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terça-feira, 28 de junho de 2022

Tudo para ser feliz

Quando escrevo só 

Posso contar com o leitor

Para transpor

O limiar da minha porta

O poeta não se mete pelos olhos dentro

Como uma irresistível vénus desencadeia

Tempestades de prazer

Até a quem as não quiser

A poesia pode ser desbragada

Mas é a sedução de não ser nada

De não ter úberes

Nem ritmos de pimbalhada

Que entram pelos olhos dentro

Sem pedir licença

E sem dar licença para contento

Sentam o rabo na cara

A poesia é como a dança

Exibicionismo requintado de mais

Para os pés de chumbo

Que a desdenham e deploram

Como a trança de um cabo de cebolas

É cantar a uma janela

Sem ninguém lá dentro

Porque não está lá ninguém

Não é trabalho

É a infelicidade

De quem tem tudo para ser feliz

Uma arte

Ter tudo para ser arte

Mas não ser bela

Uma questão de gosto

Ter tudo para ser

Mas não acontecer.

sábado, 25 de junho de 2022

Fender

 

Ouve cantar aves que espreitam

Da fenda da floresta

O atrevido afagamento do sol

Quantos silêncios inofensivos

Estão atravessados num sorriso

Quantos enigmas são precisos

Para resgatar do esquecimento

As âncoras ofuscadas

Pela refracção dos prismas

Que à toa fendemos

Ao rasgar páginas pela fenda

Da leitura da escrita

Espigas do mundo

Seios dourados

Às transparentes mãos

Porém imperfeitas

Do dia que se faz

Adivinhar pelas fendas

Dos abismos

Que tem o luar.

sábado, 18 de junho de 2022

Poesia dos aranhões

Às vezes o tempo mal dá
Para perceberes que andas à procura
Empenhado em desbravar enigmas simples
E em deixar os mais complexos
Para quem os achar
Não por tua vontade
Mas por ser assim
Que Deus vence e vencerá
Pois foi inventado para isso
E continua a ser remodelado
Como todos os modelos
Que são inimigos
Da diferença
E da autenticidade
E talvez existam
Para exasperar a diferença
Não precisas de entrar numa catedral
Para perceberes
Na vida tudo é feito à semelhança
Da diferença
Mas é bom que entendas
Até que ponto estás impedido
De rejeitar essa poesia dos aranhões
E de sobreviver
A toda ela.


segunda-feira, 13 de junho de 2022

A felicidade

A felicidade. O que se entende por felicidade? Bem-estar, satisfação?
O conceito de felicidade tende a ser referido a situações objectivas que, raramente, ou nunca, serão atingidas e, se o forem logo confirmam que a felicidade não é intrínseca a situações particulares da fortuna e do mundo, como se não houvesse situações susceptíveis de dar felicidade, porque esta não existe fora do indivíduo. O que me torna feliz, provavelmente, não tornaria felizes os outros e, hipoteticamente, até poderia torná-los infelizes. Por outro lado, a minha felicidade não está livre de, mais tarde, ser fonte de infelicidade. 

O conceito de felicidade, todavia, e por ser assim tão subjectivamente condicionado e determinado, é de inestimável utilidade para tentarmos compreender a natureza humana e encontrar em tudo o que é acto humano esse sentido da felicidade. 

A tese que defendo é que tudo o que é acto humano é racional e implica uma escolha que é a melhor (todo o acto é individual). Do que sei sobre o ser biológico do homem, nomeadamente dos processos homeostáticos, não só a racionalidade é um determinismo, como a escolha é inelutável, um imperativo, diria, natural. A felicidade é o critério. Não há outro. É um fim em si mesma. Não é instrumental. Instrumental é tudo o que for susceptível de realizar a melhor escolha. 

A cultura humana é determinada, em todos os seus aspectos, por um princípio que eu designo, num trabalho que tenho elaborado sobre Ser Humano, por princípio da felicidade, como princípio normativo de todos os outros princípios.
A minha argumentação vai no sentido de que a cultura é a manifestação de um dever-ser que é um ter-de-ser (da natureza). A inversa não é verdadeira, quero dizer, o ter-de-ser da natureza não é manifestação de um dever-ser, excepto no caso da cultura.
Qualquer texto serve para tentarmos sustentar a tese que defendo. Qualquer situação humana também. 

A esperança está no reconhecimento social e institucional dos mecanismos biológicos egoísticos (da felicidade) e na gestão e disponibilização de quadros de possibilidades de escolha que não impliquem que a melhor escolha não seja boa.


domingo, 5 de junho de 2022

Liberalismo utópico

As ideias de democratizar a sociedade, democratizar a escola, democratizar a cultura, democratizar a boa vida, democratizar a felicidade, aparecem frequentemente associadas, e não da forma mais correta, à ideia de que a sociedade, a escola, enfim, tudo, deve seguir um modelo liberal, muito liberal, muito individualista e funcionar sem paternalismos, baseado na autonomia do indivíduo e na utopia da liberdade total.
Associar a ideia de democracia a esta utopia de liberdade é um grande passo para ignorar o sentido e confundir ambas. Democratizar só faz sentido se significar tornar democrático, e tornar ou ser democrático está muito longe daquela utopia liberal.
Aliás, aquela utopia liberal choca de modo irreconciliável com a democracia e os modos democráticos de gestão e resolução de conflitos e de problemas sociopolíticos e institucionais.
Se quiséssemos ser antipáticos, sem deixarmos de ser democráticos, diríamos que, mais frequentemente do que gostaríamos, constatamos a total incapacidade das escolas para promover aprendizagens que despertem e fomentem o espírito crítico e a hermenêutica. Isto é visto como algo estratosférico, para não dizer exosférico.
Os elevados níveis de especialização requeridos por cada área de análise crítica e fundamentada vão sendo atingidos por um reduzido número de especialistas que só se entendem uns aos outros e, às vezes, só a si mesmos.
Ora, a maioria das pessoas não aspira a uma vida de solilóquios ou de intermináveis discussões consigo mesmo embora possa estar a falar para as paredes, que até têm ouvidos.

 Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Prisioneiros

Pedaços bocados

Fragmentos despojados

Retiros passados

Passos trocados

Regressos impossíveis

Veredas desconhecidas

Sendas armadilhadas

Traçados dos diabos

Remotos

Nomes de descobertas

Induzidas por pioneiros mágicos

Alucinados pela esperança

Dissoluta

Mais do que pela jazida sabedoria

Nómadas destroçados

Sem quartel

Prisioneiros

De alegrias poucas

E das loucas

Degradações

Sementes de violência

Desfazem-se

Desfazem-nos

Desfazem-te

Desfazem.