Hilário: compreendo a dificuldade que sentes em ouvir-me quando falo de recordações minhas que são narrativas do que não viveste
Amiga: sobretudo quando me falas de sítios onde nunca estive e de sentimentos que eu não sei se tive alguma vez
Hilário: são imensas as coisas que nunca poderemos comunicar com ninguém, nem através da música, nem através dos gestos, nem através das palavras
Amiga: até a saudade, nesse aspeto, é um fardo pesado
Hilário: é como se não tivéssemos sido capazes de dominar o tempo como soubemos preservar as memórias
Amiga: não fomos capazes de parar nesses cenários, saímos deles por alguma razão que, agora, nem nos interessa saber qual era
Hilário: mas era a vida a fluir, não éramos só nós a deslocarmo-nos de uns cenários para os outros, era toda a gente
Amiga: nem quando estamos sozinhos, muito tempo no mesmo lugar, pensamos na mesma cena mais do que uns instantes
Hilário: termos esta noção é como se víssemos o tempo a passar diante dos nossos olhos
Amiga: sem o podermos parar
Hilário: mesmo que o quiséssemos parar
Hilário: e não lhe disseste
Amiga: disse, mas quando disse já não estava no tempo desse encanto, já estávamos no tempo de olhar para o que passou e, uma hora mais tarde, já estava a viajar em sentido contrário, de regresso a casa, que também seria a minha casa por pouco mais tempo, e assim sucessivamente
Hilário: quando olho para o passado só vejo desastres, demolições, tempestades, guerras, mortes, aflições, trabalhos, um mundo a ruir à nossa volta
Amiga: mas tivemos a sorte de tudo isso ter acontecido à nossa volta e não nos ter acontecido a nós
Hilário: aconteceu-nos, também nos aconteceu e o que aconteceu ainda continua a afetar-nos de múltiplas formas
Amiga: do mesmo modo que não paramos nos melhores momentos, com pena nossa, também não paramos nos piores, para nosso alívio.
Carlos Ricardo Soares