninguém se queixa de abuso de poder

Tem tanto mais poder

Sobre nós

Quanto mais tivermos

Sobre ela

Ao fruir a música

Experimentamos o melhor de nós

E quanto mais fruímos

Mais se desfaz um laço

E nos liberta

E faz dançar

E nos desperta

Desejos de correr saltar

Voar  

Nos faz esquecer

Nos faz lembrar

Nos une a cantar

E tem graça

Tentarmos chegar

À nota mais alta

Que se pode imaginar

À que faz mover

Ou relaxar

Que livra de sofrer

Ou de pensar

Em coisas tristes

Que faz sonhar

E estremecer

E acordar

E chorar de emoção

Por termos ido tão longe

Que tarda voltar

Subido mais alto que o medo

De uma queda grave

Descido tão profundamente

Que chegamos aonde

Só a música pode chegar.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Sem mãos a medir Blandina

Sem mãos a medir
Blandina desdobrava-se
A colocar nas mesas belas canecas
A tarde toda
Debaixo da árvore frondosa
Que abrigava a praça do sol
Eu ficava a saborear as grandes distâncias
Até ir embora
Guiado por alguma luz interior
Ou carregado de dúvidas
E de pensamentos assanhados
Como companhia no longo caminho
Pelo crepúsculo dentro
Tudo o mais
Comida e bebida
Era quase irrelevante
A gula contentava-se com pão
Um punhado de azeitonas pretas
E assim se fazia noite
Até cair de sono
Ou já a sonhar irresistivelmente
Com blandinas descalças
(ou eram joias belas?)
Dançarinas de cabelos compridos
(ou eram algas comestíveis?)
Que cantavam num jardim
(ou eram sereias?)
Tão perto de mim
Que as desejava ardentemente
Ou tão afastadas
Que nunca lhes poderia tocar
O amor era assim
Tão inclemente no inverno
Como no verão
Mas não era irrelevante
Como tudo o mais
Simplesmente
Quando menos esperava
Em trocas quase reais
De prazeres de outro mundo
Por nada que não saibais.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Sentado a escrever

O homem sentado a escrever
Talvez seja uma ilusão
Provocada pela falta de álcool
Espectáculo para ninguém
Talvez esteja a ver a partir de dentro
Estrelas que alguma vez ignorou
A escrever uma árvore
Mais espectacular do que ele próprio
Que presume que as árvores crescem
Só até certo ponto
Não as vê a crescer como a lua
No topo da ira do adamastor
Um sol não se compara
A uma tertúlia de corvos
Depois de assaltarem a farmácia do faraó
Um espectáculo medonho
Não se compara à escrita
Nem à fala
Nem à leitura
O homem sentado a escrever
É uma corrente
Tudo o mais são âncoras
Velas cascos flutuantes
Aeronaves
Que buscam sentido e consistência
Para a contabilidade dos anseios
De cada vez que a vida é contada
Não conta mais nada
E tudo o mais se salva.

domingo, 7 de novembro de 2021

O bem e o mal

Não existe espaço para outro paradigma que não seja o de bem e mal? Então a cultura ocidental, judaico-cristã, não deixou espaço para mais nada? E o tempo que é preciso para o comum dos mortais perceber isso? Torna-se tão longo que é quase garantido que, até ver, não haverá nada de novo. É como aqueles estudos que ninguém tem paciência ou interesse para ler, que muitos dizem ter lido, que fazem sucesso, que só cem anos depois algum excêntrico descobre que está errado e que, na realidade, é a ciência a progredir.

Ocorre-me pensar que o bem e o mal, enquanto realidades, comportamentos, condutas humanas, referidos a um padrão de moralidade, apesar de, ou por causa de, ser sobretudo prescritivo e impositivo heterónomo, a que as religiões, à falta de melhor, deram carácter totalizante, senão absoluto, constitui um verdadeiro desafio à inteligência quando tem de julgar se o mal é o que amamos, e se não tudo, e se o bem pode ser o que odiamos, e se não tudo.

O amor e o ódio têm sido tratados, pela política e pelas ciências, como algo da competência de poetas e romancistas, ou seja, como algo imaginário, que não tem catalogação na lista canónica dos instintos, ou da fisiologia, mais focada no aparelho digestivo e outras mecânicas anatómicas.

Mas é claro que, numa lista de prioridades, até pela atenção e preocupação que lhe dispensa a cultura em geral, o amor e o ódio estão à frente do resto.

Nada é mais importante para o homem que o amor e o ódio. As guerras não se travam por causa do bem e do mal. Nas democracias as campanhas não debatem o bem e o mal. Nem nos parlamentos. Ninguém mata por causa do bem e do mal. Nem dá a vida. Nas religiões o bem e o mal tem a ver com deuses e demónios, não tem a ver com pessoas. Nos tribunais, o bem está de um lado, o mal está do outro. Na economia, bem é valor com expressão pecuniária.

Pois bem, enquanto não encararmos a realidade do amor e do ódio como é necessário ou, pelo menos, conveniente, estaremos a negligenciar o maior problema da humanidade, a ignorar o que não pode ser ignorado, sob pena de sermos continuamente derrotados pelo que não controlamos. As guerras não se travam por causa do bem e do mal. Ninguém quer saber do bem e do mal, a não ser os filósofos e os teólogos e os clérigos e os religiosos.