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quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O MAIOR INIMIGO


Quando o velho bebeu o último copo
E foi embora
Fecharam o bar
Lá fora no escuro da noite
Ele sabia que os lobos só o espiavam
Por curiosidade
Para lhe farejarem a alma
E não lhe quisessem o coração
Mas por precaução
Levava consigo duas cabeças de carneiro
Para lhes arremessar
Quando se aproximassem
Não era a primeira vez
Que tinha de percorrer um caminho
Emboscado
Até chegar a casa onde vivia sozinho
E desencantado
Era como se os lobos em troca
O escoltassem
Porque matariam qualquer ladrão
Que arriscasse ser farejado
Nos seus intentos
Toda a vida preferiu percursos perigosos
E essa é a explicação que dá a si mesmo
Para a solidão em que sempre viveu
Em troca de não ser forçado a nenhuma alienação
Que não fosse o normal esquecimento
Faltava-lhe instinto de fuga
Vivia como se não passasse pelas coisas
Como se permanecesse num tempo de burro
A olhar para a experiência
Sem descartar nada
Nem o perigo
Até que já não podia mais
Enfrentar o maior inimigo
A tristeza
Das suas memórias.

domingo, 22 de agosto de 2021

Promessas

O que estragava a felicidade do presente
Era a ameaça do futuro
E nunca mais deixou de ser assim
Enquanto éramos crianças felizes
Sem futuro
E sem passado
Tudo tinha o seu tempo seguro
E as nossas palavras eram nossas
E as nossas alegrias eram nossas
Tudo era nosso
E o nosso era tudo
Mas quando nos disseram que tínhamos de deixar
De ser assim
Tivemos de aprender que não podíamos continuar
A ser felizes
Por mais que nos dissessem que a felicidade
Era outra coisa no futuro
Para nós não passava de uma ameaça
Que nunca acabou
E que nos foi convertendo
Em descrentes
A quem roubaram tudo
Com promessas.

sábado, 14 de agosto de 2021

História por contar

Há uma história recente para contar, desde o 25 de abril, que é a resposta à pergunta: "como a direita e os fascistas se têm vingado levando, pelas mãos da esquerda, um país livre à ruína, sabotando toda a economia e todos os apoios e toda a redistribuição de riqueza?". 

O panorama empresarial português, sobretudo algumas empresas que passaram ou ainda estão na bolsa de valores de Lisboa, e não apenas no PSI20, ou 18, ou 15, podem ser boas pistas de investigação e de reflexão. Mas trabalham numa amplitude temporal que lhes permite passarem despercebidos aos radares "fotovoltaicos" da atenção conjuntural. 

A direita percebeu muito bem que quem domina em ditadura domina em democracia, a questão do domínio não é meramente política. Basta afivelar a máscara no palco da tragédia.

domingo, 1 de agosto de 2021

Ser Poeta

Num mundo de ideais por realizar, em que idealizar deixou de ser prudente e sensato, em que o ideal é não ter ideais, ser poeta é a pena máxima a que alguém pode ser condenado por descobrir que um homem é uma ilha e sentir que isso é o contrário de praticamente tudo, excepto de um ideal.

Num mundo em que a indústria do som, das arengas, das propagandas e dos engodos é capaz de manter perpetuamente infatigável a máquina, a troco da nossa fadiga e alheamento, ser poeta é ser um pobre diabo sem procuração para representar nada nem ninguém.

Neste mundo estranho, fascinante para quem consegue, num concurso para escolher o seu sósia, o poeta não seria classificado nos três primeiros lugares.

De todos os que falam, ou lhe falam, em nome de qualquer coisa, ou entidade (é a mesma coisa), seja Deus (não há quem declaradamente se afirme mandatário do diabo), seja a Verdade, seja a Justiça, a Sabedoria, a Beleza, a Virtude, o poeta não se contenta com menos do que uma procuração conferindo-lhes esses poderes especiais, devidamente assinada por quem lhas, alegadamente, outorgou. E por não se contentar com menos do que isso, fica por contentar, porque ninguém tem esses poderes.

O poeta não fala por procuração. Não é advogado de causa nenhuma, nem professor de coisa nenhuma. Ao falar, em nome próprio, o poeta não está a falar acerca de nada, está a falar (a)penas.