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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

As estrelas e os satélites


Um dos pontos fracos (do ponto de vista da criatividade e da originalidade e do aproveitamento do efeito notoriedade e da canonização de figuras, símbolos, estilos, épocas e mitos, entre outros recursos religiosos e artísticos disponíveis, que são imensos...) de muitos autores do nosso tempo, incluindo Saramago e Eduardo Lourenço, e podia referir milhares deles que são escritores, porque até têm obra publicada, mas não são autores, dizia eu, um dos pontos fracos, que me desgosta e faz desmerecer-lhes muito da admiração que lhes é devotada, é o "gene oportunista" que os faz colarem-se ao astro, como se diz no ciclismo, para não dizer que vão a reboque, por exemplo, de conventos de Mafra e de Fernando Pessoa, como satélites que devem o brilho às estrelas que os iluminam.  

Se reflectem a luz dessas estrelas, não é porque lhes emprestem ou deem luz, que os satélites não têm e as estrelas não precisam, mas é porque buscam a luz e o brilho onde ele estiver e acabam fazendo seu o que é alheio.  

Mas há autores, poetas, e dou o exemplo de Pessoa, a quem repugnaria construir a sua obra com a obra de outros e, menos ainda, com os seus escombros, porque têm ou tinham uma motivação bem diferente.  

Diria que o "espírito jornalístico do mercado da atenção" se derramou sobre o nosso tempo como um pentecostes, desta vez, mais do tipo igreja universal. 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O poder das ficções

A parte mais resistente para quem se afoita a penetrar e a pensar e a reflectir e a falar sobre a sociedade e a cultura é quando se percebe que, afinal, não temos alternativas a viver, pensar e a expressarmo-nos senão enquanto ficções, até de nós próprios.

Mesmo quando estamos conscientes disso e entendemos as coisas dentro do seu universo de significações, não nos resta senão viver de acordo com isso.

Se um autor, por exemplo, quiser ficcionar um universo paralelo, não consegue.

É tão ou mais difícil do que falar de um mundo sem metafísica e alquimia cujas linguagens e conceitos são da metafísica e da alquimia.

É tão problemático como tentar explicar que "Deus morreu" a uma multidão que, logo, reclama pelo cadáver, que têm como certo não ser possível exumar, e não ser essa a tarefa.

Na relação sujeito-objecto, o objecto passou a integrar o próprio sujeito como parte do problema, senão a maior parte.

E existem muitos riscos de comprarmos, ou de adoptarmos ficções que, de todo, não nos convêm.

Nem só os charlatães, bruxos e bruxas, sequestram os seus clientes com o poder das ficções que, habilmente, tecem para eles, fazendo-os crer que a teia existe.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Estou a pensar nos direitos humanos

Estou a pensar em ti. 

Vejo macieiras e laranjas, e umas nuvens brancas. 

Há um gato a saltar da laranjeira mais alta para o chão. Confunde-se com as sombras. Das outras árvores, voam pássaros em diversas direcções. Reconheço alguns, como se já os tivesse visto algures, mas não me parece.

À minha frente, um prado esverdeado, depois, uma floresta. 

Estou sentado nos degraus de um monumento ao Ser. 

À minha esquerda, vejo um monumento à Razão. À minha direita, um monumento ao Ter. E há outros, que não vejo. Estes parecem-me todos iguais. 

E as dez casas que avisto, também, mas nem todas têm as janelas abertas. 

O gato veio alapar-se dez degraus abaixo daquele em que apoio os pés e não tira os olhos do que estou a fazer. A qualquer movimento meu, observo um movimento da cabeça dele. 

Enfim, a pensar em alguém que significa imenso para mim.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Filosofia e sentido

A filosofia chega a ter semelhanças com uma cobra que, faminta, toma a própria cauda por uma presa e se põe a engolir-se a si própria, anestesiando-se com o próprio veneno, senão quando já desenvolveu imunidade o que, nem assim, deixa de suscitar a questão: até que ponto se pode ser autofágico? Ou, a partir de que ponto a cobra se pode considerar engolida por si mesma?
Não se sobrevive nutrindo-se de si mesmo.
O cérebro é um órgão muito especial que, segundo alguns neurocientistas, não evoluiu para encontrar a sabedoria, mas para sobreviver. 
A maioria das pessoas, incluindo talvez a maioria dos poucos filósofos que a história produziu (é possível saber os nomes e o que escreveram, sem ter uma grande memória), não pensam, verdadeiramente, não pensam, no sentido em que aquilo que percepcionam, leem, parece não lhes passar pelo cérebro, pelo menos por aquela parte do cérebro, que é suposto termos, "responsável" pela inteligência, ou pelos processos de inteligibilidade. 
As "coisas" entram pelos ouvidos, pelos olhos, enfim, pelos sentidos e, muitas vezes, saem pela boca, ou pelas expressões gráficas, etc., sem terem indícios de haverem passado pelo tal cérebro. 
Isto, assim sendo, nem é bom, nem mau, não é bonito nem feio, não está certo nem errado, não é melhor nem pior, mais ou menos verdadeiro do que se fosse diferente. Se for, é o que é e não tem de ser, nem pode ser outra coisa, pelo menos enquanto for assim.

sábado, 28 de novembro de 2020

Futurologia

Podemos fazer futurologia em muitos domínios. Não que possamos garantir que algo vai acontecer. Nem sequer que vamos morrer. A este propósito, o cristianismo capitalizou uma brecha lógica na causalidade, como uma esperança ou uma maldição, ao proclamar que Cristo, de novo, há-de vir, para julgar os vivos e os mortos, e o seu reino não terá fim, deixando aos crentes a esperança de que, se se portarem bem, até poderão ter a sorte de não morrer, assistindo a essa vinda redentora, que ninguém sabe quando será.

Por outro lado, a ciência é uma constatação de que, se produzirmos uma determinada causa, podemos esperar um determinado efeito, mas não podemos dar esse efeito como certo, enquanto ele não se verificar.

