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sábado, 30 de dezembro de 2023

De ti

Havia a rua

quase no fim

o aqueduto

à esquerda

pelo botânico

passo a passo

se me esperasses

no jardim

de plantas exóticas

de ultramares só meus

intermináveis enfim

sem cansaço

ao adeus

os meus olhos erguiam

árvores de respiração

da formosura que vi

tudo me lembras

e tudo me lembra

de ti.


Carlos Ricardo Soares

 

sábado, 9 de dezembro de 2023

Se não podes lutar, nem fugir, resta o SOS

Perturbador e desmoralizante é percebermos que para onde quer que fujamos, para onde quer que dirijamos as nossas queixas, lá está mais um partido, ou sindicato, ou ordem, ou exército (angariador de angustiados e perseguidos, a firmar contrato com uma máfia certificada pela democracia, ou por outra merda qualquer, para expatriados à força) a alistar-nos nas suas falanges. 
Foges de um partido, entregas-te nos braços de outro. 
Foges dos partidos entregas-te nos braços dos bancos e dos sindicatos. 
Tens de vender o que vales e há sempre uma missão de rua, caridosa, que aceita os teus despojos e a tua revolta, se a tiveres, para lhe atribuir um valor simbólico. 
Queixamo-nos de que as instituições falharam e nos traíram, e hoje sabemos que o fazem impunemente, mas na realidade nós nunca fizemos qualquer acordo com elas, caímos nas mãos delas e foram elas que prometeram, umas às outras (nem foi a nós) e ao mundo e aos melhores deuses do olimpo, fazer por nós algo que, sinceramente, nunca acreditamos que quisessem fazer. 
Mas como vinculá-las e obrigá-las a cumprir as suas promessas?

sábado, 2 de dezembro de 2023

Saia Sete-Estrelo

Se houvesse outro azul

outro mar outro céu

se as palavras dissessem por mim

e eu só as ouvisse

e logo entendesse tudo

se não fosse eu a dizer por palavras

que a mim mesmo digo

ainda assim

a tua saia de sete-estrelo

seria inconfundível ao crepúsculo

mas é muita sorte descrevermos

aquilo que ambos vemos

e pensarmos que nos entendemos

porque realmente

não se trata de um jogo.


Carlos Ricardo Soares

domingo, 26 de novembro de 2023

O presente é a única forma de estar no tempo

O presente é a única forma

de estar no futuro

e no passado

é a única forma de estar

no tempo

aqui

ou em qualquer lado

enquanto me distraio

com o diferido

sou ultrapassado

por ter vivido

numa lua cheia.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Castro Laboreiro

Por Castro Laboreiro

um intruso

que caminha

milhares de anos

até chegar aqui

ao refúgio dos lobos

que me seguem

e já os pressenti

na sombra dos carvalhais

pelos bosques

tropeço em calhaus

no mato molhado almejo

por vales e corgas

ao fundo um prado

batido pelo sol

inspiro o ar almiscarado

e lá no alto azul

com asas colossais

águias dão voltas

tão suaves

que nem parecem reais

como este riacho

a cortar a passagem

e mais abaixo defronte

de bela arcada uma ponte

de pedra tão antiga

que parece segura

de sempre ter estado ali

erguida

sobre a verdura espessa

que abriga lontras e rãs

e o mesmo se diga

de árvores tombadas

no ervaçal de hortelãs

donde salta em alvoroço

natural

um corço assustado

como se fugisse

de um caçador feudal

fico arrepiado

com tal beleza

que nem penso

que outras passaram

afinal

onde está aquela ponte

outras pontes desabaram.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Aproximações à verdade XXIII

Hilário: elas são tão irreprimíveis nos seus contornos
Amiga: como os sonhos não deviam acabar
Hilário: tão possíveis como os subornos
Amiga: podem escaldar
Hilário: tão soberanas nas formas
Amiga: como os instintos obedecem
Hilário: tão insondáveis no sentir
Amiga: quanto mais parecem.
Carlos Ricardo Soares

sábado, 4 de novembro de 2023

A racionalidade, de mecanismo básico de sobrevivência a faculdade de pensamento e inteligência

Darei por muito bem aplicado o meu propósito de contribuir com algumas notas relativas ao que penso sobre os temas da racionalidade e da liberdade, da racionalidade como faculdade humana de sobrevivência, de conhecimento e de inventividade, e da liberdade como exercício de racionalidade.
São temas charneira do meu pensamento sobre o que é “ser humano”. Distinto deste é o problema de saber o que é “o ser humano”.
A minha tese é que a racionalidade é um mecanismo básico de sobrevivência, que os humanos aplicam a uma vastíssima gama de situações, muitas das quais não têm a ver com a sobrevivência, mas resultam de fatores culturais.
Um indivíduo humano que não tenha a faculdade de racionalidade, dificilmente sobreviverá sem a ajuda dos outros. E, se for um indivíduo de outra espécie não conseguirá sobreviver.
A consciência da racionalidade permite aplicá-la a todo o tipo de situações, concretas ou ficcionadas, seja através de imagens, palavras, números, enfim, a racionalidade pode transformar tudo em linguagem e a linguagem, em praticamente tudo.
Pode multiplicar e desmultiplicar mundos e visões.
A racionalidade permite-nos escolher, dentro dos limites das possibilidades e estas variam muito de indivíduo para indivíduo, por fatores individuais endógenos e exógenos.
A liberdade é um exercício de racionalidade. Dizemos que não temos liberdade quando não podemos escolher. Esta falta de liberdade pode ser total, ou absoluta, quando não podemos escolher de todo, ou parcial, quando temos um leque de opções, mais ou menos extenso e variado.
Se os limites nos são impostos naturalmente, isso é um constrangimento natural, se nos forem impostos por outros indivíduos, ou pela sociedade, isso é um constrangimento social, político, cultural, ético, jurídico. Os limites morais são os que o indivíduo estabelece para si mesmo.
A questão dos limites morais coloca-se quando existe possibilidade de não respeitar os limites parciais ou relativos que são impostos pela sociedade, ou por outros indivíduos.
A racionalidade exerce-se, ou opera sobre dados, ou termos discerníveis. Podem ser sons, números, volumes, palavras, sinais, quantidades, qualidades, enfim, tudo o que conhecemos e tudo o que se possa imaginar. Esta liberdade de pensamento é ilimitada, no sentido em que só tem como limite a capacidade de estabelecer relações.
A racionalidade é pensamento e, como o pensamento, também é ilimitada quanto ao campo da sua aplicação, exercício, ou operação.
A liberdade é uma condição biológica, viva, concreta, física, que pode ser ilimitada quanto ao pensamento, mas é limitada por fatores endógenos e exógenos que podem assumir natureza física, mais ou menos inelutável, como já referi.
A faculdade de racionalidade, que permite distinguir e estabelecer relações entre coisas, ideias, enfim, tudo o que seja suscetível de ser percecionado, pensado ou ter significado, nos humanos, pode operar sobre vastíssimos domínios, ou objetos, não apenas da experiência direta dos sentidos periféricos, mas também da experiência indireta das representações mentais, das ideias, dos números, das formas, dos conceitos, das teorias, das crenças, dos interesses, dos valores, dos sentimentos, dos significados e dos sentidos que se dão.
Certamente que essa faculdade não é conhecimento, nem resolução de problemas, mas não há conhecimento, ou seja, ninguém poderá ter a experiência de conhecimento, se não tiver a aptidão, ou estiver impedido, de usar a faculdade de racionalidade.
O uso que se faz dos termos racionalidade e irracionalidade é tão amplo e, por vezes, tão contraditório, que apresenta a racionalidade como boa e a irracionalidade como nefasta, sendo esta, tantas vezes, acusada de todos os males que se poderiam imputar aos humanos.
Encontro uma justificação plausível para este entendimento. Em geral, confunde-se racionalidade com verdade, com o que está certo, com retidão, com direito, com ciência, com aquilo que resolve problemas, que tudo devia, ou deve ser. Irracional é o resto, o que está errado, que é nocivo, que é perigoso, que causa problemas, que é injustificado, independentemente de ser censurável ou não.
Este uso, tão arreigado nos nossos hábitos de comunicação e de linguagem corrente, dificulta, se é que não impede, que vejamos a racionalidade com outros olhos, ou seja, que entendamos a racionalidade como a faculdade humana que está presente em toda a ação dos indivíduos, de tal modo que muito daquilo que designamos como irracional, de facto é tão racional como aquilo que designamos propriamente de racional.
O cerne dos problemas da humanidade, resultantes dos seus comportamentos ou produzidos por estes, não está no serem estes racionais ou não, está no serem problemas.
Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

