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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Sem dinheiro



Um belo dia encontrou-se sem dinheiro. Estava sozinho. O dinheiro não, ele. Como sempre. Mas dessa vez, pior.
Estava um belo dia. Como o mundo nunca lhe parecera. Dizer mundo significa a perspectiva da esquina da rua das pontas de cigarro no chão com o beco das ratazanas arroxeadas de fome, como barrigas de figos.
Não. Decididamente, não era uma perspectiva friorenta e emporcalhada. De nauseabunda, só a ideia de que rir implicava abrir a boca e arreganhar a taxa e de que respirar, só pelo nariz e o estritamente necessário.
Sentia-se tão impossível… que tinha vontade de rir, senão a bandeiras despregadas, pelo menos a bom rir.
Estava um belo dia. Como o mundo nunca lhe parecera. Mas inacessível.
Em algum lugar, da sua imaginação, havia fartura e muito desperdício.
E ele, sem dinheiro.
Excluído? Não. Sentia-se incluído na ideia de que tudo lhe era estranho . Qualquer coisa em que tocasse tinha dono. Achava que até as ratazanas de felpos baços, à míngua de lixo e de toda a espécie de porcaria e de dejectos, o miravam como um concorrente a temer.
Triste e injusta conjectura. Poucos sítios como aquele dispensavam serviços de limpeza e recolha de imundícies. Cada dia que passava a população de ratazanas ficava reduzida a metade. Sem estudo se concluiria que, dentro de uma semana escassa , e sem qualquer desratização sistemática, o último abencerragem deveria os derradeiros momentos de sobrevivência ao facto extremo de devorar cadáveres dos congéneres.
Bichos alimentam-se da própria decrepitude. O poeta diz que a vida é o triunfo sobre a podridão. A podridão não diz nada, mas é a vida. Em teoria e na prática. Quem o disse ainda não foi identificado, mas as autoridades de investigação prosseguem no zeloso cumprimento das funções que lhes são cometidas de documentarem a estória.
Ao mesmo tempo, sentia uma nova e estranha alegria. Uma lucidez excepcional mostrava-lhe quão artificial é a organização social e os direitos e os conceitos e os preconceitos. Descobrir motivos racionais de desprezo e de ódio dava-lhe uma estranha e perversa satisfação. O desprezo e o ódio injustificados são insuportavelmente nojentos. Mas se tiverem razão de ser, pelo menos, tornam-se suportáveis e talvez deixem de ser nojentos e talvez se tornem filosóficos e eticamente toleráveis.
Tudo lhe parecia imagem e representações destituídas de senso. Um filme, consigo dentro. Personagem que se movia dentro de um mundo de ideias blindadas. E começou a ver muitas coisas que nunca tinha visto.
Dons Quixotes a aparecer com demasiada frequência, mas uniformizados e lustrosos e aperaltados, cheios de compostura e autoridade. Polícias tipo guardas-florestais da floresta de cimento. Lenhadores tipo resineiros da floresta de cimento. Um primo (não era macaco) feliz, que já não via desde a última vez em que cantou ao sol o grande poema das árvores de cimento com telhados de vidro, em cujos ramos os humanos refugiam seus ninhos com mil cuidados.
Muitos outros…
E eu? Quem era eu?



quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Sim

Sim
A árvore de que o sonho tem alcance
Espectro do que se alguma vez foi
Real mas intocável será
Corpo de nãos atados
À espera como mãos
Que não recebem cuidados
Nem quando a espera desespera
Sim
Todos os medos infundados
Em troca de uma morte
Que se afronta
E nunca ocorrerá
Sim
Com mais leveza que o ar
A ave se levanta
Aos olhos da fadiga
Do que quer caminhar
A distância entre esse
Como se nada fosse
E o desejo incrível
De voar…


domingo, 1 de agosto de 2010

O Velha (XIV)

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Desde que se lembra, e até antes disso, deitou-se sempre com um irracional: o medo. Sabia que o medo era irracional, mas estava lá sempre. Às vezes parecia-lhe que o medo não estava e que em seu lugar se deitava a morte, naquele vazio inexplicável maior do que o medo, que ocupava mais de metade da cama. Quando isso acontecia, ficava acordado, alerta, pronto para fugir e gritar por socorro.
Do outro lado da rua, mesmo em frente, toda a noite, havia pessoas à espera que alguém pedisse socorro: era o quartel dos bombeiros. E, um pouco mais adiante, o posto da polícia.
Uma noite, pouco depois de, numa luta sempre desigual, ter sido vencido pelo cansaço e de, por fim, ter adormecido, acordou estremunhado com o toque da campainha. Eram cinco da manhã e estava escuro. Pelo intercomunicador perguntou «quem é?» e pelo vídeo-porteiro confirmou a presença de um vulto indistinto na escuridão. Uma voz arrastada, de alguém, homem ou mulher, com mais de oitenta anos, denunciava uma euforia perversa «ando há meio século à procura de um homem e tudo indica que, finalmente, o encontrei: esse homem és tu. Já posso viver com a consciência do dever cumprido».


quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Velha - XIII


Era alto e vergadiço como um salgueiro. Andava como se fosse gordo. Vestia-se como se o derradeiro inverno estivesse congelado no tempo. Falava mais depressa do que pensava e concluía sempre muito antes de chegar ao fim do raciocínio. Se fumava? Sim, fumava como uma chaminé e seguia o fumo até vê-lo… desaparecido. Nunca se tinha deitado com uma mulher. E sonhava escrever um poema.
No momento em que nasceu, sua mãe estava de pé e não o quis ver, alegando que estava morta. Foi um momento desumano, porque ela não morreu. A parteira compreendeu sem dificuldade as dores daquela mulher «também já fui assim!»-pensou, mas foi em vão que tentou compreender o choro do recém-nascido. 


quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Velha - XII



A agonia do Velha parecia interminável. Perguntava pelo Fernando Pessoa «onde estás Fernando? Ah, estás aqui. Estás parecido com uma fotografia que vem num livro, mas muito mais real. Tens meias brancas. Sempre achei que gostavas de meias tintas. Não sobra tempo para escrever. Passo a vida a viver e a sonhar. Talvez um dia me canse de viver e de sonhar e me entretenha a escrever. A escrever-te e a escrever-me. Se não morrer. Se no fim do sonho não estiver a morte». Dizia estas palavras num ritmo irregular e numa sequência algo obscura, aparentemente desconexas, mas ao reduzir a gravação a escrito, foi possível estabelecer, sem margem para dúvidas, a letra e o teor das últimas palavras que o Velha proferiu ainda em vida, como se já estivesse para lá de uma fronteira e o eco que se ouvia fosse numa língua tão desconhecida como o outro mundo.


domingo, 27 de junho de 2010

O Velha - XI




No momento da morte, o Velha agonizava profundamente… equivocado.  E toda a equipa liderada pelo médico Pedrinho se mantinha abismada num mutismo… de espanto. O Dr. Pedrinho soçobrava ao peso da memória de dezenas de moribundos, no leito de morte, como se quisessem despedir-se, olhando-o com estranheza,selando com o silêncio da morte palavras que teriam dito se o reconhecessem. Alguns fixavam-no e até pareciam acusá-lo de estarem a ser despedidos mas outros, nada disso.  
Apesar da insuportável dor, não queria sequer tentar impedir que lhe viessem à memória as últimas palavras de uma criança de quatro anos, que tinha sido colhida por um comboio, quando tentava colocar uma pedra sobre o carril. Não fosse a demora em estabilizá-la na linha férrea e não teria escasseado o tempo para retirar-se em segurança, com as duas pernas a salvo e vitoriosa da ousadia.
Entrou no bloco operatório, na tarde de um domingo de festa. Por todo o lado, a subida à primeira divisão dos Convictos Futebol Clube era festejada por multidões embriagadas. Os médicos de urgência mal tiveram tempo para ouvi-la dizer, numa voz que os fez arrepiar «mamã, vamos brincar?».
Passados minutos, o corpo estava frio. O Dr. Pedrinho sentou-se no canto da sala, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cara entre as mãos. Por fim, assoou-se e, recompondo-se, perguntou à Dr.ª Vitória «está a pensar no que vamos dizer e no modo como vamos dizer aos pais? Eles estão lá fora… talvez com esperança». A Dr.ª Vitória acenou com a cabeça, afirmativamente.


segunda-feira, 21 de junho de 2010

Não pretendo provar nada



Estou a falar para mim mesmo
Como se estivesse a falar aos outros
Não pretendo provar nada
Há coisas que tornam invisíveis
As que as rodeiam
Até coisas invisíveis
Que tornam invisíveis
As coisas visíveis
Que as rodeiam.

domingo, 20 de junho de 2010

O Velha - X


A rádio local dedicou um programa especial à morte do Velha. O Amante de Catástrofes fez questão de prestar homenagem a esse homem de quem lhe disseram três coisas: que lhe chamavam Velha, que se apresentava como Alberto Caeiro e que era pastor de transístores.  Abriu o programa com rajadas de metralhadora e, após um silêncio sepulcral, declarou, num tom declamatório «assalto e assassínio de um desconhecido».
Os dois repórteres, incumbidos de lhe trazerem notícias do Velha, foram as primeiras pessoas a ser informadas da sua morte, no hospital, onde se deslocaram para tentarem levá-lo ao estúdio para ser entrevistado.
Dois dias antes tê-lo-iam encontrado de perfeita saúde e teriam tido oportunidade de dar a conhecer um pouco da história da própria vida que ele fosse capaz de contar. Mas agora era tarde e ninguém poderia ajudá-los, nem com depoimentos. Por sua vez, as informações do hospital eram lacónicas. Até o nome que constava na ficha de internamento não era aquele pelo qual o Velha era conhecido. E diziam uma hora e uma data do falecimento, mas nenhuma referência ao nascimento, morada, naturalidade, ascendência…
Além disso, sabiam que tinha sido assaltado e agredido, depois das aulas à noite, a caminho de casa e que a polícia lavrou auto da ocorrência. As suas atenções, agora, estariam voltadas para a investigação e eventual descoberta do(s) autor(es) do(s) crime(s).