Podemos questionar se tudo é causa e se tudo é efeito. Nem todas as causas produzem efeitos? Nem toda a causa produz os mesmos efeitos? Há efeitos sem causa? Que efeitos podemos atribuir a uma causa, no sentido em que nos é possível, com os nossos conhecimentos e tecnologias, verificar isso?

Quer-me parecer que nem com todos os conhecimentos de que hoje dispomos, nomeadamente dos efeitos e das causas, ou destas por aqueles, seríamos capazes de determinar minimamente, todas as causas desses efeitos e, menos ainda, muitas das causas dessas causas.

Ora, se é tão difícil e complexo, para não dizer impossível, conhecer as causas pelos efeitos, ou seja, "adivinhar" o passado, quanto mais difícil não será "adivinhar" o futuro, ou seja, a partir do conhecimento das causas (aparentemente elas estão no nosso campo de observação actual) prever os efeitos.

Aquilo que, na economia do pensamento abstracto, seria uma inferência, por indução, ou dedução, na economia dos factos e da acção concreta, revela-se um quebra-cabeças, justamente, porque pode ser, literalmente, um quebra-cabeças.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Ornatos e razões puras de uma ideia para enganar crédulos

A meritocracia, a aristocracia e a própria democracia são formas de entronizar nos imensos e superiores poderes do Estado, e de os colocar nas suas mãos, aqueles, indivíduos ou grupos, ou partidos, já posicionados no mais alto nível de privilégios, prerrogativas, vantagens.

Na realidade, são formas de plutocracia e de cleptocracia, com os evidentes perigos que isso representa para a sociedade em geral, sobretudo para aqueles que têm de se sujeitar às condições económicas, políticas, de acesso à justiça e à saúde e ao poder.

O poder do Estado, sendo o "activo" mais valioso que há, nem por isso está a salvo e não vemos mérito, ou confiança que o mereça, nem superioridade moral, intelectual, humana, de alguém, que justifique a colocação do poder nas suas mãos.

Sobretudo porque a guarda e gestão desse bem público não tem sido vista e entendida como tal pelos titulares dos órgãos de poder. O poder tem sido uma oportunidade, legitimada e insindicável, de fazer desse património incomensurável do Estado, a maior fonte de rendimentos, para quem o gere, sob todas as formas, incluindo a corrupção.

Se há uma forma menos perversa de tomada do poder é a que ocorre por efeito da democracia pluripartidária, se esta não estiver instrumentalizada por algum partido que abusa das fragilidades e das contradições do sistema, nomeadamente eleitoral e se o dogma da bondade da democracia não dispensar a vigilância das pessoas induzindo-as a confiar que o poder está em boas mãos. Esta confiança inerente e esta falta de alternativas à democracia garantem a qualquer formação política um monopólio da oferta política com os grandes defeitos e inconvenientes associados.

Os eleitos não apenas se arrogam uma legitimidade, muito para além do formal, como ainda agem em consciência de que não há alternativa, de que mais do que "democráticos", são "aristocráticos"(os melhores) e o preço a pagar pela governação, ou seja, a “entrega” do poder nas suas mãos, são eles que o estabelecem.

Isto tudo é muito triste, na perspectiva dos contribuintes que acreditam na racionalidade do sistema e nos méritos do apregoado Estado de direito democrático.

Que estes méritos pouco mais sejam do que ornatos e razões puras de uma ideia para enganar aqueles, crédulos e fiéis, impotentes, que são sobre quem esses méritos se fazem sentir e justificar, sem escrúpulos, por abuso da subserviência e do temor deles, é ainda mais inaceitável e revoltante.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O positivismo de Auguste Comte e de Platão

O filosofar é uma actividade severamente ameaçada por se desenvolver mediante um discurso cuja linguagem não nos pertence senão na medida em que a utilizarmos e não nos serve senão na medida em que a dominarmos na medida em que os nossos interlocutores a dominarem. Se juntarmos a isto o problema de, ao filosofar, o discurso filosófico ser o objecto do filosofar, porque não se trata de filosofar senão sobre ideias, ou conceitos, ou imagens, cujos contornos e conteúdos é impossível estabelecer, o que retira a esperança de duas pessoas, ao filosofarem uma com a outra, terem a mínima segurança ou certeza de estarem a pensar a mesma coisa ou algo bastante parecido, há motivos para pensar, como parece que Comte pensava, que há que ser positivo, no sentido de adoptar uma atitude construtiva com base na utilidade e no valor daquilo que pode promover a humanidade como aposta ganha.

A proposta dele partiu dessa necessidade de ordem e progresso social e que ele acreditava ser possível apenas através da religião. A experiência da Revolução francesa, que Comte vivera de perto, era a prova de que a igreja católica não tinha conseguido mobilizar a sociedade e menos ainda a Humanidade, em torno de um valor supremo que não ela própria. 

Deus não era suficientemente apelativo, nem suficientemente convincente para ser afectivamente adoptado como bem supremo.

Comte, talvez acreditando que o que move as pessoas são os afectos e as necessidades que geram solidariedades em torno de interesses e objectivos colectivos e individuais, elaborou um catecismo com a doutrina de uma religião universal que, no lugar de Deus, teria o amor por princípio, a ordem como base e o progresso por finalidade.

Essa seria a forma de alicerçar a construção da sociedade humana ideal.

A unanimidade seria obtida por efeito da verdade da ciência, que teria como sacerdotes os cientistas e cujo carácter experimental e verificabilidade não estariam sujeitas a refutação.

As ramificações, os desenvolvimentos, as interpretações, as versões e os sucedâneos desta ideia de positivismo (por oposição a negativismo-que afirma a impossibilidade de conhecer o ser), foram inúmeras e tiveram aplicações adaptadas em regimes políticos autoritários concretos.