O Direito é o limite

Partilho da tese de que o homem é um estado da natureza em que esta adquire certa consciência e a faculdade de racionalidade e a capacidade de operar na natureza, num âmbito mais sofisticado (sem deixar de ser natural, embora cultural) do que aquele em que operam os elementos físicos que, culturalmente, distinguimos de nós, humanos. 
Diria que o ser humano acrescentou à tabela periódica alguns elementos que agem e reagem com aqueles de uma forma brutal e nunca vista antes. Nada disto é mais do que a natureza a funcionar. Nem acredito que haja nada fora da natureza. 
O que acredito, e parece constatar-se, é que a natureza (o homem) criou a cultura e criou deuses, e criou Deus e criou as bombas e faz as guerras, as leis, a ética, a moral, o direito, a concordância, a ordem e o caos, a vida e a morte. Realmente, podemos acusar a natureza de tudo, mas só estaremos a acusar-nos a nós próprios; como podemos desculpar a natureza de tudo, para nos desculparmos. Qual é a parte da natureza que não é a voz da natureza? Que não é a consciência em que a natureza culminou? Que não tem responsabilidade? A natureza cindiu-se em partes distintas? Deixou de ser uma e passou a ser múltiplas? Quantas natureza existem? E o que têm de comum entre elas? O que é que na natureza, senão o homem, pode colocar estas questões, dar-lhes sentido e tentar responder-lhes?
Se a humanidade se autodestruir e destruir o mundo que criou, podemos dizer que será a natureza a fazê-lo e nem ficará natureza que possa lamentar isso ou acusar alguma natureza disso, admitindo nós que o homem é o tal expoente da natureza capaz de fazer essa avaliação.
O ser humano não tem as faculdades e as liberdades e as capacidades de outros elementos da natureza, mas tem algumas que são únicas e que são incomparáveis, como a consciência, a racionalidade e a liberdade de escolha (dentro das possibilidades). Não temos o poder de um vulcão, ou de um tornado, ou de uma estrela que explode, mas temos a capacidade de usar ou não a bomba atómica. 
O quadro de possibilidades de escolha que fomos capazes de proporcionar-nos ao longo da história, não tem paralelo com o quadro, praticamente fixo, com que se deparam os outros animais.
Se não soubermos reconhecer até que ponto está nas nossas mãos preservar, não a nossa natureza geral que, independentemente da nossa vontade, será sempre transformada numa massa natural, como já agora é quando morremos, mas a nossa natureza particular de seres vivos conscientes, racionais, livres, podemos deitar a perder aquilo que, pela própria natureza das coisas e da racionalidade, teremos o poder, mas não o direito de fazer.
O Direito é a fronteira que o homem não pode ultrapassar, que o separa da sua própria natureza, sob pena de se negar a si mesmo.

Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 24 de outubro de 2023

A tirania do mérito e a meritocracia

Não resisto a dizer umas coisas sobre a tirania do mérito e a meritocracia.
É da máxima importância que os poderes políticos, a quem cabe a governação e a implementação de mecanismos de incentivo ao desenvolvimento, porque é incontestável que este pode e deve ser promovido pelo Estado, assumam as questões do mérito num plano em que o mérito é das variáveis em que o poder político terá mais hipóteses de contribuir para a realização dos seus objetivos de boa governação, de promoção da ciência, tecnologia e cultura para o desenvolvimento do país.
O próprio conceito de mérito é rebelde às tentativas de o reduzirmos à ideia de merecimento pelo esforço, pela dedicação, ou pelo trabalho. Nesta perspetiva, o mérito de um perdedor numa competição pode ser maior do que o do vencedor.
Nas sociedades liberais, e nas outras não será muito diferente, o resultado, o produto, a mais-valia, a virtude, e o próprio talento individual, tendem a ser critério de mérito daqueles a quem sejam devidamente imputados. Normalmente é o mercado que trata disso. E como nem todo o resultado, ou produto, ou atividade, têm o mesmo valor, num determinado momento, ter mérito não significa a mesma coisa para duas situações diferentes.
O mérito do marcador do golo não tem o mesmo valor do mérito do colega que lhe passou a bola para ele marcar. No entanto, mesmo nestes casos do desporto, o mérito de quem passou a bola pode ser reconhecido por toda a gente como muito superior ao de quem marcou. Neste exemplo, e noutros, o mercado não reconhece o mérito pelo valor funcional, pessoal, social, estético, ou mesmo ético. O mercado é cego relativamente a isso.
O mercado só tem olhos para o valor de mercado, ou seja, que se exprime em unidades monetárias. E não será porque se apele à boa vontade dos agentes económicos que estes passarão a atribuir mais valor monetário a alguém pelo mérito (não monetário) de algo que faça.
Assim, temos um desencontro, muito inconveniente para a sociedade e para a promoção dos seus pilares de sustentação e de desenvolvimento, entre aquilo que, sendo de reconhecido mérito, humano, social, cultural, científico, estético, ético, o não é efetivamente no plano do reconhecimento económico.
Por outro lado, este desencontro vai-se exacerbando à medida que contribui para reforçar os investimentos e as atenções e as expectativas, não tanto naqueles méritos, que o são reconhecidamente como vitais, mas preferencialmente nos outros.
As implicações negativas, para a economia e para o desenvolvimento social, deste fomento induzido pelo mercado, podem e devem ser contrariadas pela ação e pela intervenção do Estado, nomeadamente, através de políticas de incentivo e apoio, através do reconhecimento pessoal e patrimonial do mérito.
De preferência, passe o sarcasmo, que não se limitasse a atribuir medalhas de mérito, ou de mérito póstumo e que não fossem para quem já teve o seu mérito reconhecido.

Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Aproximações à verdade XXII

Hilário: amar é pelo bem que sabe, pelo gosto que dá

Amiga: e o sabor que tem

Hilário: pela vontade que há, pela ideia que se faz do que é

Amiga: que será

Hilário: pela falta que faz o bem desejado

Amiga: pela dor persistente do amor ausente

Hilário: amar é pelo próprio poder de escolher

Amiga: pela liberdade de fazer

Hilário: pelo prazer de dar prazer

Amiga: ser amado é ser escolhido

Hilário: ninguém pode escolher ser amado

Amiga: quem quer ama

Hilário: não é amado quem quer

Amiga: ninguém tem esse poder

Hilário: ninguém tem o direito de ser amado

Amiga: mas temos o dever de amar

Hilário: e, se não amares, que te pode acontecer?

Amiga: sabes a resposta ou perguntas para saber?

Hilário: sempre amei, não sei o que é não amar

Amiga: o mesmo digo eu, tenho experiência de amar e de odiar, mas não isso de não amar

Hilário: no entanto, há muitas pessoas que não amas nem odeias

Amiga: há, haverá e sempre houve, podemos amar quem não conhecemos?

Hilário: isso do conhecer é muito relativo, até que ponto se pode conhecer alguém?

Amiga: voltando ao dever de amar, em que é que consiste, se é que existe?

Hilário: nem as autoridades, nem a polícia, te perguntam se amas ou deixas de amar e não há sanções para isso

Amiga: não perguntam, nem estão autorizadas a fazê-lo, até o tribunal está inibido de se meter nesses assuntos, porque não há leis sobre o direito e o dever de amar e o tribunal trata de leis

Hilário: nunca ouviste falar na lei do amor?

Amiga: já estava à espera dessa, do dever de amar a Deus sobre todas coisas

Hilário: e ao próximo, como a si mesmo

Amiga: acreditas nessa lei? Que tens esse dever e que, se tens esse dever, então toda a gente tem ou que, se toda a gente tem esse dever, então tu também tens?

  Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Os humanos são incorrigíveis?

É com grande amargura e desgosto que penso que as guerras têm de ser encaradas como uma fatalidade, pelo menos, depois de começarem. São como as catástrofes que não somos capazes de evitar. No caso das guerras a catástrofe é o próprio “elemento” humano. Não é uma catástrofe como as naturais, que são desencadeadas por ocorrências físicas meramente mecânico-causais. No caso das guerras, a catástrofe não é apenas uma consequência da acção humana, é um objectivo clara e expressamente assumido.
Os que se preparam para a guerra e a desencadeiam nem sequer o fazem em segredo, porque antes de acontecer ela se anuncia, de variadas formas que os especialistas não podem ignorar. Dir-se-ia que a guerra começa muito antes de acontecer, como todas as catástrofes. Quem desencadeia uma guerra, sobretudo se é uma grande potência no xadrez internacional, sabe o que lhe pode acontecer e sabe o que lhe vai acontecer, porque o que puder acontecer-lhe vai acontecer-lhe e ela sabe. As catástrofes não duram sempre. Uma catástrofe não é um triunfo sobre nada, nem ninguém. No fim da catástrofe, triunfam os que sobrevivem.
Quem desencadeia uma guerra sabe que não sobreviverá a essa catástrofe, que vai ser derrotado e aniquilado pela derrocada dos explosivos que activou. As guerras, ainda antes de começarem verdadeiramente, já o são como ameaças das consequências que virão a ter. O amor, pelo contrário, quando começa não ameaça nada. Sabendo disto, os profissionais da guerra deviam evitar, até por dever profissional, promover condições que se tornarão trágicas para os outros, para aqueles que não gostam, nem precisam de guerras, porque viver e deixar viver é melhor do que impedir de viver.
Para fazer guerra, ou melhor, para desencadear uma guerra, é preciso mais, muito mais do que animalidade, ou instinto de sobrevivência. E é preciso mais, muito mais, do que racionalidade ou sentimentos.
A hostilidade, o ódio, o medo galvanizador, o calculismo e o ressentimento promovido e alimentado por narrativas delirantes, ou pelo delírio narrado, prefiguram de tal modo as ameaças do abismo, que a dinâmica política, militar e social é contaminada e arrastada pelo desespero de causa. A serenidade e a frieza tornam-se impossíveis no momento em que mais vantagem podiam ter e mais falta fazem.
Uma guerra não começa se não houver contendores, partidos, rituais, gregarismo, armas, embriaguez, crença nas representações das hostes, do inimigo e, se não houver um desejo de vitória pela força, há certamente um furor orquestrado para infligir dor e sofrimento.
Depois de começar, uma guerra é um monstro que não precisa de mais nada que o desejo de vingança, e esse vai crescendo sempre, nos beligerantes.
A guerra é humana. Paradoxalmente, é desumana. Por ser tão temível e tão horrível é que os humanos acreditam no poder da guerra.
Os humanos têm-se revelado incorrigíveis, ao longo da história, comportando-se como se estivesse nas suas mãos fazer a guerra, mas não a paz.

Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Paraíso sem deuses

Olhamos o musgo no rochedo milenar
e precisamos de um silêncio suplementar
de uma imunidade profunda
que nos proteja das contabilidades
para podermos sentir
a sombra envolvente
e os murmúrios das águas resilientes
nessa ilusão de paraíso
sem deuses
a quem seja dado contemplar belezas
tão antigas
que os químicos matarão ao batizar.
Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

