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terça-feira, 28 de outubro de 2025

Uma ilusão produzida pela falta de qualquer coisa

Para mim, a escrita, como atividade livre e voluntária que pratico desde a infância, entre a curiosidade, a surpresa e a crença de que o mundo e as relações sociais estão edificados e funcionam com palavras e pelas palavras, cujo poder e efeitos era sensível e perceptível a cada momento, sempre a requerer verbalização, sempre perscrutado e escrutinado por representações e discursos oficiais, que condicionavam e determinavam cada escolha e até os sonhos e as fantasias mais privados, tornou-se uma forma de organizar e de ordenar, em profundidade, um mundo em que a oralidade, só por si, funcionava mais como máscara e mecanismo de cumplicidades e de reforço de lugares comuns implícitos e de estereótipos tácitos, que me deixava invariavelmente sem respostas, até porque, não era o lugar das perguntas, ou de certo tipo de perguntas.
A constatação, ou a descoberta de que, ao verbalizar os pensamentos, as ideias, as representações, fosse de que modo fosse, descrevendo, argumentando, imaginando, meditando, analisando, não estava apenas a organizar e a ordenar as coisas segundo uma ordem preexistente que eu desconhecia e que supunha ser função da escrita encontrar, surgiu muito tarde. Essa descoberta revelou duas curiosidades: o processo de conhecimento é condicionado por prejuízos de que podemos não estar conscientes e, mesmo assim, não ser afetado nos seus resultados. 
Embora eu estivesse a ordenar e a organizar as coisas segundo vetores e sentidos e significados que encontravam acolhimento e virtualidade significativa na ordem dinâmica e instável, nunca estabelecida, dos discursos acerca da realidade, o que eu estava a fazer era o meu próprio ordenamento do mundo, a minha inteligibilidade, mesmo quando escrevia a pensar que estava a falar da ordem do mundo, ou de uma suposta ordem das coisas. 
E quem me lia, provavelmente, também faria o mesmo, sem pensar que, no ato de leitura, o que estava a acontecer era a inteligibilidade do leitor, o seu próprio ordenamento das coisas.
Talvez não haja uma forma simples de dizer “tenho a noção daquilo que te estou a dizer, mas não sei o que estás a ouvir”, ou “sei o que estou a escrever, mas não sei o que estás a ler”.
A partir de certa altura, comecei a perceber que a linguagem, sobretudo a poesia e a ficção, tinha um poder de enfeitiçar que deslocava o interesse da linguagem como instrumento de descoberta de uma ordem preexistente e de uma inteligibilidade intrínseca, ou seja, a linguagem como estrutura depositária da verdade a descobrir, para o interesse da linguagem como forma de inventar representações e de dizer, não o que eu, de algum modo, queria dizer, mas aquilo que a linguagem podia dizer. Era a estranha sensação de estar a ser conduzido, estar a ser levado, em vez de conduzir, de submeter as palavras.
A diferença entre instrumentalizar as palavras e ser instrumentalizado por elas, não é fácil de discernir, mas sente-se, sobretudo quando elas deixam de ser nossas aliadas e se tornam nossas inimigas. 
O poeta começou a perceber que há um ponto a partir do qual se pode dizer que estava a vender a alma ao diabo a troco de nada, porque este nunca pagava o prometido. Nessa altura, percebi claramente que as palavras e a escrita podem criar dependências semelhantes às das drogas e que, embora tudo e todos encorajem a cultivar as letras, partindo do princípio de que essa atividade é salutar e promova equilíbrios e sabedoria para uma vida de plenitude, de realização física e psicológica, podia levar ao esgotamento e ao vazio se, em vez de nos colocarmos em primeiro lugar, nos sujeitássemos a sacrificar a saúde em busca de efeitos literários, por mais surpreendentes e notáveis que fossem.
E pareceu-me irrecusável e indiscutível que nenhuma obra literária, por mais excitação e emoções que me trouxesse, merecia que lhe sacrificasse a minha saúde e a minha vida. Algo estava errado na poesia se ela era a promessa de algo que acabava por ser a sua negação e o seu contrário. 
Algo estava errado quando o poeta não era a personificação da poesia, se a vida do poeta nada tinha de poético por causa de a ter sacrificado à poesia.
Então disse à poesia e à linguagem em geral “não te vou dar o que requeres e me exiges, tu é que vais ter de me dar o que quero de ti”.
E foi assim e tem sido assim que me recusei a ser um catavento à espera de ser soprado por uma ilusão maior do que a ilusão da realidade. 
Sim, a realidade pode ser, e é frequentemente, uma ilusão produzida pela falta de qualquer coisa, conhecida ou desconhecida. Mas que não seja o que me falta quando apenas tenho essa coisa.

                      Carlos Ricardo Soares