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quarta-feira, 19 de julho de 2023

Dos maus os menos

Este texto foi a minha resposta a um comentário que pretendia fazer humor com a filosofia ubuntu, a redenção da humanidade e as bombas matarem apenas os maus.

A filosofia ubuntu, de que conheço apenas “eu sou porque tu és”, soa-me bem e parece-me empática e muito verdadeira, com uma carga positiva de sentido de gratidão e de reconhecimento dos valores da solidariedade. Já me soa mal e tem uma carga de hostilidade e de arrogância injustificável, uma certa ideologia, com tiques de mandamento novo, “tu és porque eu sou”, que grassa sem pudor nem vergonha, como erva daninha, que dá imenso trabalho a limpar.
No primeiro caso temos o sentido da solidariedade e do reconhecimento do tu em nós próprios. No segundo, uma incapacidade cultural, uma mentalidade preconceituosa erigida sobre pretensiosismos de superioridade.
Temos que nos precaver contra a tentação de decidirmos que os bons são os amigos e os maus são os inimigos, ainda que uma larga maioria não seja uma coisa nem outra. Por esse critério, no dia em que as bombas inteligentes souberem matar apenas os maus, talvez não sobreviva ninguém.
A religião cristã baseou-se na doutrina de que só a morte pode libertar e na crença de que, quem desfaz as cadeias, é o redentor. Sejam as que prendem pés, as que agrilhoam a cabeça, sejam outras, por exemplo, obsessões perigosas, paixões que escravizam, situações de miséria, determinados códigos de honra.
Também já ouvi expressões saídas do léxico da bruxaria, como “estar amarrado”, “ser vítima de mau olhado”, “excomungado”, “possesso”, “enjeitado”, “touro sem marca que não se sabe a que manada pertence”, “ovelha tresmalhada é presa fácil do lobo”, entre imensas outras que, em variadas situações, ajudam a interpretar e a verbalizar problemas individuais e sociais, de integração, de pertença, dignidade e respeito e de igualdade, ou a sua falta.
Interrogo-me sobre se, na prática social das comunidades em que eram usadas, as referidas alegorias, não tinham como finalidade estigmatizar e diminuir e fulminar, com o fito de se aproveitarem da situação de fragilidade e de medo em que elas próprias colocavam a vítima.
Quanto à redenção, ela tem a ver com uma libertação humanamente impossível, não com a libertação da escravatura, que ocorria por vezes e era intensamente desejada, num mundo em que o mercado de escravos também podia ser uma oportunidade para o escravo, se fosse vendido e a troca de amo, de senhor, fosse vantajosa. Neste mundo, a libertação reduzia-se praticamente a ser comprado por um amo a outro.
Para os cristãos, estava claro e assumido que não havia esperança de liberdade, nem de paz, nem de justiça, em vida. Não podiam ser mais realistas e mais pessimistas. Sem este realismo e este pessimismo seria mais difícil fazer o cimento da crença na redenção divina.
Eu não sou tão pessimista e o meu realismo, que me dá esperança, é que o homem, que foi capaz de criar Deus, também há-de ser capaz de fazer justiça divina.
Carlos Ricardo Soares
 

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