A vida o sentido da vida e o sentido das questões

A questão do sentido da vida, do bem e do mal, do universo, das coisas, do sentido (do sentido do sentido) não se coloca a toda a gente, ou, por outras palavras, nem toda a gente a coloca, ou se coloca essa questão.
Como quase todas as questões, não é necessária. E as questões que não são necessárias são vistas como inúteis e ociosas. Só poetas e filósofos tentam por todos os meios fazer com que sejam questões com sentido.
A questão do sentido da vida, os filósofos. A questão da vida, do sentimento da vida, os poetas.
Mas, para que essa questão do sentido da vida seja uma questão com sentido (não uma questão com resposta ou solução), já se ocupam, cada vez mais pensadores, a questionar a vida e a história, o desenvolvimento tecnológico e, sobretudo, a vida que as pessoas fazem, o modelo económico e o estilo de vida herdados da revolução industrial e que sobreviveram às I e II guerras mundiais que, aliás, tiveram efeitos aceleradores e propulsores, com as consequências que estamos a ver. Sobre as possibilidades de sobrevivência num mundo organizado segundo o modelo actual (falacioso e inexequível) de abundância para todos, ou, teoricamente, de riqueza para todos, casa, piscina e carro para todos, nem é uma questão de sentido, mas de contabilidade. Questão de sentido já pode ser: porque é que os responsáveis políticos continuam a apostar nesse modelo e a ganhar eleições defendendo-o, na China, na Índia, no Brasil, nos EUA, na UE, na Rússia, quando todos sabem que estão a vender uma falácia, ou seja, uma verdade que é mentira.
Verdade/mentira: pode-se ser o mais rico, ninguém, teoricamente, está excluído, à partida, do acesso ao topo da pirâmide, nem que seja por génio. /Dois biliões, ou três, ou mais, de seres humanos, porque têm direito, podem esperar e confiar que terão uma casa, alimentação, educação, lazer, uma vida digna, serviços de saúde, direito ao trabalho, à justiça e à paz.
Se um indivíduo nas suas lucubrações conclui que a vida não faz sentido, o universo não faz sentido, as suas palavras não fazem sentido, nada faz sentido, quem se sente no direito de o contrariar? Se um outro indivíduo pensa que a vida faz sentido, que tudo faz sentido, mesmo aquele indivíduo para quem nada faz sentido, quem se sente no dever de o contrariar? Ambos têm um sentido.
Se, porventura, alguma instância judicativa suprema e irrecorrível, ditadora de sentido, o ditasse, nada mudaria quanto à questão do sentido da vida que cada um adopta, ou adoptar.
Na realidade, a questão do sentido da vida é apenas uma questão, como tantas outras, não obstante, a resposta que alguém der a essa questão não deixará de ter repercussões na vida e nas vidas. É como responder a um teste na escola. Embora na escola os testes sejam sobre questões das quais já se presume saber a resposta (o que é extremamente limitativo e empobrecedor), todos os que fomos estudantes sabemos que as respostas que demos tiveram repercussões na nossa vida e na dos outros.
A tónica dominante, passe a redundância, é, continua a ser, o paradigma do puzzle, a realidade recortada de uma certa forma e, para a reconhecer, há que encaixar as peças, tal e qual como fizeram os sábios e os sacerdotes, de antanho, detentores das respostas e dos sentidos.
Num passado mais próximo, com todos os defeitos inerentes às enciclopédias, deu-se um passo em frente e, em vez de termos a resposta num livro sagrado, passamos a tê-la nas enciclopédias. Nada mau.
O que é difícil de aceitar e de vulgarizar é que, qualquer que seja a resposta que encontremos, seja em pedra lapidada, ou escrita na água, ela é uma construção operada por cada um de nós, boa ou má, certa ou errada, e não temos e não há outro remédio. Quem não gostar do termo construção, que parece muito braçal e indiferenciado, pode escolher outro, que pareça mais elegante e ajanotado.
Se um amigo me dissesse que a vida dele tem sentido, embora nem sempre e, passado um tempo, reconhecesse que, afinal, tinha perdido o sentido, eu diria que tudo isso faz sentido. Há imensas coisas falsas que fazem sentido.
Qualquer mentira faz sentido.
A esse amigo, eu era capaz de propor que, se precisava de um sentido, que escolhesse, que criasse o sentido que mais lhe agradasse, como se deve fazer quando se lê poemas. Se não precisasse de um sentido, que não se preocupasse, porque uma necessidade de sentido, em termos existenciais, ou económicos, não pode ser colmatada, ou satisfeita, com qualquer sentido imaginário, hipotético, ou sem sentido, a não ser que isso fosse uma arte ou uma filosofia criativas.
 Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Que seria o mundo sem filosofia?

Não temos forma de saber o que seria o mundo sem a filosofia, mas podemos tentar saber o que é o mundo com a filosofia, qual o seu papel e influência. 
Na minha opinião, tem um papel e uma influência decisivos, em todos os domínios, mas para termos a noção disso, é preciso muita filosofia. 
A filosofia sempre se assumiu e continua a assumir-se como fonte de conhecimento e critério de conhecimento, ou, mais em geral, fonte de sabedoria e critério de sabedoria. 
Nada lhe escapa, nada lhe é estranho, de nada é excluída. 
Não há matéria ou assunto que lhe sejam vedados. 
O único limite está na capacidade e na competência do filósofo.
                                                 Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Demónios, deuses, humanos e outras formas de vida

Carl Sagan explicou muito bem o problema em que estamos envolvidos: o mundo está infestado de demónios.
Vou “inspirar-me” neste excelente contributo para rir-me dos demónios e dos deuses.
Na situação atual, receio muito que os deuses já tenham perdido a guerra porque, para os deuses vencerem os demónios, é necessário algo mais do que palavras e água benta, num campo de confrontos em que tudo é feito à custa do ambiente. Nada se faz que não seja à custa do ambiente.
As vítimas são a vida, humana e das outras espécies. Os demónios não sabem trabalhar sem acabar com isso tudo. O trabalho deles parece que não é outro. Vivem disso. São como as bactérias e os vírus mas, diferentemente destes, os demónios dominam a tecnologia e usam a ciência para transformar a natureza em poder sobre a natureza, mormente a natureza humana, tão propensa a ouvir os demónios e a ser surda aos deuses, ao ponto de ser tradicional haver necessidade de fazer ouvir os deuses e nunca ter havido sequer a veleidade de querer ouvir os demónios, que esses, de resto, são a outra face da natureza humana, que é preciso abafar e calar.
Os deuses não precisam de tecnologia, nem de ciência, mas os demónios não passam sem elas, aliás, nada seriam sem elas.
Os deuses não poluem, não agridem o ambiente, não constroem, nem desvastam florestas, não queimam combustíveis, nem erguem barragens, não têm fábricas, nem rasgam campos de futebol, não esventram montanhas, nem abrem autoestradas, e não cultivam, nem criam gado. Os deuses não precisam de comer, não respiram e não morrem.
O mundo está mesmo infestado de demónios e estes acabarão por ter aquilo que querem. Pode não ser o que os deuses querem para si, mas será, certamente, o que os deuses querem para os demónios. E, na verdade, os demónios não merecem nada, nem a simpatia dos deuses, nem a sua preocupação. Têm o que merecem. Demónio é demónio. Os deuses passam tão perfeitamente sem eles, como passam sem as espécies vivas da natureza.
Mas é a “espécie” dos demónios que extermina as outras espécies vivas da natureza.
Os demónios não se contentam com o método científico, porque eles pensam que a realidade é o que é, como já era, antes do método científico. O que eles querem, e nisso são imbatíveis, é o poder de transformar as coisas noutras coisas, até onde puderem. Por isso é que são demónios. Quando deixarem de ter esse poder, estarão mortos, deixarão de ser demónios.
Essa “espécie” de feiticeiros sabe que o feitiço tem uma probabilidade enorme de se virar contra o feiticeiro. É como dizer que “a certeza absoluta nos escapará sempre”, ou seja, não sabemos que nos escapará sempre, se não há certeza absoluta.
Ou, ainda, proclamar “Não acredites na palavra”. Se os demónios acreditarem nesta forma de imperativo, não o tomam a sério; se o tomarem a sério, não acreditam nele e isso equivale a que acreditam na palavra. Não necessariamente em todas as palavras, como essas “Não acredites na palavra”, mas provavelmente naquelas que lhes interessam, pelas mais variadas razões.
Se eles não acreditarem nas palavras, inclusive nas do Carl Sagan, vão acreditar em quê? No que veem? E se forem cegos(como parece que são)?
Tudo serve aos demónios para atingir os seus objectivos, para realizar os seus interesses, os quais, normalmente, coincidem com os dos humanos, em geral. As palavras são dos instrumentos mais poderosos, como acabamos de ver. Em ditadura e em democracia, os demónios nem precisam de ser letrados, basta que usem as palavras com o sentido que mais lhes interessa e lhes convém. As palavras são mais submissas do que os cães, mas não tão fiéis, nem aliadas.
Talvez por isso os deuses sempre, e em tudo, se abstiveram de falar, para não serem traídos.
 Carlos Ricardo Soares

