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segunda-feira, 31 de maio de 2021

Livre-arbítrio

Hilário: responde-me sem evasivas

Amiga: não sou de evasivas

Hilário: perguntei-te alguma coisa?

Amiga: agora perguntaste se me tinhas perguntado

Hilário: o livre-arbítrio não existe?

Amiga: se as nossas acções e decisões são efeito de partículas que atravessam o corpo e o cérebro de acordo com as leis da física, que achas?

Hilário: aparentemente são essas partículas que agem e decidem e não nós

Amiga: eu e tu e o universo somos partículas em movimento

Hilário: e as nossas palavras também

Amiga: e os pensamentos e a memória

Hilário: até a anti-matéria e o conhecimento da matéria

Amiga: se calhar o livre-arbítrio só existe para algumas coisas

Hilário: não somos livres de dar verdade a uma falsidade

Amiga: nem és livre de fazer com que esta conversa nunca tenha existido

Hilário: mas foste livre de dizer essas palavras em vez de outras

Amiga: como poderíamos prová-lo?

Hilário: em qualquer caso, lá estariam as partículas a reivindicar que tinham sido elas

Amiga: ninguém nos pode culpar de nada

Hilário: ou seja, as partículas é que têm a culpa

Amiga: têm tudo, a culpa e a inocência

Hilário: só não têm livre-arbítrio

Amiga: e nós só temos partículas

quinta-feira, 27 de maio de 2021

O controlo das mentes é possível?

O que me preocupa, sobretudo, é que haja possibilidade de controlar a mente das crianças e, em geral, das pessoas sujeitas a processos de educação e de aprendizagens. 
O que elas aprendem, ou não, é questão de somenos, quando penso na hipótese de ser possível controlar as mentes. 
Se isto for possível, temos um gravíssimo problema para resolver. Haveremos, então, de admitir que é um problema tão antigo como a humanidade e, talvez, o maior de todos. 
A liberdade, que é algo tão difícil de conseguir para a maioria, está cada vez mais ameaçada pelos processos de delegação da decisão da melhor escolha. 
A IA é a melhor ilusão que nos podiam vender de que estamos mais bem representados do que nós próprios. 
Mas ainda não aprendemos sequer a primeira lição: uma pessoa é insubstituível para si própria, mas não, necessariamente, para os outros. Isto faz dela o critério irredutível de tudo, o qual, se não for explicitamente, ou positivamente legislado, dá azo às maiores atrocidades e aos ódios mais insanáveis, como temos verificado na história humana. 
Nenhum robot tem este problema de só ter de aceitar como dever o que, igualmente, e por idêntica razão, for dever para os outros.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Cultura do amesquinhamento alheio

A minha percepção de português, nado e criado, e educado em Portugal, e exercendo nos tribunais e nas melhores escolas do país, é que a cultura portuguesa, seja o lado ou a perspectiva pela qual queiramos vê-la, é a cultura do amesquinhamento alheio. E quando assume tons de compadecimento e de solidariedade é porque já se foi vítima e se percebe o problema. 

Mas tem sido prática assumida e aceite, desde que me lembro (hoje está muito melhor), e até valorizada, a cultura de chacota e atrofiamento, sempre para penalizar e desvalorizar, até nas agressões escolares institucionalizadas como castigos pelos erros, bem patente na literatura portuguesa, no linguajar português, nos apelidos e alcunhas dos portugueses, etc.. E, se formos aos conselhos de turma, embora nas actas se evite quase sempre cair nesse erro, a adjectivação usada para qualificar e classificar alunos não está isenta de críticas, para ser brando. 

Um adjectivo, em determinados contextos, pode deixar de ser neutro e até passar a ser um problema de ética, quando não jurídico. Sinceramente, penso que só há um caminho a seguir para se sair desta choldraboldra: legislação e práticas educativas que eduquem para a não resignação a uma realidade "violenta" cujas raízes não é difícil de localizar na história. 

Ainda há quem acredite e agite a bandeira da meritocracia, ou seja, da aristocracia. 

Temos de ter em mente o iluminismo e o marxismo para percebermos quanto ainda precisamos de reconhecer face humana e direitos do homem num mundo que faz tudo, desde sempre, exceptuando os que têm lutado contra isso, para triturar o homem, e desvalorizá-lo, para o mercadejar ao melhor preço.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Língua prodigiosa

De vez em quando, e ultimamente cada vez mais, entre afazeres e actividades, dou comigo a tomar sentido, pela primeira vez, em que a minha língua me fala mais a mim, desde criança, do que eu a ela, e só muito tarde comecei a reparar quão carregada de cultura, de significados e de sentidos, a minha fala e escrita e leitura andavam e como me sabe bem dizê-lo agora.
Passei a perceber que a língua, só por si, nos dá a filosofia e a ciência, até das perguntas e das respostas nunca antes feitas. 