Entrevejo algum paralelismo entre a situação histórica de desordem vivida por Comte, a vivida pelos filósofos Sócrates e Platão e o tipo de resposta que deram ao problema de, sendo filósofos, o que sabiam e podiam fazer face à violência e às guerras.                                                  

Sócrates, não tinha escola, dizia que não tinha nada para ensinar e é famosa a declaração “só sei que nada sei”, que lhe é atribuída.                        

No entanto, segundo o oráculo de Delfos, Sócrates era o único sábio. Então, ele terá concluído que, se era o único sábio, era porque só ele sabia que nada sabia. Os outros nem isto sabiam. Com esta alegação, talvez Sócrates irritasse muita gente que acreditava que o oráculo não mentia. 

A filosofia parece ter nascido, assim, da necessidade de fundamentar até à irrefutabilidade as opiniões sob pena de elas não passarem de expressão de interesses, instintos, desejos, paixões, ilusões, frustrações...

Mas Sócrates não acreditava que fosse possível fundamentar o que quer que fosse até à irrefutabilidade, nem a sua ignorância. E, neste ponto, ele parecia brincar com a "infalibilidade" do oráculo a seu respeito. 

Sócrates adoptara uma posição, digamos, “negativa”. Contestava os outros, porque só tinham opiniões e porque ter opiniões não é saber, mas ficava por aí, não sabia mais.   

Platão não aceitava esta saída e entendia que a filosofia “tinha a obrigação” de fazer mais. Esta posição era, digamos, “positiva”, no sentido que me parece ser o do positivismo de Comte.


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A neutralidade da ciência

A neutralidade da ciência não é um ponto fraco nem um defeito ou uma insuficiência da ciência, bem pelo contrário, é uma condição sem a qual o conhecimento ficaria comprometido, quanto à credibilidade e objectividade. Aliás, quando se trata de ciência física dos objectos materiais, a neutralidade não será um problema de maior, porque a determinação e estabelecimento dos factos não dependem muito da neutralidade dos juízos. 

O problema coloca-se principalmente nas ciências humanas, sociais e económicas, na medida em que aí os factos são actos humanos ou uma sucessão desses actos. Aqui, a neutralidade da ciência pode ser mais difícil de conseguir e o próprio estabelecimento dos factos pode não ser possível. E, sem factos apurados, provados, incontroversos e incontrovertíveis, não pode haver juízo de valor, seja ético, jurídico, moral, estético, económico, que mereça concordância e aceitação.

A maior parte da história assentou, e ainda assenta, num conjunto de ficções religiosas, crenças, idolatrias, mentiras reiteradas pelos poderes e pelas ideologias de domínio social que, à míngua de investigação e de conhecimento científico, eram impostas por autoridade como factuais e assim cultivadas e admitidas, sob advertência severa de que não poderiam ser postas em causa.

Assim se prova que se pode viver e construir impérios com base em ficções e mentiras.

Mas eu acredito que é preferível viver com base na verdade e, melhor até, sem construir impérios sobre cadáveres de escravos.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O ensino ao ritmo humano

Ao ensino importa adoptar as melhores estratégias e instrumentos possíveis, para ser eficaz, na perspectiva dos objectivos e finalidades pretendidas. Isto envolve a necessidade de conhecer quando, como, para quê e quem aprende o quê.
Não me parece que o sucesso/eficácia do ensino seja uma variável independente do quando, como, para quê, quem aprende o quê. E vice-versa.
Não obstante, no binómio ensino aprendizagem, se é relativamente controlável, por parte dos professores, o elemento ensino, já a aprendizagem é muito difícil e, em certos casos, praticamente impossível de controlar. E, sendo tarefa e função do aluno, ela varia imenso de aluno para aluno.
O ensino tem que se preocupar se os alunos aprendem depressa ou devagar na medida em que deve permitir que cada um possa aprender do modo que lhe der mais jeito.
Quanto à avaliação das aprendizagens, o problema está em reconhecer e classificar o trabalho desenvolvido e realizado, num determinado período de tempo.
É na avaliação e nos seus efeitos práticos que a escola não tem grande forma de evitar discriminações.
É sabido que, até nos casos em que dois alunos obtêm, ou lhes é atribuída igual classificação, isso pode estar muito longe de significar que ambos aprenderam ou sabem o mesmo. E não há uma relação muito directa entre o que é ensinado e o que é aprendido. Diria que esta relação é muito complexa e também fica largamente fora de controlo.
É preciso deixar que aprenda depressa quem quer e pode aprender depressa, não se deve impedir isso.
Quanto às questões da profundidade das aprendizagens e do pensamento, sem dúvida que elas requerem tempo de maturação, reflexão, experiência, prova, crítica, treino, domínio. Haverá quem se ocupe disso, uns mais outros menos. Aliás, também aqui, cada pessoa é um caso, cada curso é um caso e cada profissão... A maior parte do ensino, se não está pensada para uma aprendizagem "na óptica do utilizador", está estruturada e funciona assim.
A própria divisão por disciplinas e por especialidades também.
As pessoas, desde cedo, vão sendo induzidas a "habitar casulos de significado e de sentido" e constroem a sua racionalidade com os materiais disponíveis e segundo soluções disponíveis.
É-lhes fornecida uma proposta de aprendizagem que envolve algum tipo de problema, prático ou teórico, para resolver e que, muitas vezes, é um problema de linguagem, dá-se-lhes a resolução do problema, para aprenderem ou conferirem a resposta que encontraram e o resto fica ao sabor da criatividade, imaginação, solicitações, desafios, curiosidade, interesse, gosto, circunstâncias, de cada um.
De resto, para conduzir um veículo, usar um televisor, tomar um medicamento, aplicar uma lei, obter o perdão dos pecados, o utilizador só precisa de saber um restrito conjunto de coisas.
A esmagadora maioria da população não aspira a mais, nem sente necessidade de mais. E não seria viável, nem faria muito sentido, pretender fazer de cada indivíduo um engenheiro de automóveis, ou de electrónica, etc. e, menos ainda, porque seria absurdo, pretender que todo o indivíduo fosse competente em todas as áreas teóricas e práticas do conhecimento.
Os problemas são tantos e o trabalho a fazer é tanto, para uma vida tão curta e tão chata que, se cada um for fazendo aquela parte que lhe agrada mais ou lhe desagrada menos, em função dos incentivos e gratificações disponíveis, já é animador.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