domingo, 3 de setembro de 2023

Aproximações à verdade XXI


Hilário: de que é que te estás a lamentar?
Amiga: de quase tudo o que acontece aos outros
Hilário: enquanto o nosso sofrimento for apenas por ver desgraças que acontecem aos outros...
Amiga: há muito sofrimento que é de revolta e de pena, de tristeza por ver os humanos a fazerem tanto mal, a ocuparem-se tão denodadamente com maldades que fazem uns aos outros
Hilário: esse sentimento impede-te de seres feliz?
Amiga: sim, mas não me impede de lamentar por ter passado ao lado da sorte e não a ter agarrado, ter estado em contacto com a sabedoria e não a ter reconhecido, ter percorrido o mundo e não ter visto senão uma parte pouco significativa, ter passado a maior parte da vida a distrair-me das coisas, a ignorar em vez de indagar e observar e explorar, a esquecer, em vez de lembrar e ter presente
Hilário: não se pode ter tudo, para termos ou fazermos umas coisas não podemos ter ou fazer outras
Amiga: concordo. Ainda agora, aquele barulho dos foguetes, impediu-me de pensar.
Hilário: as pessoas que trabalham em ambientes ruidosos dificilmente conseguem pensar
Amiga: e quem vive em ambientes agressivos e conflituosos, além de não conseguir pensar, desenvolve atitudes impacientes, agressivas e intolerantes
Hilário: o pensamento é um processo não linear e descontínuo
Amiga: e quanto mais sujeito a perturbações e interrupções, pior
Hilário: frequentemente, as conversas, em vez de proporcionarem pensamentos consequentes e aprofundados, impedem que isso aconteça, desviando constantemente o sentido do pensamento, com sucessivas e inopinadas mudanças de assunto.
Amiga: É lamentável que assim seja.
Carlos Ricardo Soares

sábado, 2 de setembro de 2023

Verdade a quanto obrigas

Há palavras

nada mais

neste papel

o resto será

o que for lido

legível

ou não

inteligível

ou só imaginação

nas palavras

há quem destile fel

que são palavrões

no papel

de vilões

que fazem explodir

corações

ou simplesmente

não fazem nada

sem segundas intenções

abelhas pequenas

anjos de papel

palavras apenas

verdade a quanto obrigas

poemas

mel.

Carlos Ricardo Soares 

 

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

APROXIMAÇÕES À VERDADE XX

Hilário: para entenderes a importância da filosofia, procura compreender que os outros podem fazer por ti imensas coisas da maior importância como, por exemplo, alimentos, vestuário, mobiliário, computadores, telemóveis, filmes, livros, arte, ciência...
Amiga: mas ninguém pode filosofar por ti
Hilário: como ninguém pode viver por ti
Amiga: nem santo, nem pecador
Hilário: nem cientista, filósofo ou artista
Amiga: ninguém pode sentir e pensar em tua vez.
Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Aproximações à verdade XIX

Hilário: se tu consentires que te beije, não te podes queixar de que te beijei

Amiga: a questão do consentimento é dos problemas mais complexos que são tratados do modo mais simplista

Hilário: se alguém consente, dá o seu acordo, aceita a proposta, confirma o negócio

Amiga: tu nunca me desiludiste, é isso tudo que complica tudo

Hilário: para melhor percebermos, tomemos o exemplo concreto do patrão que obtém o consentimento da empregada para a beijar

Amiga: o consentimento aí é irrelevante, está viciado, não é livre, ou, pelo menos, a presunção de que não é livre deve ser ilidida pelo patrão, em caso de contencioso

Hilário: mas afinal como entendes o consentimento?

Amiga: depende muito daquilo que estiver em causa

Hilário: já entendi que o consentimento deve ser dado livremente e esclarecidamente

Amiga: não se pode presumir que haja consentimento por parte de quem está numa relação de sujeição, ou de subordinação, ainda que seja subordinação jurídica

Hilário: isso parece-me muito evidente

Amiga: mas há muitas pessoas para quem não é evidente que a declaração negocial para ser vinculativa deve ser livre e esclarecida

Hilário: e isso raramente, ou nunca acontece?

Amiga: os tribunais estão cada vez mais sensibilizados para estes problemas de capacidade e de liberdade contratual, mas é uma área do direito em que ainda vai haver muitos progressos.

Hilário: voltando à questão inicial: se me consentires que te beije...

Amiga: considerando a amizade que existe entre nós, sinceramente, penso que o meu consentimento estaria viciado e não seria válido.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Visitas ao interior

As construções dominam o horizonte

e as emoções dominam o pensamento

as pontes e os castelos e as fortalezas

são outras formas de igrejas

que só podemos visitar a partir

de dentro de nós

templos a uma espécie de silêncio

de formigas sem voz

de tão absoluto efeito

que nada impede

a sua extinção

de nunca ter existido

nenhum palácio dentro do qual

as casas os muros e os caminhos

fossem orientações solares

como as plantas os dias

as águas e os luares

faróis.

