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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O livro de todo o conhecimento (VII)

Apeteceu-me dizer ao taxista para me deixar ali mesmo. Afinal, desde que vi Teresa a partir no táxi até ao susto de ver o taxista inanimado sobre o volante, nunca deixei de pensar no desaparecimento do meu carro e, na verdade, imensas outras interrogações me passaram pela mente. Até que ponto o meu fascínio por Teresa estava a toldar-me o raciocínio? Não estaria a levar demasiado longe os meus deveres profissionais ao propor-me acompanhá-la e protegê-la sem ser solicitado, baseando-me tão só na minha suposição de que ela corria perigo? Concretamente, o que é que eu sabia e como o soube? Tudo o que sabia me tinha sido carreado pela própria queixosa, Teresa, que nunca me consultara a sós e que, por estar incapacitada de se deslocar ao meu escritório, pediu que me deslocasse à sua residência. Aí, sempre acompanhada da enfermeira Cândida, foi-me narrando alguns factos. Tive sempre em especial consideração o pormenor, eventualmente não despiciendo, de nem todos os factos me terem sido narrados pela própria Teresa, uma vez que a enfermeira, obviamente com o assentimento daquela, me transmitiu boa parte deles. À primeira vista, tê-lo-á feito por me conhecer melhor do que Teresa e por esta lhe ter confiado o que aconteceu. Mas, agora, de repente, assaltou-me a dúvida. E o que eu sei resume-se, afinal, ao seguinte: Teresa foi atirada do terceiro andar, pelo marido, enquanto dormia. Teresa tem fortes suspeitas de que o marido esteja ligado ao mundo do crime e que pretendesse matá-la para herdar uma pequena fortuna e para ver-se livre de uma testemunha fulcral das suas actividades ilícitas, nomeadamente contra a Fazenda Nacional. Por outro lado, Teresa quase apostava que o marido e a empregada doméstica, a bela Ausenda, tinham uma parceria de cujos contornos imaginava o pior. De todas estas ocorrências/denúncias eu tinha tomado devida nota no bloco de apontamentos de que me fiz acompanhar para o efeito, na tarde chuvosa em que me desloquei a casa de Teresa. À noite, desse mesmo dia, tinha-me esquecido de desligar o telemóvel e, a meio de um filme de sexo e violência, na televisão, que me preparava para desligar, porque precisava urgentemente de escrever um poema, Cândida ligou-me.
- Boa noite! Peço desculpa se incomodo, Dr..
- Boa noite, Cândida! Esteja à vontade, mas fico preocupado…
- Depois do Dr. sair estive a falar com a Drª Teresa e só então nos lembramos de que há muita coisa delicada, digamos até, escabrosa, que temos de lhe contar.
- Sim. Tipo?
- Maus tratos, violações, masoquismo, aberrações sexuais…

sábado, 7 de novembro de 2009

O livro de todo o conhecimento (VI)

O taxista olhava-me incrédulo, sem responder. O que se passaria na cabeça dele? É evidente que eu não entraria num táxi que transportasse cães, como não me sentaria num sofá que tivesse sido usado por um cão, ou gato. E não era só pelo cheiro. Era pelo nojo. Estaria ele a ler-me o pensamento? Acredito que já me sentei em sofás e me deitei em lençóis por onde passaram bichos talvez até pestilentos. Se fosse a pensar no assunto a vida complicar-se-ia demasiado, sem necessidade. Há outras coisas em que pensar.
- Não, não transporto cães. É proibido.
- Então leve-me à Colina Verde, se faz favor.
Foram dez minutos de viagem relaxante junto à margem do rio Tâmega. Ao sair da primeira rotunda, a cem metros de minha casa, o táxi parou, em plena faixa de rodagem, sem deixar espaço para a circulação do trânsito. Eu ia no banco traseiro a olhar pela janela. Num magnífico espelho de água rebrilhava um sol intenso. Não estava à espera desta inopinada paragem. Olhei para o taxista e vi que ele tinha a cabeça pousada no volante e parecia-me inerte, morto. Naquele ponto a estrada era plana e a viatura, apesar de destravada, estava imóvel. Verifiquei que a caixa de velocidades estava engrenada. Coitado do homem! Que é que lhe aconteceu? Morreu? Lindo serviço. – pensei preocupado.
Saí para pedir ajuda, mas naquele momento não passava ninguém. A minha casa avistava-se dali. Com um assobio, chamei o Ás, o meu cão de guarda. E não só. Discreto, de pêlo curto, preto brilhante, com patas de fogo, corajoso e incorruptível, fiel ao dono, mas treinado para brincar com o inimigo. Pelos latidos, percebi que já me tinha no seu horizonte visual. Senti algum alívio.
O taxista estava a mexer-se e ouvi-o estrebuchar como se tivesse saído de um mergulho para respirar. Acorri, não fosse o homem mergulhar novamente com a cabeça no volante. Tartamudeou qualquer coisa: que estava com tanto sono que não era capaz de conduzir e se lhe levava o carro, de volta ao palácio da justiça.
- Então o transporte do cão está fora de questão? – Insisti.
Ele deteve-se a observar o Ás, que entretanto chegara e se pôs a farejá-lo. E condescendeu:
- Para onde queria levá-lo?
- Fiquei sem o carro. Roubaram-mo hoje mesmo. Preciso urgentemente de levar o meu cão a casa de uma pessoa que vive em Várzeas.
- Não participou à polícia?
- Não tive tempo.
- Consegue meter o cão na mala?
- Concerteza.
- Acha que o cão consegue localizar a viatura, ou o ladrão?

