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terça-feira, 20 de abril de 2021

Cultura/dever-ser/sabedoria

As preocupações e as inquietações da nossa cultura, como processos humanos que, paradoxalmente, tendem a tornar-nos tanto piores, quanto mais deliberadamente procuram tornar-nos melhores, ou, pelo menos, num certo sentido de melhor, também são cultura.

A cultura, na minha perspectiva, é de matriz normativa. Embora a normatividade ética, moral, religiosa, jurídica, estética, do conhecimento, da política, etc., seja fundamentalmente o mesmo fenómeno de dever-ser, não deixam de ter expressões, conteúdos, objectivos e sanções diferenciados. Importa salientar que, se assim for, é uma realidade, como foi realidade toda a sucessão de guerras e de monstruosidades perpetradas pelos "melhores" que a cultura produziu.

A cultura continuará a fazer aquilo que sabemos e queremos, a todo o custo, fazer, ou, por outra, o homem continuará a fazer o jogo que é suposto dever saber jogar.

As vozes que se levantaram ao longo da história contra a cultura dos guerreiros, de violência e de dominação, de subjugação e de superação dos adversários e dos inimigos, além dos padecimentos, do choro e lamentos, dessa inenarrável e insuportável realidade, pouco puderam mudar. Até o cristianismo, que ensaiou inverter o conceito de homem melhor, acabou por se revelar o maior promotor daquilo que criticava e censurava. Mas os outros, os que fizeram tudo o que estava ao seu alcance para realizar e personificar os valores da civilização, que enfrentaram e anularam o poder dos inimigos, mais não fizeram do que reforçar e promover as razões da cultura de guerra. De tal modo que as sociedades, ainda hoje, são guerreiras e implacáveis para com os fracos, os inúteis, os fardos, os deficientes, os inábeis, os ignorantes, os inaptos para o combate.  Quando descansam, curam as feridas, reorganizam as forças e os recursos, fomentam as suas economias e divertem as populações, não se distraem nenhum momento da principal razão de tudo isso: recuperar a força, o poder militar. Tudo está preordenado e instrumentalizado para esse grande fim, a que chamam Paz.

E não é apenas porque se sentem ameaçadas no quadro do jogo político e militar. Se não for para se defenderem de um ataque, é para impedirem que desrespeitem as regras do jogo, chamemos-lhes assim. E se desrespeitam as regras do jogo, há que obrigar a repor a situação e a respeitar. E se as regras do jogo permitem certos avanços para uns, também permitem para os outros, mas isto não é aceite pelos poderosos. Aliás, só há liberdade para os que podem.

Esta é a cultura dos melhores, dos heroísmos, dos invencíveis, dos laureados, dos troféus, dos pódiuns, e dos que clamam por vingança, que nem fingem acreditar na justiça.

E os melhores são aqueles que superam e vencem os desafios de salvaguarda dos valores em que acreditam. São os que ganham os jogos e os campeonatos, em todos os campos ou, pelo menos, mais do que os outros.

Os melhores no sentido de terem mais bondade, de se tornarem mais solidários, pacíficos, tolerantes, empáticos, dotados de compaixão, de paciência, de generosidade, companheirismo e de amor pelos outros, não deixam de ser, como os outros, expressão e fruto da cultura, mas não há competição nestes domínios.

É lancinante pensar que o dever-ser que a cultura é, seja expressão de sabedoria. Principalmente, quando são os melhores, sempre em nome do que “escolhem”, ou “elegem” como melhor, a perpetrar o pior.

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