Carlos Ricardo Soares

sábado, 12 de agosto de 2023

Matérias não despiciendas

Agradeço os comentários amistosos e não vou entrar em considerações sobre o que devem ser os comentários, as críticas, as análises de qualquer pendor, artístico, ideológico, ou outro.
Não é que sejam matérias despiciendas, bem pelo contrário, mas, nestes contextos não regulados e não censurados, que já frequento há uns anos com muita curiosidade, sem devoção e sem alaridos, prefiro não (perder tempo a) doutrinar ninguém, nem a contradizer os fanáticos das religiões, nem a discutir com pessoas que falam ex cathedra, e só respondo a anónimos, se e quando isso me interessa, ainda que seja por um motivo perverso.
Aliás, nem quero saber se o que escrevem corresponde ou não ao que pensam.
Reservo para mim o direito de decidir o que fazer, quer no momento em que escrevo, quer no momento em que deixo de escrever.
O meu problema, que é, de resto, o único verdadeiro problema de qualquer ser humano, mais ou menos consciente disso, não é, ou não está, na minha reserva absoluta de escolher o que fazer, com o qual vou convivendo e trabalhando e lutando como dita a natureza, dentro das possibilidades e das responsabilidades, mas é o problema das escolhas dos outros.
Quanto àquilo que posso escolher, mais ou menos bem, escolho e exerço o meu poder e direito, tenho muita margem para me queixar justamente e posso lutar contra os obstáculos, sem causar dano, nem ofender ninguém. Essa é uma luta que devemos encorajar todo o ser vivo a travar, e não apenas os humanos.
Quanto àquilo que não é escolha minha, mas são escolhas dos outros, aí está o verdadeiro e inultrapassável, (que pode ser angustiante e absoluto) problema.
Nem mesmo a mais rígida autodisciplina de desprezo e de ignorância, para não dizer de ódio, das escolhas dos outros, me coloca a salvo dessa sujeição que, para algumas pessoas, em determinadas condições, pode ser insuportável.
O problema não são as escolhas individuais, pessoais, não são as minhas escolhas, ao contrário do que diria, por ex., Sartre, embora Sartre jogasse por vezes nos dois campos, o individual e o social, estou a lembrar-me de “o inferno são os outros”.
O problema, dizia eu, são as escolhas dos outros, sobretudo quando essas escolhas me envolvem, ou não, como eu gostaria. Ou seja, as escolhas dos outros determinam as condições em que posso fazer as minhas.
Eu sei que tudo se decide entre o “posso fazer alguma coisa contra isso” e o “não posso fazer nada contra isso” mas, ainda assim, na dúvida ou na certeza, o que persiste é a impotência e essa nós nunca vamos admitir.
Quanto aos comentários serenos, bem educados, inteligentes e oportunos, sem preconceitos de qualquer ideologia, confesso que, em última análise, não existem, nem são desejáveis.
A vida ensinou-me que, quanto mais educado sou, mais perigoso fico.
A serenidade e a boa educação e a oportunidade e a inteligência são preços elevadíssimos que é legítimo cobrar, tanto mais quanto mais tenham sido, ou sejam, para nós difíceis de pagar.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Direito, direitos, guerra

Vejo um problema no direito, ou melhor, nos direitos: quando falamos de direitos e de deveres, a igualdade de direitos é defensável e, praticamente, incontestável. O indivíduo humano deve ser colocado no topo da hierarquia dos valores. Nem Deus, nem os deuses, mas simplesmente o indivíduo humano. Afinal, nenhum deus pode ser ofendido, ou ameaçado e não precisa sequer de quem fale em seu nome, ou o defenda, seja em que circunstância for. 
O que deve ser colocado no topo da hierarquia dos valores não é um indivíduo humano, em particular, por muito especial e valoroso e virtuoso e admirável, que seja, mas todo e qualquer indivíduo humano, em geral e abstrato.
O reverso da medalha é que as ofensas a este indivíduo, a qualquer indivíduo humano, são as maiores ofensas que algum indivíduo humano ou grupo de indivíduos, seja qual for a forma de organização e de poder, pode cometer. Assim sendo, e em conformidade, quanto maior a ofensa, ou o crime, maior a pena. O respeito que é devido ao indivíduo humano transforma-se num critério de sanção que é o reverso daquele respeito.
A ideia é, mais ou menos, esta: quanto maior o respeito devido ao indivíduo humano, maior será a responsabilidade, a punição ou o castigo do indivíduo humano que faltar a esse dever de respeito. O princípio normativo é “não fazer mal, ou seja, não causar dano, tomando aqui os verbos como ações do indivíduo, ou seja, manifestação de intenção”.
O conflito que vejo aqui leva-me a considerar que, se assim for, o que está no topo dos valores não é o indivíduo humano, mas o dever de respeitar, não todo e qualquer indivíduo humano, mas apenas aqueles que lhe não faltam ao respeito. E, faltar ao respeito ao indivíduo humano, tem como consequência deixar de merecer o respeito que lhe era devido. Este problema é de grande acuidade na abordagem e reflexão que sói fazer-se quando defendo que mal é o que causa dano e que quem causa dano faz mal e que ninguém tem o direito de causar dano, de ser cruel, de causar sofrimento, de humilhar, enfim, que, quem não sentir vergonha só de imaginar e admitir fazê-lo, merece censura.
Surge, porém, uma perplexidade: a razão que faz com que ninguém tenha o direito de causar dano a outrém, nem, eventualmente, a si mesmo, e que é ser o indivíduo humano a única sede, conhecida e insubstituível, de sentido, de significado e de valor, sem a qual ninguém, nem nada, significa, porque só o humano dá significado e valor, e nada senão o humano dá significado e valor ao humano, é a mesma razão que faz com que o indivíduo possa ser sujeito a dano, violência, crueldade, sofrimento, humilhação? Ou seja, o dano, violência, crueldade, sofrimento, humilhação, podem ser justificados? Em que medida? Até que ponto, em nome dos direitos do indivíduo humano se poderá justificar uma “violação” desses direitos?
O facto de o indivíduo humano estar no topo da hierarquia dos valores não lhe confere apenas direitos invioláveis, mas também, e correspetivamente, impõe deveres que ele não poderá ignorar e desrespeitar. Os direitos do indivíduo humano não são absolutos, como os de um deus sem deveres, a quem nada pode ser imputado senão o bem, são direitos de dupla face, em que cada direito é um dever, não porque o dever seja uma espécie de contrapartida do direito, ou este daquele, mas porque o direito que assiste a um indivíduo só faz sentido se assitir a todo e qualquer indivíduo.
O dever que tu tens de respeitar o meu direito não é mais, nem menos, do que o dever que eu tenho de respeitar o teu.
O direito que tu tens a que te respeitem não é mais, nem menos, do que o direito que eu tenho a que me respeitem. Se este equilíbrio é quebrado, o valor do humano ofendido aumenta na balança e o do humano ofensor diminui, impondo-se o dever de compensação, de justiça, de ressarcimento, de indemnização, de restauração natural, quando possível. O limite desta sujeição pode ir até onde for necessário compensar pelo dano, pela violação desse direito de outrem.
O valor do indivíduo, por estar no topo da hierarquia dos valores, não quer dizer que seja absoluto, ou sagrado, porque é-lhe respeitado e reconhecido na medida em que ele respeitar e reconhecer o valor dos outros indivíduos. E, em medida idêntica, justa, lhe será retirado.
Outro problema é o de saber até onde, e em que medida, um indivíduo pode alienar, ou prescindir desse seu direito, ou de exercer o seu direito de ressarcimento e de vingança relativamente a quem o ofendeu e lhe causou dano. A disponibilidade desses direitos é outro assunto com muito interesse teórico e prático.
Mas não basta dizer e perceber e concordar que é assim, que não podes desrespeitar-me sob pena de eu te exigir responsabilidades, sendo que este exigir e impor não é um desrespeito por ti.
Não é a questão de, por exemplo, partiste-me um vidro eu vou escolher se te parto outro, se te obrigo a pagar pelo que fizeste, ou se te parto outra coisa qualquer.
De facto, não sou eu quem define, primeiro, o que é o meu direito e o desrespeito pelo mesmo, segundo, que responsabilidades são as tuas, terceiro, como posso obrigar-te a responder e, quarto, com que é que poderei exigir que respondas.
Esta questão de saber com que legitimidade alguém pode coartar e restringir e retirar direitos ao indivíduo, também é uma questão interessante, ainda mais se essa limitação dos direitos do indivíduo for feita em nome de algo que não o indivíduo humano, sendo este o valor que está no topo da hierarquia dos valores.
Vamos, numa perspetiva oposta, considerar a hipótese de que um indivíduo humano, por exemplo, tu, ou eu, não reconhece esse valor do indivíduo, incluindo ele próprio. Tu não pensas que tens direitos, eu também não, nem sequer pensamos em deveres de respeito. O indivíduo humano, para nós, não está no topo da hierarquia dos valores, pelo contrário, não vale nada. Nesta hipótese, a questão da ofensa e do respeito não seria preocupação nossa, do mesmo modo que não repugna nada a muita gente, por exemplo, matar uma formiga, ou uma melga.
Transpondo esta hipótese para a realidade histórica das guerras, o que torna insuportável e injustificável desencadear uma guerra é que ela esmaga pessoas como se fossem formigas ou melgas e destrói brutalmente, com imenso e irremediável sofrimento, crueldade, humilhação, negando-lhes todo e qualquer direito, pessoas que, por sua vez, por causa disso, deixam de estar vinculadas a qualquer dever para com o inimigo.
Em última análise, é a relação não danosa, a boa relação, com o outro, que define o direito. Se a relação com o outro for danosa, é sempre o outro que ela destrói e o direito, não o direito do outro, mas o direito do agressor. O agredido continua a ter os direitos que tinha antes da agressão e passa a ter, por via dessa agressão, direitos que não tinha antes, ao mesmo tempo que deixa de ter deveres que antes tinha.
Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Jogo limpo