António Barreto diz que ainda não vimos nada

António Barreto diz que ainda não vimos nada. 
E faz profecias, num texto publicado no jornal "O Público".
Para quem era comunista em Portugal, antes de 1974, o António Barreto parece ter-se dado tão bem com a política demolidora/construtora, que se transformou, pelo favor das circunstâncias, de tempo, lugar e modo, numa espécie de abstracto patriarca, cuja lâmpada do passado se reacende em diletantismo sacerdotal, como se aquilo que escolhe lembrar, e não o acontecido, fosse a necessária unção profética.
Todos os que pensam a história, pelo simples facto de a escreverem, reescrevem-na. E, se não a escreverem, repensam-na. Não há como evitar isto. A história nem é boa nem má, nem é bonita, nem feia, como a aldeia de uma velha cega, é o que é, o que se vê.
O António Barreto nunca esteve na perspectiva do observador isento, imparcial, objectivo, científico, e adoptou à partida a perspectiva transformadora, censória, rectificadora, correctora, interessada, militante, que lhe granjeou vantagens consideráveis, ou seja, de que foi bem compensado, para conforto da sua luta bem sucedida.
Embora comece por dizer "É triste confessar", e ninguém se confessa de actos, pensamentos ou omissões que lhe sejam favoráveis, ou abonatórios, porque isso não é confissão, refere-se, logo de seguida, aos revisores da história, como se estes não fizessem parte da história ou fossem mais fortes do que a história que ele parece preferir.
Um revisor da história, como o António Barreto, está na pior posição para criticar os outros revisores da história, se se limitar a censurar-lhes o intuito, ou os objectivos, ou a veleidade. E está na melhor posição para compreender que a história não é de quem a escreve ou reescreve, mas de quem a faz.
Por isso é que a história é como as obras de arte, é o que é (mas este “ser o que é” tem tanto, mais, ou menos, do que devia ser, do que podia ser e do que tinha de ser, como do que foi).
A interpretação que alguém se propuser desta trama descomunal, nada delicada e nada encadeada, cuja (ir)racionalidade desafia a inteligência dos deuses passados, presentes e futuros, qualquer que seja o ponto de vista, não permite profetizar, apesar de os comunistas serem demasiado proféticos, porque, a partir de um suposto passado, tudo, menos a história e o futuro, é suposto.

sábado, 19 de setembro de 2020

O amor da sabedoria e a medicina

O amor da sabedoria foi e é um grande amor. 
Esta paixão revelou-se, para mim, o melhor antídoto contra outras paixões. 
Fosse por questõ
es de senso, de nexo, de coerência, de sentido, de valor, de entendimento e de harmonia com quem me rodeava, a forma de haver entendimento e harmonia com a catequista, o padre, as beatas e as professoras, era reproduzir de cor e salteado o que eles mandavam. 
Havia outras pessoas, analfabetas (de escrever, ler e contar), que me transmitiam a noção empírica de que todo aquele teatro, à volta de uma escola e de uma igreja e, lá mais em cima, na sede do concelho, o tribunal, o quartel e a esquadra da GNR, era de tal modo simbólico e cifrado, para não dizer enigmático, que tinha mais pena deles, com as suas plumas e vestes ritualizadas, quando não cheios de jactância na hierarquia das procissões coroadas de interminável e poderoso foguetório, do que dos pedreiros cobertos de pó, a tossicar na taberna, vítimas da silicose e do cancro do pulmão pela sílica, enquanto os filhos deles, que eram meus colegas de catequese e de escola, passavam fome e aprendiam a agradecer a Deus a sorte que tinham. 
As minhas dores e as minhas raivas e as minhas frustrações, por mim e pelos outros (familiares, amigos…) encontravam eco no conforto religioso das pessoas ignorantes que me rodeavam, em casa, na aldeia, na catequese diária, fosse da escola fosse da catequista, ou no castigo de algumas dessas pessoas que exerciam a autoridade, com violência, sem necessidade de a justificarem, fazendo recair sobre mim, criança, jovem, adulto, o ónus de justificar a minha conduta.
Quando entrei na fase de saber que o mundo não tinha começado quando nasci e que não era apenas o meu quintal, a minha aldeia, paróquia, professora, e que havia uma cidade, e médicos e farmácias e hospitais e depois, outra e outra e oceanos e filmes, tudo era mais difícil de conciliar, mas o amor da sabedoria, impaciente, tantas vezes cruel e ingrato, foi-se mostrando vantajoso como uma arma de defesa pessoal, ou de defesa geral, numa guerra. 
A todas as tentativas, mais ou menos reais, mais ou menos disfarçadas de ordem, ou simplesmente perpetradas, de me conduzirem, ou subjugarem, ou ignorarem, ou desprezarem, eu aprendi a perceber que a razão é a arma dos fracos e que a sabedoria é como um grande exército de razões. 
Esta consciência, resultante de muito pensamento construído sobre o pensamento e as ideias de tantos filósofos e pensadores e escritores, permitia-me colocar um médico, ou um juiz, ou um engenheiro, no seu lugar profissional, do mesmo modo que a mineralogia, a zoologia, a botânica, a química, estavam nos compêndios respectivos. 
A minha passagem pelas ciências, numa altura em que o país fervilhava por todo o lado e todo o tempo era pouco para nós, jovens à procura de saber quem tem razão, mostrou-me que a vida, a acção, a dinâmica, os desafios, os combates, a adrenalina, não estavam numa bancada de minerais, ou num laboratório de química, ou na exploração e conhecimento da flora. 
O carácter de urgência de certas situações, altera as prioridades.
Havendo prioridades a considerar na construção de um currículo académico, ou de um plano de formação profissional, estas têm mais a ver com questões de ordem técnica e prática, funcional, do que com razões de ordem teórica ou filosófica. 
Está fora de questão que um estudante, qualquer que seja a função ou a profissão que venha a desempenhar, só por ser estudante deva estudar tudo o que há para saber sobre todos os domínios.

