Hilário: se o moinho falasse, o que nos diria?!
Amiga: assim o soubéssemos interpretar, porque ele é um documento que fala à maneira dos documentos.
Hilário: ele parece dizer que viemos depois, com passos alheios, e que, sem pedir licença, nos sentamos onde o silêncio de outros repousava.
Amiga: talvez depois de terem rido alto ou chorado em segredo, talvez antes de perderem a memória.
Hilário: se houvesse um rascunho da história deste moinho que alguém tivesse encontrado...
Amiga: mesmo escrito por mãos que nunca souberam escrever, quem sabe?!
Hilário: ou rasgado por mãos que nunca souberam ler, quem sabe?!
Amiga: seríamos sempre confundidos com os que passaram por aqui sem entenderem o que é este lugar.
Hilário: a fragilidade está em quem pensa, em quem sente, em quem hesita. O mundo exige pressa e firmeza, depressa e bem, enquanto tu, querida amiga, tentas caminhar com cuidado, não com receio de tropeçar, mas como quem pisa em folhas secas sem querer fazer barulho.
Amiga: sinto que os pensamentos, neste lugar, pesam mais do que os passos, como se estivessem a ser disputados por forças contrárias umas às outras, e cada palavra tivesse de ser arrancada de memórias que são de outras pessoas.
Hilário: talvez aquela águia, ou será um grifo?, esteja a observar-nos e a ler o nosso pensamento através do nosso embaraço.
Amiga: não sei se sou eu que toco de mais nas coisas, ou se são as coisas que tocam de mais em mim.
Hilário: a mim dói-me não tocar em nada.
Amiga: agora não consigo tirar os olhos daquela águia, ou grifo, que não tira os olhos de nós.
Hilário: talvez nos esteja a ver de outro mundo, ou seja um sinal de que atingimos o limite, a fronteira que separa a vida da morte.
Amiga: como se houvesse fronteira entre o que é e o que já não pode ser.
Hilário: como se este lugar fosse a margem, a última, de algo que não veremos.
Amiga: não sei. Sinto que o tempo aqui parece ter parado para nos deixar pensar.
Hilário: ou para nos deixar partir.
Amiga: mas partir para onde?
Hilário: talvez não seja partir. Talvez seja só deixar de procurar. Ou deixar de fugir.
Amiga: então esse grifo, ou águia, veio dizer que já não precisamos de andar?
Hilário: ou que já não podemos. Que o caminho acabou e o que resta é o silêncio. E que o silêncio, amiga… também é uma forma de estar vivo.
Amiga: ou uma forma de estar quase. Quase…Talvez seja isso que somos: quase a partir, quase a ficar, quase a entender.
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