Individualismo, indiferença, desconfiança, aversão, afastamento, hostilidade, ódio...tudo tem a ver com o grau de ameaça, real ou imaginária, daquilo, ou daqueles, que tomamos e registamos como inimigos, ou simplesmente concorrentes desleais. Não há como evitar essas condutas e essas predisposições defensivas, ou como promover o conforto da pacificação e da paz e da cooperação, se o jogo continuar viciado e a batota não for erradicada. 
Se as pessoas e as comunidades e as instituições não criarem vínculos, ou se desvincularem umas das outras, ficam mais livres e descomprometidas, talvez mais independentes e autónomas, mas mais entregues a si próprias e menos apoiadas, ou amparadas.
Falar em verdade fará sentido enquanto for verdade que estamos muito longe de assistir e de participar num jogo limpo. É trivial que as pessoas sejam convidadas e aliciadas, ou induzidas, a participar num jogo que, à partida, elas próprias já sabem que não é limpo. 
Não ser limpo já faz parte do jogo mas, e aqui é que entra a parte essencial do problema, nunca, em circunstância alguma, poderá ser a regra do jogo, ou fazer parte das suas regras. E isto é muito mais (e muito menos) do que aquilo que um ideal pode ser. 
Diria, no calor da expressão, correndo o risco de estar a dizer um disparate, que, se o ideal é que se faça jogo limpo, então a regra deve ser fazer jogo limpo. Embora, na prática, o que interessa seja o jogo e não a regra.
E até ninguém já coloca a exigência “sublime” de as regras do jogo serem justas, porque isso talvez fosse pedir demasiado. Bastava, para começar, que a verdade “desportiva” triunfasse. 
A falsidade e a mentira constroem-se e fazem caminho sobre a ignorância e o erro, mas sobretudo pelo medo. 
A verdade, se for esta, não é tranquilizante e não espanta que leve a comportamentos defensivos, a individualismos mais ou menos gregários e tribais, desconfianças, recusa de solidariedade, porque a verdade é aquilo de que, em cada momento, e em cada situação, estamos convencidos que acontece, ainda que estejamos enganados.
Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Dos maus os menos

Este texto foi a minha resposta a um comentário que pretendia fazer humor com a filosofia ubuntu, a redenção da humanidade e as bombas matarem apenas os maus.

A filosofia ubuntu, de que conheço apenas “eu sou porque tu és”, soa-me bem e parece-me empática e muito verdadeira, com uma carga positiva de sentido de gratidão e de reconhecimento dos valores da solidariedade. Já me soa mal e tem uma carga de hostilidade e de arrogância injustificável, uma certa ideologia, com tiques de mandamento novo, “tu és porque eu sou”, que grassa sem pudor nem vergonha, como erva daninha, que dá imenso trabalho a limpar.
No primeiro caso temos o sentido da solidariedade e do reconhecimento do tu em nós próprios. No segundo, uma incapacidade cultural, uma mentalidade preconceituosa erigida sobre pretensiosismos de superioridade.
Temos que nos precaver contra a tentação de decidirmos que os bons são os amigos e os maus são os inimigos, ainda que uma larga maioria não seja uma coisa nem outra. Por esse critério, no dia em que as bombas inteligentes souberem matar apenas os maus, talvez não sobreviva ninguém.
A religião cristã baseou-se na doutrina de que só a morte pode libertar e na crença de que, quem desfaz as cadeias, é o redentor. Sejam as que prendem pés, as que agrilhoam a cabeça, sejam outras, por exemplo, obsessões perigosas, paixões que escravizam, situações de miséria, determinados códigos de honra.
Também já ouvi expressões saídas do léxico da bruxaria, como “estar amarrado”, “ser vítima de mau olhado”, “excomungado”, “possesso”, “enjeitado”, “touro sem marca que não se sabe a que manada pertence”, “ovelha tresmalhada é presa fácil do lobo”, entre imensas outras que, em variadas situações, ajudam a interpretar e a verbalizar problemas individuais e sociais, de integração, de pertença, dignidade e respeito e de igualdade, ou a sua falta.
Interrogo-me sobre se, na prática social das comunidades em que eram usadas, as referidas alegorias, não tinham como finalidade estigmatizar e diminuir e fulminar, com o fito de se aproveitarem da situação de fragilidade e de medo em que elas próprias colocavam a vítima.
Quanto à redenção, ela tem a ver com uma libertação humanamente impossível, não com a libertação da escravatura, que ocorria por vezes e era intensamente desejada, num mundo em que o mercado de escravos também podia ser uma oportunidade para o escravo, se fosse vendido e a troca de amo, de senhor, fosse vantajosa. Neste mundo, a libertação reduzia-se praticamente a ser comprado por um amo a outro.
Para os cristãos, estava claro e assumido que não havia esperança de liberdade, nem de paz, nem de justiça, em vida. Não podiam ser mais realistas e mais pessimistas. Sem este realismo e este pessimismo seria mais difícil fazer o cimento da crença na redenção divina.
Eu não sou tão pessimista e o meu realismo, que me dá esperança, é que o homem, que foi capaz de criar Deus, também há-de ser capaz de fazer justiça divina.
Carlos Ricardo Soares
 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