Outra questão será: estará em melhores condições para abordar clinicamente um humano, do ponto de vista das medicinas, um médico robot, que só sabe de medicina (isto é possível?-esta era a provocação de Abel Salazar), ou um médico humano?
Para não me alongar, e deixando implícito muito do que poderia explicitar, não acredito que um robot possa filosofar. Que, tomando a realidade (que equivale ao que conhece) possa definir o ser tendo em consideração: o ser como um poder ser que foi /um dever ser (pelo menos quando falamos de ética) que é, e como ele, robot, quer ou deseja que seja…
Mas o médico, enquanto homem, é um filósofo que vive integrado num sistema de acção e de pensamento e de valores que, em grande parte, já assimilou o que os sistemas de cultura assimilaram ao longo da história. Este sistema de pensamento e de acção é um sistema de linguagens e de lógicas, nomeadamente matemática, cujo domínio varia muito de pessoa para pessoa e de robot para robot.

Não acredito que os robots decidam com base em valorações próprias, que não sejam programadas por humanos, mas os médicos fazem-no.
Neste capítulo, por ex., se é indiferente para o mundo que uma pessoa viva ou morra, já quanto à vantagem política e económica na sua sobrevivência, ainda que enfermo, ou na sua morte, os médicos e a indústria farmacológica e as tecnologias da saúde e todas as profissões que dependem do tratamento das pessoas, tanto ou mais do que os direitos fundamentais do homem e do cidadão, são um baluarte e uma fortaleza, cujos interesses, quando mais não sejam, de facto, garantem o respeito pela saúde e pelas vidas, por mais inúteis ou absurdas que sejam do ponto de vista de qualquer filosofia, religião, ideologia ou sistema de valores.


sábado, 12 de setembro de 2020

A realidade e a razão

A realidade é expansiva, mágica, embrionária...abrange tudo o que existe (a realidade do que morre e do que não morre), razão, inteligência, conhecimento (aqui poderemos dizer que o que existiu e deixou de existir, conquanto seja conhecido, faz parte da realidade do conhecimento), linguagem, valores, comportamentos (a realidade dos comportamentos, que é imensa, é efémera, porque tem uma existência, a maior parte das vezes, instantânea, ficando dela, quando muito, a memória ou o registo fotográfico ou de vídeo, ou de relato...) o que se teve e já não se tem, ou se perdeu e o que se busca, caso exista ou venha a existir...enfim, a realidade do 1º segundo de tempo a seguir ao "big bang" não era nada daquilo que foi no tempo dos dinossauros, nem daquilo que foi no século XX, ou que é hoje.

Com este apontamento estou a ter um comportamento, a usar a razão e a linguagem e o conhecimento e estou a ampliar, a criar realidade.

Se, eventualmente, eu não tiver razão no que digo, nem por isso deixo de estar a criar realidade.

A realidade do conhecimento, baseada no uso da razão, está de tal modo ligada e intrincada com a realidade material e os comportamentos que, ao falarmos de sujeito de conhecimento e objecto de conhecimento, muitas vezes, estamos a falar da precedência da acção relativamente ao pensamento ou deste relativamente àquela.

A razão está para a experiência assim como esta está para aquela? Ter razão é o quê? E não ter razão? Quem tem razão?

Conheci um indivíduo que tinha razão, mas não tinha mais nada. E era acusado disso, de só ter razão...e fome. Conheci outros que tinham tudo, o que existia e o que viria a existir, mas não tinham razão. E também eram acusados disso.

A religião, muitas vezes, promoveu a razão da justiça e da solidariedade e do amor...Mas as suas premissas eram falsas.

A ciência da natureza descreve-a, verifica as causas e efeitos, quantifica-os, explica-os até ao ponto de dizer "isto é assim, porque acontece" ou, na geometria, "porque matematicamente é assim", pensemos no teorema de Pitágoras, mas não está a fazer mais do que constatar um facto.

Mas também podemos ter razão porque constatamos factos que são comportamentos, condutas, de pessoas que têm ou não têm razão.

E podemos ter razão, porque constatamos factos que são comportamentos, condutas, de pessoas, os quais não dependem de ter ou não ter razão.

Ter razão não é tudo e pode ser muito pouco, ou nada.

Nem tudo depende da razão. E nem todas as razões são boas.

Ser rico, saudável e feliz pode ser uma razão melhor para viver do que ser pobre, doente e infeliz.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Equacionar a realidade

As palavras impõem-nos respeito e, se já sentiste isso, não estranhas que te diga que esse poder das palavras é um poder à tua disposição, um grande poder, cujos limites nunca saberemos, porque as palavras mudam de cada vez que tentamos usá-las e não se deixam domar, nem manipular completamente, por mais que tentemos usá-las e, até, fazer delas nossas aliadas. 
Mas não devemos intimidar-nos perante elas. 
Quanto mais as respeitarmos, mais improvável será que elas nos traiam. Nada disto, porém, pode ser garantido por ti ou pelas palavras. 
Temos de admitir que não controlamos tudo, aliás, é mais fácil controlar um automóvel do que conduzir um pensamento ou meras palavras . 
Mas não te assustes com o poder das palavras. 
Quanto mais as enfrentares, mais realidade descobrirás/construirás, porque elas são portas e janelas e cortinas e mapas dinâmicos que poderás abrir para ver onde tu também te vês a construir, a destruir ou a fazer nada. 
 Vou falar-te de equacionar. 
Quando falamos ou escrevemos, se o fizermos voluntariamente, estaremos a equacionar ou a equalizar. 
Equacionar é uma forma de pensar que não se satisfaz com a analogia. 
Já pensaste como é raro encontrar duas coisas parecidas? E duas coisas iguais? Até poderíamos afirmar que não há duas coisas iguais, embora tenham as mesmas propriedades. 
Equacionar obriga a distinguir o que for distinto, ou, pelo menos, a reconhecer o indistinto como uno. 
 Então, se tu disseres que A=B, estarás a falar de uma mesma realidade, A ou B, mas não de duas. 
 Equacionar levanta problemas que não existiam antes de equacionarmos e são problemas, não são fantasias. 
Fantasia seria, por exemplo, dizeres que A=B, porque A está diante de um espelho e B é o seu reflexo. 
Uma criança ingénua poderia dizer-te que A, diante de um espelho, continuaria a ser um A.

