Quando um operário fabril, presidente de junta de freguesia, para criticar e diminuir um adversário político, disse “é um filósofo”,
eu, que não me canso de tentar compreender o que é um filósofo, e que tenho grande apreço pelos filósofos, fiquei a pensar em qual seria a representação negativa que o senhor
presidente tinha dos filósofos e como a construiu. Que tinha conhecido um filósofo, era patente. Mas seria esse personagem um filósofo? Teria conhecido outros filósofos? Ele que, tanto quanto sei,
nunca leu um livro, menos ainda de um filósofo? Saberia o nome de um filósofo? Sim, o do tal opositor político.
O senhor presidente, meu conhecido, não estava a fazer figura de estilo, estava
simplesmente a dizer-me algo que ele supunha que eu interpretasse de modo pouco abonatório para o personagem referido, não por lhe chamar filósofo, que eu interpretaria como grande elogio, mas pelo contexto
da conversa que estávamos a ter.
Vindo de quem vinha, de uma pessoa com parcos recursos discursivos, habituado a executar o que é da praxe sem precisar de ter ideias ou teorias acerca dessa praxe, qualquer
tentativa, ou manobra, para o levar a jogar num campo diferente, não lhe era agradável, nem conveniente. Supus que se referia, nesse epíteto, a alguém que tinha facilidade em falar e que procurava
alcançar com a palavra o que ele, presidente, só entendia ser possível com a prática conhecida. Ou talvez houvesse algum vislumbre de o considerar sofista, no pior sentido da palavra.
Inclino-me
para pensar que um filósofo talvez não fosse a melhor escolha para ocupar um cargo político, ou militar, e mesmo como professor tenho grandes reservas, a menos que lhe conferissem um estatuto específico.
A experiência filosófica faz parte de uma atividade que não se reproduz, não se replica, não se repete, mesmo que se repitam as palavras em que se traduza.
Devemos esperar que uma qualquer
pessoa faça uma experiência filosófica no mesmo sentido em que se faz uma experiência de laboratório?
A filosofia é uma experiência humana proporcionada por uma linguagem,
mas esta, só por si, não proporciona a experiência filosófica. Um jovem pode papaguear todos os compêndios de ideias de todos os filósofos, à semelhança do que, em poucos
segundos, faz a IA, mas não será capaz de experiências filosóficas compatíveis com as que estiveram na origem da autoria delas. Os antigos gregos representavam os filósofos como anciãos
e, com efeito, um bebé, como por exemplo a IA, papagueia mais filosofia do que qualquer humano, por mais sábio e enciclopédico que seja, mas não é um filósofo e não tem experiência
filosófica.
A expressão latina “Primum vivere, deinde philosophari” adquire, neste contexto, um significado especial acerca das prioridades, mas também de uma ordem
natural e necessária das coisas e das causas. Como é possível filosofar sem ter vivido? Aliás, seria ilusão acreditar ou supor que a IA filosofasse. Ainda que processe a linguagem e os discursos
filosóficos, isso corresponde, em termos do que considero ser filosofar, à confirmação de que filosofar, longe de ser um processo e efeito de linguagem, deve ser um processo de iniciativa humana,
segundo o qual e por efeito do qual se origina e gera linguagem acerca de um problema humano, com vista a resolvê-lo. A IA opera apenas sobre a linguagem, seus significados e padronização, sem qualquer
iniciativa ou outra finalidade que não sejam as que procedem dos comandos humanos. Por mais que isto seja útil e instrumental para o filósofo, não é filosofia.
O filósofo não pode ser compreendido por alguém, ou algum mecanismo, que não tenha a mínima noção do que é falar em nome próprio de algo,
ou sobre algo, que não esteja e não caiba na linguagem mas que só pode ser comunicado através de uma linguagem.
Ao filósofo não é legítimo pedir que fale em representação
seja de quem for. Por isso, os professores de filosofia não podem ser confundidos com filósofos e, mesmo que o sejam, tal não faz parte do seu estatuto e não estão autorizados a filosofar.
Basta um aluno queixar-se que imediatamente será atendido pela Direção, no seu direito à estrita verdade do manual.
O filósofo assemelha-se a um músico que toca o seu instrumento
perante uma plateia com quem partilha a música, mas dificilmente, ou nunca, um significado e o professor de filosofia assemelha-se ao professor de instrumento que o aluno não aprenderá a conhecer e a tocar
e a explorar por mera observação.
A filosofia é uma experiência que requer maturidade para dar frutos.
Há génios na matemática e nas ciências da natureza, para
referir estas parentes da filosofia, que se manifestam na juventude, mas a filosofia e a sabedoria não se compadecem com o génio (nem com a juventude).
Diria até que não se compadecem com nada.
E, qual ironia do destino, o filósofo viveu até ser velho para ver, como já pudemos constatar através do episódio do operário fabril, que era também
presidente da junta de freguesia do filósofo, o que os fregueses esperam que um e outro possam fazer por eles.
Se o filósofo vive por amor da sabedoria e se esta acontece tarde e a más horas, ou nunca, que sentido pode fazer?
Carlos Ricardo Soares