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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

As estrelas e os satélites


Um dos pontos fracos (do ponto de vista da criatividade e da originalidade e do aproveitamento do efeito notoriedade e da canonização de figuras, símbolos, estilos, épocas e mitos, entre outros recursos religiosos e artísticos disponíveis, que são imensos...) de muitos autores do nosso tempo, incluindo Saramago e Eduardo Lourenço, e podia referir milhares deles que são escritores, porque até têm obra publicada, mas não são autores, dizia eu, um dos pontos fracos, que me desgosta e faz desmerecer-lhes muito da admiração que lhes é devotada, é o "gene oportunista" que os faz colarem-se ao astro, como se diz no ciclismo, para não dizer que vão a reboque, por exemplo, de conventos de Mafra e de Fernando Pessoa, como satélites que devem o brilho às estrelas que os iluminam.  

Se reflectem a luz dessas estrelas, não é porque lhes emprestem ou deem luz, que os satélites não têm e as estrelas não precisam, mas é porque buscam a luz e o brilho onde ele estiver e acabam fazendo seu o que é alheio.  

Mas há autores, poetas, e dou o exemplo de Pessoa, a quem repugnaria construir a sua obra com a obra de outros e, menos ainda, com os seus escombros, porque têm ou tinham uma motivação bem diferente.  

Diria que o "espírito jornalístico do mercado da atenção" se derramou sobre o nosso tempo como um pentecostes, desta vez, mais do tipo igreja universal. 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O poder das ficções

A parte mais resistente para quem se afoita a penetrar e a pensar e a reflectir e a falar sobre a sociedade e a cultura é quando se percebe que, afinal, não temos alternativas a viver, pensar e a expressarmo-nos senão enquanto ficções, até de nós próprios.

Mesmo quando estamos conscientes disso e entendemos as coisas dentro do seu universo de significações, não nos resta senão viver de acordo com isso.

Se um autor, por exemplo, quiser ficcionar um universo paralelo, não consegue.

É tão ou mais difícil do que falar de um mundo sem metafísica e alquimia cujas linguagens e conceitos são da metafísica e da alquimia.

É tão problemático como tentar explicar que "Deus morreu" a uma multidão que, logo, reclama pelo cadáver, que têm como certo não ser possível exumar, e não ser essa a tarefa.

Na relação sujeito-objecto, o objecto passou a integrar o próprio sujeito como parte do problema, senão a maior parte.

E existem muitos riscos de comprarmos, ou de adoptarmos ficções que, de todo, não nos convêm.

Nem só os charlatães, bruxos e bruxas, sequestram os seus clientes com o poder das ficções que, habilmente, tecem para eles, fazendo-os crer que a teia existe.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Estou a pensar nos direitos humanos

Estou a pensar em ti. 

Vejo macieiras e laranjas, e umas nuvens brancas. 

Há um gato a saltar da laranjeira mais alta para o chão. Confunde-se com as sombras. Das outras árvores, voam pássaros em diversas direcções. Reconheço alguns, como se já os tivesse visto algures, mas não me parece.

À minha frente, um prado esverdeado, depois, uma floresta. 

Estou sentado nos degraus de um monumento ao Ser. 

À minha esquerda, vejo um monumento à Razão. À minha direita, um monumento ao Ter. E há outros, que não vejo. Estes parecem-me todos iguais. 

E as dez casas que avisto, também, mas nem todas têm as janelas abertas. 

O gato veio alapar-se dez degraus abaixo daquele em que apoio os pés e não tira os olhos do que estou a fazer. A qualquer movimento meu, observo um movimento da cabeça dele. 

Enfim, a pensar em alguém que significa imenso para mim.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Filosofia e sentido

A filosofia chega a ter semelhanças com uma cobra que, faminta, toma a própria cauda por uma presa e se põe a engolir-se a si própria, anestesiando-se com o próprio veneno, senão quando já desenvolveu imunidade o que, nem assim, deixa de suscitar a questão: até que ponto se pode ser autofágico? Ou, a partir de que ponto a cobra se pode considerar engolida por si mesma?
Não se sobrevive nutrindo-se de si mesmo.
O cérebro é um órgão muito especial que, segundo alguns neurocientistas, não evoluiu para encontrar a sabedoria, mas para sobreviver. 
A maioria das pessoas, incluindo talvez a maioria dos poucos filósofos que a história produziu (é possível saber os nomes e o que escreveram, sem ter uma grande memória), não pensam, verdadeiramente, não pensam, no sentido em que aquilo que percepcionam, leem, parece não lhes passar pelo cérebro, pelo menos por aquela parte do cérebro, que é suposto termos, "responsável" pela inteligência, ou pelos processos de inteligibilidade. 
As "coisas" entram pelos ouvidos, pelos olhos, enfim, pelos sentidos e, muitas vezes, saem pela boca, ou pelas expressões gráficas, etc., sem terem indícios de haverem passado pelo tal cérebro. 
Isto, assim sendo, nem é bom, nem mau, não é bonito nem feio, não está certo nem errado, não é melhor nem pior, mais ou menos verdadeiro do que se fosse diferente. Se for, é o que é e não tem de ser, nem pode ser outra coisa, pelo menos enquanto for assim.