sábado, 22 de agosto de 2020

A filosofia tem sido muito maltratada (e ninguém merece). Um tempo sem paralelo

A filosofia não está à mercê do opinativo.
O opinativo tem feito um percurso de sucesso, por alguma razão, talvez boa.
As considerações críticas dos autores, não raro, assentam que nem uma luva neles próprios. Expostos a elas, não resistem minimamente.
Vivemos um tempo que não tem paralelo.
Debalde se invocam classicismos e cânones e profundezas e profundidades e retóricas de antanho…
Há mil anos quem tinha um olho era rei.
Hoje, quem tem dois olhos nem sabe o que é um rei e um rei não sabe o que é um olho, embora tenha dois.
Conhecemos facilmente o mundo de há mil anos.
E não faltam eruditos sobre o passado remoto, de há milhões de anos, incluindo o dos dinossáurios.
Mas não se encontram eruditos sobre os séculos XVII, XVIII, XIX, XX.
Embora de filósofo (médico, etc.) e louco todos tenhamos um pouco, a filosofia não está para o opinativo (bombástico) como o opinativo (bombástico) está para a filosofia.
A filosofia tem sido muito maltratada (e ninguém merece).
É da máxima importância, irmã mais velha (verdadeira sobrevivente ainda longe da maturidade) da ciência.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Ela, sem cabeça, ele, sem coração

Há quem não tenha um membro, um dente, um olho…

Há quem não tenha estômago para certas coisas, quem não tenha ouvido, quem não tenha cabeça, porque a perderam, ou porque nunca a tiveram…

Há quem não tenha dois dedos de testa, unhas para tocar guitarra, canetas para a corrida, fibra, garra, talento, paixão, coragem, fé, inteligência, juízo, cérebro, governo, dinheiro, visão…

Mas o pior de tudo é não ter coração.

Por isso, devemos ir ao médico, de vez em quando, para ele verificar.

A cabeça até pode estar noutro lugar, que não em cima dos ombros. Quem não ouviu ainda: "onde é que tens a cabeça?". E o coração pode estar longe, preso a algum tesouro "o teu coração estará onde estiver o teu tesouro", possivelmente inacessível dentro de algum cofre forte. 

Neste caso, o médico pode receitar umas drogas para esquecer o tesouro. Aos poucos o coração recomeçará os batimentos no lado certo. 

Assim sendo não é bom ter um tesouro. 

Pelo menos, não é bom que esteja longe e, se já tiver passado a fronteira para o outro mundo, o pior que pode acontecer é rogar a deus que "tão cedo de cá me leve a ver-te, quão cedo de meus olhos te levou". 

E não estou a brincar. Camões não era para brincadeiras, sabia o que escrevia.


domingo, 2 de agosto de 2020

A melancolia e a palavra melancolia

A melancolia, antes de mais, é uma palavra. Aqui, deixa de ser subjectiva. 

A linguagem tem a virtude de objectivar o subjectivo e o defeito de não comunicar o subjectivo. A dificuldade de comunicar, em grande parte das vezes, está em que, ao fazê-lo, o subjectivo deixa de o ser, porque a linguagem não é subjectiva. 

Suspeito de que um dos trunfos da comunicação científica para ter eficácia resulta do uso de uma linguagem descontínua (ou digital).
De igual modo, a eficácia que a comunicação corrente procura depende e exige o uso de uma linguagem contínua (ou analógica), que não existe, porque a linguagem é descontínua (ou digital).
Suspeito de que estas hipóteses sejam revolucionárias, como o foram os primeiros estudos e descobertas sobre a perspectiva.
A realidade observada através de um espelho com uma área de 50 cm2, pode ter uma área de muitos Km2. 

E podemos pintá-la (representá-la) num quadro a qualquer escala. 

Uma das maravilhas da linguagem (não só da matemática) é que ela permite que percorras todos os labirintos e dês muitas voltas ao mundo e fales disso, sem saberes nada do que andas a fazer.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Ler livros e pensamento crítico

A notícia de uma professora de português que disse, numa entrevista, não ser de ler livros, primeiro inquietou-me mas, depois de pensar, concluí que não era nada que eu já não soubesse que podia acontecer. 
Não é fácil admitir que um professor é mais e muito menos do que "o modelo" de professor.
Fala-se muito em "perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória". 

Todos esperam que o professor seja mais habilitado e inteligente e responsável, etc., do que um aluno à saída da escolaridade.
Adquirir o estatuto de professor é um passe de mágica incrível. 

A simples mudança de papel no teatro das operações, faz toda a diferença. 
E todos acreditamos nisto, ou, pelo menos, funcionamos como se acreditássemos.
Se pusessem a chefe das funcionárias a Directora da escola, no dia seguinte, ela era a pessoa mais dotada e competente que alguma vez se viu e todos os doutores eram uma cambada de maledicentes, que tinham de ser metidos na ordem.
Mas a questão é mesmo "ler ou não ler".
É certo que quem lê tem imensa dificuldade em fazer-se entender por quem não lê.
Quem não lê cumpre os requisitos da sociedade do pré-formatado. 