A esperança de acabar com as guerras

Nem todos os exércitos, nem todas as armas têm sido suficientes para impedir e evitar guerras, todos os tipos de guerras e guerrilhas, locais, regionais, coloniais, civis, religiosas, comerciais, químicas, industriais, nucleares, tecnológicas...
Se houvesse uma sociologia das guerras que estudasse as guerras desde os primevos, aprenderíamos muito sobre a função reguladora da violência e, mais conscientes dessa realidade biológica, social, cultural, histórica, mas mais ainda sobre a cultura da guerra, que tem sido, em minha modesta opinião, o círculo vicioso, para não dizer espiral que se escala a si própria, numa lógica de exercício de poder e de defesa desse poder, sempre que encontra obstáculos, ameaças ou ataques, em melhores condições estaríamos para evitá-las, ou impedi-las, ou minimizar os seus efeitos.
Nessa sociologia talvez se descortinassem, em todas as guerras, padrões que ajudariam a compreender o fenómeno da guerra, como violência humana, uso da força para atingir fins e objectivos ilegítimos, ilegais, injustos e desumanos, independentemente dos pretextos invocados para desencadeá-las. Talvez se tornasse mais claro que uma guerra não é como o amor que, quando começa, nunca ameaça ter consequências e que, apesar disso, quem inicia uma guerra tem um plano optimista, não em relação à guerra, nem em relação à resolução de um diferendo, mas em relação a alguns objectivos, mais ou menos confessados, entre os quais um objectivo territorial, de supremacia, ou punitivo, perpetrado por uma força, ou uma potência que se coloca, ou que está, ou pensa que está, em posição de superioridade bélica, em condições de tirar vantagem, ou de, pelo menos, não sair esmagada do desastre da derrota.
As sociedades humanas politicamente organizadas em estruturas militares, nas quais assentam o seu poder de facto, ainda não encontraram outra forma de se estruturarem e não estão preparadas para aceitarem outro tipo de solução dos problemas conflituosos que não seja pela força, pela coerção e pela coacção, mesmo nas litigâncias judiciais internas, das mais simples às mais complexas, em que se não prescinde de contingentes policiais para assegurar a ordem e a segurança e realizar, executar as sentenças.
As pedagogias da paz e da ordem, muitas vezes são contraditórias e andam, também elas, associadas a ameaças, mais ou menos implícitas, mais ou menos tácitas, porque quem dita os termos dessas pedagogias não abre mão do seu sistema de valores, ou de vantagens, sujeitando os outros às condições e termos em que podem manifestar-se e pronunciar-se. Isto faz com que se formem correntes de opinião e se criem espaços próprios de expressão de ideias que, por não comunicarem uns com os outros, em vez de contribuírem para a conciliação dos contrários e a pacificação dos antagonismos, os acirra ainda mais e reforça os ânimos hostis.
Assim sendo, numa primeira fase, a nossa esperança reside no poder de estabelecer uma regulamentação do uso da força, nomeadamente militar, nas relações entre Estados e na judicialização adequada da guerra através de instrumentos de direito internacional, da institucionalização de estruturas internacionais preventivas e, tanto quanto possível, num efectivo controlo, por uma estrutura política internacional credível, de certo tipo de armamento cuja finalidade seja ameaçar e eventualmente destruir massivamente. 
Ou seja, uma espécie de ONU legitimada e empoderada de uma espécie de monopólio sobre uso da força entre Estados, aplicação das leis da guerra, responsabilização e desarmamento, disposição e uso de certo tipo de forças, para certo tipo de conflitos armados.
Esta solução que, com algumas diferenças de escala, é considerada satisfatória para as situações estaduais internas, talvez pudesse ser adoptada pelos Estados, na ONU, pelo menos pelos que o quisessem e a subscrevessem, sem prejuízo de estes fazerem valer a sua posição perante aqueles que não aderissem.
Embora esta solução não estivesse ainda completamente a salvo de guerras, já apresentaria consideráveis avanços relativamente à situação atual.
As forças da Guerra e as forças da Paz estão numa relação de poder, de forças, de legitimidade, de Direito e de justiça que, cedo ou tarde, é decidida para o lado da Paz. Acredito que assim seja e tenho esperança de que as guerras acabem.
Carlos Ricardo Soares

  

sábado, 15 de julho de 2023

Valores e compensações

A parte não menos desmoralizante de observar o que acontece no dia a dia, seja lendo, vendo e ouvindo noticiários, debates, comentadores, palestrantes, políticos, consumidores, é pensar no que não devia acontecer e no que não acontece e devia acontecer. 
Ter a percepção de que, em todas as áreas, a actividade discursiva paira sobre a actividade concreta, material, executiva, transformadora e que só há mudança de algo quando intervem uma força, é algo que afecta a crença nos ordenamentos normativos e diminui a credibilidade nas instituições. 
A percepção de que tudo parece resolver-se ao nível do discurso e da argumentação, no plano dos princípios e das boas regras, mas de que tudo continua a passar ao lado das boas intenções e das belas frases, a começar pelos princípios democráticos e a acabar no quem decide o que é o quê, é uma experiência que acompanha cada vez mais o consumidor de comunicação social.
A começar pelo tão apregoado pensamento crítico, que devia ser sempre, em primeiro lugar, exercido sobre o próprio, a grande dificuldade em promovê-lo e em praticá-lo está na complicação que é pensar criteriosamente, mas não menos no pouco interesse que parece existir em exercê-lo sobre si próprio.
Na política, na justiça, na ordem, no ensino, na saúde, enfim, em todas as áreas, as coisas só acontecem no terreno, quando passam da palavra, ou do papel, para a acção transformadora. A lei, quando é aplicada, a sentença, quando é cumprida ou executada, a ordem quando é cumprida, etc..
Podemos passar uma vida a descrever e explicar o modo como as coisas funcionam, mas quando chega o momento de explicar como deviam funcionar, ou não é possível alterar a ordem das coisas, por ser da sua natureza, e não faz sentido sequer pensar em mudar, ou, se é possível, é preciso quem as saiba fazer, quem queira fazê-las e quem as faça.
Uma das constatações mais intrigantes e curiosas é sobre o que se passa com a filosofia, em que se pode ter opiniões diferentes sobre a realidade, argumentar em vários sentidos, criar sistemas racionais, e nada disso alterar o facto de a realidade poder ser diferente disso e de não ser por isso que deixa de ser o que é. 
As coisas serem como são e não como poderiam ou deveriam ter sido é algo de perturbador e frustrante, embora isso também tenha, em muitas situações, aspectos tranquilizadores que nos subtraem responsabilidades.
E, depois, há valores que só são reclamados dos outros, o que passa por ser um princípio dissonante e irracional, no sentido de ser contrário à razão, mas invocar esses valores pode facilitar a perspectiva que mais convém em cada situação. 
Estou a pensar na independência como uma qualidade pessoal, ou na honestidade como uma virtude da maior respeitabilidade, para as quais não há recompensa, ao contrário da subserviência e da obediência, que chegam a ser principescamente compensadas.
Carlos Ricardo Soares