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terça-feira, 24 de outubro de 2023

A tirania do mérito e a meritocracia

Não resisto a dizer umas coisas sobre a tirania do mérito e a meritocracia.
É da máxima importância que os poderes políticos, a quem cabe a governação e a implementação de mecanismos de incentivo ao desenvolvimento, porque é incontestável que este pode e deve ser promovido pelo Estado, assumam as questões do mérito num plano em que o mérito é das variáveis em que o poder político terá mais hipóteses de contribuir para a realização dos seus objetivos de boa governação, de promoção da ciência, tecnologia e cultura para o desenvolvimento do país.
O próprio conceito de mérito é rebelde às tentativas de o reduzirmos à ideia de merecimento pelo esforço, pela dedicação, ou pelo trabalho. Nesta perspetiva, o mérito de um perdedor numa competição pode ser maior do que o do vencedor.
Nas sociedades liberais, e nas outras não será muito diferente, o resultado, o produto, a mais-valia, a virtude, e o próprio talento individual, tendem a ser critério de mérito daqueles a quem sejam devidamente imputados. Normalmente é o mercado que trata disso. E como nem todo o resultado, ou produto, ou atividade, têm o mesmo valor, num determinado momento, ter mérito não significa a mesma coisa para duas situações diferentes.
O mérito do marcador do golo não tem o mesmo valor do mérito do colega que lhe passou a bola para ele marcar. No entanto, mesmo nestes casos do desporto, o mérito de quem passou a bola pode ser reconhecido por toda a gente como muito superior ao de quem marcou. Neste exemplo, e noutros, o mercado não reconhece o mérito pelo valor funcional, pessoal, social, estético, ou mesmo ético. O mercado é cego relativamente a isso.
O mercado só tem olhos para o valor de mercado, ou seja, que se exprime em unidades monetárias. E não será porque se apele à boa vontade dos agentes económicos que estes passarão a atribuir mais valor monetário a alguém pelo mérito (não monetário) de algo que faça.
Assim, temos um desencontro, muito inconveniente para a sociedade e para a promoção dos seus pilares de sustentação e de desenvolvimento, entre aquilo que, sendo de reconhecido mérito, humano, social, cultural, científico, estético, ético, o não é efetivamente no plano do reconhecimento económico.
Por outro lado, este desencontro vai-se exacerbando à medida que contribui para reforçar os investimentos e as atenções e as expectativas, não tanto naqueles méritos, que o são reconhecidamente como vitais, mas preferencialmente nos outros.
As implicações negativas, para a economia e para o desenvolvimento social, deste fomento induzido pelo mercado, podem e devem ser contrariadas pela ação e pela intervenção do Estado, nomeadamente, através de políticas de incentivo e apoio, através do reconhecimento pessoal e patrimonial do mérito.
De preferência, passe o sarcasmo, que não se limitasse a atribuir medalhas de mérito, ou de mérito póstumo e que não fossem para quem já teve o seu mérito reconhecido.

Carlos Ricardo Soares