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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O meu sonho

Ao olhar para a agenda pus-me a reflectir sobre as tarefas marcadas para este dia e perdi-me em pensamentos sobre as minhas origens e como tenho sido, desde sempre, um homem sem sonhos (se é que eu, por não ter sonhos, compreendo o que isso é).
A primeira coisa que me ocorreu ao ver que tinha de apresentar-me no posto da GNR às 14:30h, foi que, aos oitenta anos, eu podia ser preso por crimes que nunca cometi. De repente, este pensamento tomou-me completamente ao ponto de eu esquecer que a minha morte que o meu médico tinha agendada devia preocupar-me mais. Nem sei se houve algum motivo inconsciente para que deixasse de anotar na agenda o facto previsto (com data marcada) da minha morte. Se calhar foi porque numa agenda só devem constar coisas da vida. É capaz de haver quem consiga explicar lindamente estas curiosidades.
E, sem me aperceber, acabei por embrenhar-me em profundas meditações sobre os meus pais e os meus primeiros tempos de vida. Éramos uma família rica. Diria até, podre de rica. Faltava-nos o que não tínhamos, e que era imenso, como a toda a gente, mas tínhamos muitas coisas que faltavam à esmagadora maioria da população. Ouro tínhamos muito. Sonhos, que eu saiba, nenhuns. Ignoro se alguma vez estes nos fizeram falta, aos meus pais e a mim. Nem quando ouvia continuamente na rádio uma cançonetista ligeira repetir em notas alegres que não tinha ouro mas tinha tudo porque tinha sonhos. Hoje, interrogo-me sem saber a razão de o meu cavalo lusitano, que eu montava com cinco anos de idade, se chamar Sonho. Só os meus amigos percebiam que era de um cavalo que se tratava quando eu dizia que cavalgava o Sonho.
Um dia, referindo-se a um homem andrajoso que percorria as freguesias a pedir esmolas e que eu admirava por, na sua simplicidade, dizer poesias em tom profético e magistral, Valquíria, a mulher mais velha da quinta, que já servira no tempo dos meus avós, segredou-me, convicta da minha cumplicidade, que aquele homem era muito rico porque tinha um sonho.
Eu sempre quis ter um sonho, porque parecia evidente que isso era o melhor que se pode ter. E dizia-o sem rebuço. Até nas minhas orações, sobretudo quando a vida corria mal, eu pedia a Deus que me desse um sonho. À medida que os anos passavam e que eu tinha cada vez mais tudo o que queria, mais intensa e perplexa era a minha necessidade, o meu desejo, de ter aquilo que todos tinham sem dificuldade e que eu nem com rezas conseguia.
No meu décimo aniversário, quando o meu avô perguntou o que eu queria de prenda, não pensei no regresso da minha querida mãe, que tinha abalado há menos de um ano e nos deixara inconsolavelmente inconformados e infelizes. Disse-lhe simplesmente que queria ter um sonho.
Ele não mostrou surpresa. Sorriu com um sorriso de compreensão que me deixou confortado e, por fim, disse «também vivi até hoje com esse sonho». O meu avô tinha setenta anos. Era um poeta que nunca vi a escrever ou a ler versos que tivesse escrito. 
Não tenho a certeza de ter compreendido o alcance da resposta que o avô me deu. Uns anos mais tarde, uma miúda cujo nome não esqueci mas não vou revelar e que eu achava a única rapariga digna de ser considerada bela, cruzou-se comigo no escuro do corredor de acesso à biblioteca do liceu, encostou-me um dedo ao umbigo e de olhos fulminantes atirou: «todas as raparigas sonham com um rapaz como tu!». 
Há coisas que têm mais ou menos influência e repercussões na vida das pessoas. A minha vida foi definitivamente marcada por este episódio. E ainda agora me surpreendo a tirar ilações desse acontecimento: ela não disse que eu era o sonho de todas as raparigas, nem que eu era o sonho dela. 
A tosse cavernosa do reitor, que saiu do seu gabinete a escassos passos de nós, anulou a minha tentativa de fazer algo mais que ficar calado. E a única rapariga digna de ser considerada bela foi embora sem saber o que eu lhe teria dito.
Desse episódio a imagem que guardo com mais nitidez é a do reitor envolto numa nuvem de fumo de tabaco a expelir relâmpagos de um cigarro seguidos do trovejar assustador da última vez que tossiu. 
Não estive nas cerimónias fúnebres.