Comecei a ver, numa acepção muito especial de sentir, que, além dos sentidos do sistema sensorial, visão, audição, sensações corporais, paladar, olfacto, temos outros sentidos mais internos, que trabalham no silêncio e no escuro, com que sentimos dores, alegrias, entusiasmos e tristezas, paixão, saudade, amor e ódio, etc., e passamos a vida a dar sentido, aos sentimentos, ao que sentimos e ao que pensamos, porque pensamos o que sentimos, mas também sentimos, muitas vezes o que pensamos.
E quando me ponho a pensar e a falar das minhas descobertas, e sentir em todos os sentidos é uma delas, é com a sensação, senão com a certeza, de que quando se fala ou escreve sobre algo, já estava tudo na língua.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

Aproximações à verdade

Hilário: talvez não haja muitas coisas que eu e tu não compreendamos

Amiga: se for assim, poucas coisas haverá que não tenham explicação

Hilário: tudo tem uma razão de ser

Amiga: ou melhor, para tudo temos uma razão de ser

Hilário: excepto o que falta explicar

Amiga: os crimes, as guerras, o holocausto, os deuses, as religiões, a corrupção, as desigualdades…

Hilário: têm uma explicação, são racionais

Amiga: os actos humanos são racionais

Hilário: o amor, a teoria da relatividade, a música, a alegria, a crítica da razão…

Amiga: racional é tudo o que os humanos fazem voluntariamente

Hilário: o nosso problema é que muito do que fazem é inaceitável e incorrecto

Amiga: concordo, olhando para a história e para o que acontece à nossa volta.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

De desilusão em desilusão

Hilário: sinto-me desiludido

Amiga: dizes isso como se tivesses ganho o euromilhões

Hilário: de cada vez que me desiludo, sinto alegria

Amiga: de cada vez que me desiludo, sinto que fui burra e fico triste

Hilário: quando descobres que estavas errada só tens motivos para ficar contente

Amiga: deve ser por isso que estás sempre feliz

Hilário: e achas que estou errado?

Amiga: para te sentires feliz é porque descobriste que andavas iludido

Hilário: e já não ando?

Amiga: quando descobrires que a ilusão é como o trabalho, que não acaba, ainda vais ficar mais desiludido e mais contente

Hilário: o meu objectivo é viver de desilusão em desilusão, até alcançar a verdade

Amiga: mas acreditas que conseguirás atingir a desilusão total?

Hilário: aí sim, terei alcançado a verdade

Amiga: queres maior ilusão do que essa? Gostas mesmo de viver iludido

sábado, 1 de maio de 2021

Liberdade

Gosto de pensar que a liberdade não é constituída por átomos, que não a encontro em lado nenhum, não posso recolhê-la como uma lágrima num tubo de ensaio, nem olhá-la de lado nenhum, mas que é de tal modo uma realidade da experiência, que não se faz a frio, nem ao lume, ou uma experiência da realidade, que não precisa de demonstração e que não pode ser refutada por nenhuma experiência.

A felicidade, a ciência, a filosofia, a verdade, a saudade e a alegria da dança e da música também não são constituídas por átomos, são da experiência e não carecem de experimentação para serem provadas. No entanto, e embora tenham no big-bang a sua origem, como os átomos e as estrelas, e talvez por não as encontrarmos no espaço e no tempo, é mais difícil defini-las do que falar delas.

Gosto de pensar que a minha natureza é ser livre, mas como dizer natureza se a liberdade não se encontra no espaço, nem no tempo?

Ser livre é a minha natureza, o resto são obstáculos, constrangimentos e limitações. Ser livre coloca-me em guerra com tudo o que é obstáculo e constrangimento e limitação, exógenos e endógenos.

O controlo, que não é apenas social, porque o cérebro é uma máquina com um prodigioso sistema de controlo natural, que não está sob o controlo do seu proprietário, mitiga o que seria uma guerra, em guerra fria.

Então, ser livre é essa condição subjectiva de poder aproveitar as condições objectivas para viver, não apenas de acordo com os instintos, mas de acordo com a vontade.

Claro que a condição subjectiva do meu gato que entra e sai de casa pela gateira e que trepa à árvore alta a grande velocidade é bem diferente da minha. Como são bem diferentes das minhas as condições, subjectivas e objectivas, do candidato a rei de Portugal, ou do Bill Gates. Para já não falar nos toxicodependentes que travam uma luta interna muito feroz entre duas forças ou duas vontades em que normalmente vence a que, paradoxalmente, não é um acto de liberdade.

Por outro lado, que liberdade é a de alguém poder escrever tudo o que lhe aprouver no seu caderno secreto, mas não o poder escrever ou dizer publicamente, ainda que o faça em voz alta para as paredes do seu quarto, desde que ninguém mais ouça? 

De resto, é fundamental que a liberdade do indivíduo seja tutelada pelos meios institucionais de poder, uma vez que é imperioso, do ponto de vista da razão e da justiça, que ela seja garantida. Quer como um direito de exercício, quer como um direito de gozo. Caso contrário, como tem acontecido ao longo da história, em que a liberdade era poder de facto, mas não reconhecido e tutelado como direito, é grande o risco de a “guerra fria” se transformar em guerra.