Comprar tudo feito é o modelo em que vivemos. 
Não ter de aprender a fazer as coisas. 
Não ter de pensar, porque já tudo está pensado, etc..
Por que nos torturaríamos a pensar, com as nossas limitadas capacidades de iniciados, sobre aquilo que as maiores inteligências já pensaram e repensaram durante séculos e nos colocaram "gratuitamente" nas mãos?
O chamado espírito crítico é andar para trás, é perder tempo, é, no fim de contas, uma estupidez, porque a roda e a pólvora estão ali à vista, tudo o que precisamos de saber, está ali, não precisamos de inventar nada.
Aliás, ter pensamento crítico é justamente perceber o que acabo de referir. 

Sair disso é pedir uma reprovação por burrice. 
Ser questionador, perturba, ser dissonante é conflituoso, disruptivo, desagregador, desagradável, enervante, hostil, exigente e incompreensível. Quem quer isso?
Se já está tudo pensado e comprovado e simplificado e optimizado (e decidido) por que raio hás-de pensar e problematizar e dizer por outras palavras?
Não estão os problemas todos resolvidos? 

Somos nós que vamos resolvê-los?
Que é que estamos, então, a fazer na escola? 

Isto não é pensamento crítico?
Os partidos, as seitas, as religiões, os clubes, os filósofos, os cientistas, os fabricantes, os comerciantes…, não têm as respostas para as questões e os problemas?
Quem és tu/sou eu para discutirmos e pormos em causa o que quer que seja?
As bíblias e os altares não tinham todas as respostas para tudo?
Se tu fores capaz de reproduzir as crenças da tua igreja, as ideias dos principais filósofos, as teorias dos maiores cientistas, os argumentos do teu partido, já serás tido como sábio.
Se questionares tudo isso, ainda que abras brechas nos edifícios de terracota, o que te perguntarão será sempre sobre aquilo que é sabido.
Aprende de cor o catecismo da tua disciplina ou religião, ou a cassete do teu grupo ou partido e representa o respectivo papel que, para seres excelência, só não deves fazer ondas.

sábado, 18 de julho de 2020

O protagonismo dos livros

Os livros também são protagonistas de aventuras e de histórias, por alguma razão, empolgantes e inesquecíveis. 
Como o livro, se houver, serão poucas as realizações humanas que mobilizaram e mobilizam tanto o labor, a criatividade, o génio, a inteligência e a paixão do homem. 
Se não acolhe tudo o que importa exprimir e comunicar, porque nem tudo é susceptível de ser plasmado ou veiculado em livro, poder-se-á dizer que nada do que aspira a ser dito e merece deixaria de ser feito em livro, se pudesse.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Letra morta

Há imensas coisas que não passam de letra 
e outras tantas que são letra 
morta.
Até há imensos projetos de arquitectura 

que só o arquitecto vê.
São coisas, correspondem a ideias, 

mas enquanto não saem do papel...

terça-feira, 16 de junho de 2020

Quando olho é como se já não visse


Quando olho é como se já não visse
por ser tão longe e tão profundo
o significado em que tudo o que vejo
se tornou
nesta surpresa que sempre procurei
quando acreditava que o futuro
era o tempo de realizar sonhos
que o presente então
ao meu esforço negou
 eu olhava e era como se não visse
por não ser preciso
mesmo assim eu queria ver
o significado em que tudo se tornaria
o presente me dá quase sem eu querer
quando olho como se já não visse
o que desejava ver.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Continuidade/descontinuidade

Gostava de referir algumas questões atinentes à continuidade/descontinuidade entre empirismo/racionalismo, considerando que, no tocante ao inato, às ideias inatas, percepções inatas, emoções, as neuro-ciências têm apresentado estudos muito curiosos em recém-nascidos.
Por outro lado, parece-me que o empirismo é, pelo menos, tão racional quanto o racionalismo é empírico. A própria experiência racional é uma experiência. Experiência, neste sentido, é também a experiência estética, poética, religiosa.
Estamos imersos na experiência, mesmo quando flutuamos até à superfície e colocamos a cabeça de fora (se é que isso acontece, ou pode acontecer). A música e o prazer e a dor são experiências.
Parece-me um trocadilho afirmar, como já tenho lido em enciclopédias, que "só a experiência permitirá decidir da verdade ou falsidade de um enunciado".
Não é a experiência, mas a razão, que permitirá decidir da verdade ou falsidade de um enunciado. Mas o que é a razão sem a experiência?
Outra questão é a da objectividade/subjectividade. A comunicação processa-se no plano da objectividade. O subjectivo deixa de o ser quando se comunica. A linguagem é um domínio objectivo.
O relativismo é outro problema inerente ao conhecimento, mormente enquanto correlação empírica, e não necessidade lógica.
Agora, brincando um pouco, em inúmeras situações em que estamos cheios de razão, nem por isso temos mais do que aqueles que, não tendo razão, têm o que não temos. Quando só temos razão, ainda podemos ser acusados de não termos nada.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Os democratas que não construíram a democracia

