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domingo, 3 de abril de 2022

Dialogar com quem não quer ouvir

Falar em dialogar já é colocar o problema num plano muito elevado de cultura e de civilização. Há coisas, ou temas, ou áreas culturais, afiliações, bandeiras, acerca das quais o diálogo é praticamente impossível, não por causa dos assuntos, mas por causa das pessoas. Em princípio, poderíamos dialogar sobre qualquer tema ou problema, diferendo, conflito de interesses, ou litígio. Mas isto requer uma preparação e uma cultura de convivencialidade e de aceitação de convenções e de mecanismos heterocompositivos das disputas que, parece-me, nenhum indivíduo está em condições de exercer, senão através de estruturas tutelares, institucionalizadas para esse fim e às quais essa competência seja reconhecida positivamente, normativamente e, ainda assim, sem prejuízo da moral individual, quando funciona como última instância.
Muitas vezes o diálogo é uma chusma de provocações e de desconversas, um não diálogo, de que é possível extrair algumas conclusões, sobretudo nos casos em que os dialogantes não estão, nem querem, pensar da mesma maneira, ou estar de acordo com uma linha de argumentação, ou estilo de questionamento, mormente quando se pelam em não reconhecer nenhuma das alegações ou razões da outra parte.
Se o diálogo for um travar-se de razões no plano académico, ainda é possível alguma consensualidade em torno da ciência e de teorias científicas, desde que estas não ponham em causa os interesses relevantes de alguém com poder.
Mas o diálogo não é, nem tem de ser, um litígio ou uma confrontação entre pessoas que não querem estar de acordo em nada.
Pelo contrário, fora das arenas dos gladiadores, normalmente, é pelo diálogo que as pessoas descobrem afinidades, interesses e ideias comuns e novidades de que nem sequer suspeitavam. Pelo diálogo aprendem o que antes não sabiam, encontram o que desconheciam, trocam informações, mais ou menos codificadas, que não trocariam de outro modo. Pelo diálogo, falam, formulam, organizam ideias, pacotes de significação, para elas próprias e para os outros, e escutam, tentam decifrar, compreender os outros através dos recursos próprios, das representações próprias daquilo que é formulado pelos outros. Pelo diálogo podem ser seduzidas ou avisadas, perder a inocência ou visitar cidades invisíveis.
Pelo diálogo, poderíamos continuar a sonhar, por exemplo, com uma democracia política que não seja pervertida pelo dogma das maiorias demográficas, nem pelo controlo do poder económico-financeiro.
Há barreiras para o diálogo, ou que se levantam ao diálogo, ou então para ocorrer diálogo (como em quase tudo na vida) é preciso mais do que querer.
A esfera da vontade, ou do capricho, por exemplo, de uma criança de dois anos, estabelece uma realidade respeitável, não em relação ao que é ou não é verdade, mas em relação ao que ela quer, ou não quer, gosta, ou não, está ou não “de acordo”, entendido aqui no sentido da satisfação do seu “interesse”.
A verdade, a moral, o direito, o bem comum, podem e devem ser objecto de diálogo, como tudo o mais, mas não é como tal, como problemas académicos ou filosóficos, que tocam a maioria das pessoas.
Na prática, os indivíduos, os grupos, os clubes, as religiões, os partidos, as tribos, as confrarias, acreditam naquilo que querem e tendem a considerar verdadeiro e justo o que lhes for favorável e não o contrário.
Até eu acredito, sem que isto me seja favorável, que o Luís XIV acreditasse que era rei por instituição divina e que a maior parte dos clérigos, incluindo o papa, todos os dias invocassem isso nas suas orações.
Mas não acredito que alguém pudesse dialogar com o rei ou com o papa sobre a hipótese de tal não ser verdade e, muito menos, de ser uma retumbante falsidade e, menos ainda, de ser uma mentira e, de todo, uma fraude.