É impossível ficar indiferente à vida e obra de Pico Della Mirandola. Considerando a época em que viveu e a idade com que escreveu as suas Teses, aqueles
que reconhecem a originalidade e o caráter revolucionário das suas ideias, que foram inovadoras e influenciaram profundamente o humanismo renascentista, podem dar-se por felizes ao conseguirem essa experiência
filosófica.
Quanto à motivação, às condições e às razões para os pensadores, filósofos, cientistas e artistas se dedicarem a fazer
o que fazem e como o resultado da sua dedicação e do seu trabalho podem ser, e são mais ou menos, afetados e influenciados por esses fatores, são problemas da maior relevância. Sobretudo no
que respeita à filosofia que é uma disciplina, por excelência, egocêntrica, no sentido em que é essencialmente da ordem dos discursos autoreflexivos, não vinculada a quaisquer valores.
Isto não significa que cada filósofo, à sua maneira, não lhe encontre aquele valor que faz com que lhe valha a pena filosofar. Mas uma profissão de filósofo como o é, por exemplo,
de advogado, ou de psicólogo, ou de professor, ou de comentador, supõe determinados serviços a que a filosofia não é suscetível de se prestar.
No mundo dos factos e das constatações é possível distinguir o que é da natureza física objetiva e o que é da ordem da cultura, da
linguagem e dos discursos. É nesta que encontramos o conhecimento e os valores, como produto, criação e função humana, sendo que é esta função que lhes confere realidade
de conhecimento e de valores.
Diria que conhecimento e valores são realidades funcionais, só existem enquanto funcionam e na medida, muito variável e incomensurável, em que funcionam.
Se deixar de haver quem os pense, deixam de existir. Ao contrário das realidades físicas.
As constatações a que o filósofo se dedica são principalmente desse mundo da linguagem e dos discursos. Quer se trate de juízos de verdade ou de
ciência, quer se trate de juízos de valor, ninguém paga a um filósofo para fazer a defesa ou a apologia de um veredicto, ou de uma sentença, porque um filósofo não se vincularia
a tal, sob pena de não estar a ser filósofo e, por outro lado, se isso acontecesse, logo surgiriam filósofos a impugnar e a contrariar, propondo outros veredictos e outras sentenças, ou seja, ninguém
pagaria por um veredicto não vinculativo, ou que não tivesse a aptidão de vir a tornar-se vinculativo.
A questão sobre o conhecimento ser ou não ser valorativamente neutro é muito pertinente, sobretudo nos casos do filósofo e do cientista. Se, no caso do
filósofo, temos o problema do amor ao conhecimento, ao saber, à verdade, à sabedoria (como não dizer que é um problema se o amor é cego e se, em matéria de conhecimento, todas as visões são poucas?); no caso do cientista, mesmo que não esteja determinado pelo fim, ou ao
serviço de uma técnica, como geralmente está, sendo o interesse da descoberta o maior apanágio do trabalho científico, o amor pela verdade não é “conditio sine qua non”.
Carlos Ricardo Soares