Ainda nos falta um bocado de trabalho científico e filosófico, descontraído e desinteressado, isento e tranquilo, para começarmos a compreender o problema da linguagem, como parte das respostas e das perguntas sobre a realidade incluindo a dela própria.
Mas estão a fazer-se progressos notáveis. 
A linguagem, segundo uma abordagem interessante que li, parece que funciona num esquema digital, descontínuo, e a realidade, a vida, as emoções, funcionam analogicamente, sem descontinuidade. 
Esta hipótese, para mim, foi uma grande descoberta (andamos sempre a descobrir o que já foi descoberto?). 
O alcance desta conjectura, de que a linguagem comunica, ou pretende comunicar, a realidade mas que o faz representando-a digitalmente, envolve um conjunto de problemas interessantíssimos e que podem ser perigosos. 
Deixa o caminho aberto a todas as formas de comunicação e de mal-entendidos e de equívocos, voluntários ou não, sobre a realidade, que sempre será diferente da nossa representação dela e, inerentemente, da comunicação que dela se faz. 
A literatura, a poesia, o teatro e as artes...não obstante serem de algum modo jogos que "pervertem" e "subvertem" e "transgridem" a linguagem digital para tentarem ser analógicas, como a realidade, não deixam de ser linguagens... 
Não estou muito certo de estar a ser suficientemente rigoroso na linguagem e não tenho mais do que a suspeita de que estou a pensar numa questão algo revolucionária, em termos de teoria do conhecimento.
Quanto à democracia, enquanto ideia, nunca será destruída por ninguém. Se existe um problema porque a democracia nunca existiu para além da ideia e quanto mais se deseja, mais parece estar longe da sua concretização, é preciso identificá-lo e resolvê-lo, mas não me parece que seja com jogos de palavras como "os democratas que destruíram a democracia". 
 Apostaria na expressão “os democratas que não construíram a democracia”.

sábado, 16 de maio de 2020

Máscaras

As máscaras, os papéis, os palcos, os bastidores, temas fascinantes, para a psicologia e a sociologia e tudo o mais que envolve conduta humana, por acção ou omissão, mas particularmente importantes para o conhecimento de si mesmo e dos outros, daquilo que é o poder da imaginação, a aptidão do cérebro para trabalhar, ainda que à revelia do seu "dono, mas pouco", de produzir imagens, ideias, representações, palavras, falas, músicas, medos, ficções, movimentos... correlações, explicações, teorias...cenários... e cujo interesse artístico, estético, filosófico, social, clínico, político, comercial... tem uma dimensão astronómica.
Saberemos algo que não seja imaginado, que não seja representado? O que não somos capazes de imaginar ou de representar, estará acessível ao conhecimento? O nosso acesso à realidade é intermediado por máscaras, umas vezes de ferro, ou de plástico...e outras vezes de gestos, de palavras, de subentendidos, de equívocos...
A maior parte de cada um de nós, boa ou má, é máscara da humanidade que viveu e morreu.
E não há como tirar a máscara, porque debaixo de uma está outra.
Há é como colocar a máscara para salvar os outros.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

O maior inimigo das artes

A arte, qualquer que seja, é incompatível com a pressa. 
Até a arte de relojoeiro. 
Encontrar o ritmo certo, o enleio perfeito do tempo, do corpo e da alma (sem concessões religiosas), talvez por ser um horizonte, nos apresse a chegar, mas esta resposta é contraproducente. 
Os nossos tempos elegeram o maior inimigo das artes, a velocidade, como vector determinante, de tal modo que o que quer que seja que não seja veloz, passa ao lado, passe a expressão, não merece que se "perca" tempo. 
É assim, mormente, desde que o tempo passou a significar, ou a ser considerado, e não apenas a valer, materialmente, dinheiro "Time is money".
E a velocidade, a adrenalina, a vertigem, viciaram o nosso sistema nervoso e deparamos com muitas pessoas a desabafar que não conseguem imaginar a vida sem elas, do mesmo jeito que ouvimos fumadores inveterados ou alcoólicos a queixarem-se da sua escravidão.
Até o pensamento, se não for rápido, que fosse. 
Quem espera por um pensamento ou uma ideia?
Se observarmos, daremos conta de que um número significativo de pessoas estão contaminadas por uma pressa na forma de falar e de fazer as coisas, que também pode ser observada na forma como andam, ou estão sentadas, sem disso terem consciência, como se estivessem sempre atrasadas para algum evento obrigatório e não pudessem perder o transporte que acabou de passar, como se o presente e o lugar onde estão fossem uma espécie de transitório e não de objetivo e destino. 
No fundo, receiam pensar, e mais ainda admitir, que não têm objectivos, nem destino (no sentido de lugar aonde desejam chegar).
Tantas pessoas em fuga. Sem saber para onde. A fuga é uma realidade. É um drama. E a fuga adopta imensas estratégias e variantes. Não é apenas um problema de ansiedade e de sobrevivência. É um modo de estar e de comunicar, de pensar e de sentir e, se não é um modo de viajar, quantas vezes viajar não é um modo de fuga?!
Mais do que um hábito, para muitos converteu-se numa disciplina, numa cultura de empresa e está institucionalizada no capitalismo, como se a nossa função natural fosse reciclar, como as minhocas, e o nosso papel social não passasse de uma sublimação que impede concluir facilmente que essa é uma realidade, que alguns acharão triste e outros, nem sequer pensam se é uma fatalidade, ou se o sentido da vida é esse, render-se-lhe.
Tudo tem de estar preparado e embalado. Pré-fabricado.
Com o "tempo dinheiro", também o espaço sofreu uma incrível contracção e tem o seu preço e é cada vez mais exclusivo e excludente. Até os espaços públicos, não são espaços onde se possa morar, como se fossem nossos, meu, teu...
De resto, tudo se agravou mais para as artes e as contemplações. 
É muito difícil, para não dizer impossível, ser deus, mais humano e independente e livre do que um Deus, parar no centro dos furacões, não aceitar ordens de ninguém e, soberbamente, não dar ordens a ninguém. 
Não trabalhar para quem não precisa.
As plantas, essas, que parece que não crescem e não podem voar, senão quando um vendaval as arranca e as transporta para algum chão em que voltem a criar raízes, que pensarão dos pássaros e do sol e da lua?...
Quem disse que uma vida não se mede em dias, meses ou anos, mas em quantidade de moeda equivalente ao tempo "gasto" para a sustentar, que é considerado "perdido" se não der retorno?
É assim, tanto com a vida dos bichos como com a vida das pessoas?
Criar riqueza hoje tem um significado muito retorcido. Um incendiário pode ser um criador de riqueza. E um consumidor de combustíveis também, assim como um vírus mortífero.
Mas, e o amor? De que riqueza é o amor?