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terça-feira, 28 de março de 2023

Amor amar e ser amado

No amor não é louco quem quer

mas quem a loucura arrasta

para um negócio em que o perder

não faz sentido nem afasta

da obsessão do prazer

que é suposto amor

ter

e nem por sombras

por amor se pensa

que entre amar

e ser

amado

existe alguma diferença

mas não ama quem quer

que amar requer

ainda mais do que ser

amado

e não é só pelo prazer

desejado

mas pela permissão

do que não nos é dado.

sábado, 18 de março de 2023

Que ecos ouviremos

I

Nem por sombras devemos 

pisar

presenças indefesas

que não vemos

nem com toda a suavidade

tocar a textura

de felgas que tombam

ao menor sopro

II

não devemos morder

nenhum enigma amistoso

nem com toda a delicadeza

ralhar 

às artes impossíveis

nem com a polidez surda

de tanta mágoa

cegos de tanto carpir

sobre muros de água

III

não devemos afluir

ansiosos 

pela tangência das pegadas

para não pisarmos a cauda impalpável

de eternidades 

adiadas

IV

não devemos macular

nem com um dedo fantasma

uma casta amorosa

sem temermos não ser entendidos

na enologia dos bagos

do afeto

das castas espontâneas

sem sermos reconhecidos

à entrada dos recintos

dos pontos cardeais

e despojados da santologia

do ouro e dos cristais

dos estandartes

de castas virtudes

de poentes de gala

a alvoradas de castiçais

V

não devemos cantar

de galo

nem conspurcar nada

nem a ferruginosa fadiga

dos que aguardam nos degraus

das alfândegas da fé

até se tornarem suspeitos

de estarem perdidos

VI

não devemos rogar

para sermos levados

para lugares ainda mais desconhecidos

que os não encontrados

VII

não devemos confiar

que tudo seja como assisadamente

sentimos o mosto

de gentilezas irrecuperáveis

da musa amiga minha

nem perguntar aos claustros

que encontraremos no caminho

das nossas tristezas

que graças libertinas

serão os nossos pulmões

e as nossas tibiezas

no silêncio das visões

da vida interior

que ecos ouviremos

ao pensar no amor.

 

domingo, 12 de março de 2023

Lucidez crítica

Louvo a lucidez e a acutilância crítica, que não cede a ambiguidades.
As religiões e as igrejas e muitas organizações políticas que se lhe assemelham e que lhes copiaram os métodos (estou a pensar nos partidos comunistas e nos fascistas), na minha perspetiva, são respostas humanas adaptativas, culturais, racionais, a situações e necessidades humanas, adaptativas, culturais, racionais. Elas foram e serão a melhor resposta até que apareça outra melhor.
Mas não podemos perder de vista o seguinte: elas nunca foram uma boa resposta.
Aliás, dificilmente ou nunca, houve uma boa resposta, nem sequer científica, a um problema. Este é o drama e a tragédia da condição humana.
Todos pensamos saber o que é melhor, mas ninguém sabe o que é o bom.
Quanto a Cristo, a quem não podemos atribuir méritos, nem responsabilidades, porque não terá escrito nenhuma das palavras que lhe são atribuídas, continua a ser crucificado, como se continuasse vivo na cruz, por aqueles que mais se servem dele para fins contrários ao que ele simboliza.
Os grandes cristãos, verdadeiros cristãos, não eram religiosos e não pertenciam a nenhuma igreja, mas preconizaram a doutrina cristã que, em certo sentido, não deixa de ser ateia.
Encontramo-los no iluminismo, os mesmos pensadores que a igreja católica abomina e culpa de todos os males, que souberam interpretar a doutrina cristã da igualdade, pedra angular de todo o edifício da civilização, que nem os gregos, nem o romanos, nem os teólogos cristãos lograram perceber.
Aqueles que, dizendo-se cristãos, não foram capazes de compreender a doutrina de Cristo, foram superados por quem os desprezava nas suas contradições e que, justamente, não eram cristãos que se serviam de Cristo para fins contrários à doutrina cristã.
Para dizer, em suma, que me causa tristeza e angústia ver, por todo o lado, tantos monumentos à infâmia, de que destaco a basílica de S. Pedro no Vaticano e outras construções faraónicas, não por serem, como as vejo, monumentos à infâmia que, como tais e como obras de arte, devem ser preservados, mas como locais de peregrinação, de culto e de adoração.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Por que escreves?

Lembro-me de inúmeras vezes, fora as mais de que me esqueci, em que, à míngua de “inspiração” para escrever e porque não houvesse algo melhor para fazer, em vez de tentar responder à pergunta “por que não tenho algo melhor para fazer?”, ficava a magicar razões para escrever, que acabavam por ser o objeto da minha escrita. Mais do que o clássico “conhece-te”, deparava-se-me o irrespondível “por que escreves?”.
Nem quando escrevia uma carta de amor eu era capaz de confessar a mim próprio que sabia o motivo pelo qual me sentava a buscar as melhores palavras e a mais eficaz concordância entre elas.
Às vezes, mas por razões bem diferentes, perguntava “por que estudas?”, ou “por que lês?”. Estas questões pareciam ser desnecessárias, como perguntar “por que trabalhas?”, ou “por que comes?”.
Hoje, julgo perceber que há um princípio de sabedoria na indagação dos motivos que nos levam a fazer o que fazemos, mais do que na indagação do ser quem somos.
Se considerarmos que cada um de nós é uma ilha, que não há mais do que o ponto de vista de cada um, e que somos seres de linguagem, sociais, que provavelmente não conseguimos demonstrar a objetividade de nada que comunicamos, do mesmo modo que não conseguimos saber até que ponto a subjectividade é comunicada, torna-se desafiante tentar perceber por que motivos tantas pessoas, e eu sou uma delas, se sentem atraídas pela linguagem, sobretudo a escrita, que começa por ser imposta como o fiel e o garante das verdades mais sagradas e mais inquestionáveis, por uma autoridade que remete a sua própria autoridade para essa escrita, como se a escrita, em si mesma, fosse já a face, não de alguma forma de verdade, mas da verdade a que estamos sujeitos, até pelo uso.
Assim que alguém percebe que as palavras para dizer verdades não são as verdades, ou que é preciso usar falsidades para dizer verdades, que é o modo de ser da linguagem, mormente a escrita, o fascínio pela escrita instala-se, se nisso formos tendo um repetido prazer, até se tornar um vício, uma busca do prazer pelo prazer, como um reflexo condicionado de pressionar um botão gratificante.
Na prática, descobrir que é difícil, ou impossível, dizer alguma coisa sem dizer o seu contrário, é como encontrar o santo graal.