Cativo

Cativo de desejo e da fantasia
Que o não saber mas sinto
Narra e concede à poesia
Confesso a verdade e minto

Mas não engano ninguém
Que a mentira da poesia
Peculiar verdade tem
E quem quer a repudia

Mas se for só por desdém
Não é por sabedoria
E se não vier por bem
Não sabe o que desconfia.

sábado, 31 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (V)

Chegados ao átrio exterior do palácio da justiça, fomos inundados por um sol fagueiro e, pela primeira vez desde que a conheço, Teresa sorriu.
- Obrigada! – disse ela olhando-me nos olhos, enquanto a segurava pelos ombros, ajudando-a a entrar num dos táxis que estavam ali de serviço.
Teresa não quis que eu a acompanhasse a casa.
- Não estou só a querer preservá-lo de quebrar as suas regras de deontologia profissional. Afinal, é o meu advogado. Ambos sabemos o que isso implica. E não é justo que o deixe expor-se a tantos perigos por minha causa.
- Falamos sobre isso depois, Teresa. Deixe os perigos por minha conta. Sentir-me-ei culpado se lhe acontecer algum percalço na minha ausência.
Mas não se demoveu e deu indicações ao taxista para que seguisse. Eu não quis ser maçador e, assim que a vi partir, regressei ao local onde tinha estacionado o carro. A minha intenção era dirigir-me imediatamente para casa da Teresa. Assim que virei a esquina constatei, porém, que o automóvel não estava onde o tinha deixado.
A minha primeira reacção foi regressar a correr à praça do palácio da justiça e apanhar um táxi, para me levar a casa. Havia um único táxi, acabado de chegar. Ainda não tinha desligado o motor, quando perguntei:
- Faz favor, antes de arrancarmos, diga-me uma coisa: transporta cães?
- Perdão! – exclamou o taxista com estranheza.
- Transporta cães? – insisti.
- Onde estão os cães? – ironizou o taxista.
- Sim, ou não? Responda se faz favor.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (IV)

Não estivemos mais de meia hora no tribunal. O, ainda marido de Teresa, A. Carrancas, arguido no processo, continua a monte, sem que o Procurador da República dele haja notícia, boato ou denúncia de ter sido visto. Teresa cada vez mais sente que corre perigo de vida. Ela tem muita informação que poderia dar pistas à polícia sobre o paradeiro de A. Carrancas. Estranhamente, porém, até hoje, trinta dias após a tentativa de assassinato de que foi alvo, nenhuma autoridade de investigação criminal lhe colocou qualquer questão sobre essa matéria. Teresa tem andado muito perturbada. Vive aterrorizada, sem ser capaz de confiar na própria sombra.
Tenho tido imensas dificuldades em ganhar a sua confiança. Ela parece transmitir-me a todo o momento o receio de que o assassino ande por perto e que acabe por matá-la inapelavelmente. A ideia de contratar segurança ainda a deixa mais ansiosa. Na sua opinião, que me vai revelando a conta-gotas e cheia de hesitações, como se eu próprio fosse já ou pudesse tornar-me inimigo dela de um momento para o outro, A. Carrancas está ligado ao mundo do crime, inclusive crimes de sangue. A polícia não lhe deu quaisquer instruções ou aconselhou medidas, nem se propôs protegê-la minimamente do perigo acrescido em que ficou após a tentativa frustrada da sua morte.
As pessoas que Teresa contacta para lhe prestarem assistência, mal se apercebem da sua situação, dão desculpas esfarrapadas para o não fazerem. Teresa tem a noção de que elas temem represálias.
Até o serralheiro, contactado para mudar as fechaduras das portas, primeiro disse que sim, mas depois comunicou que necessitava também da autorização de A. Carrancas e que não incorreria no risco de se haver com esse personagem, cuja fama de ser cruel e vingativo corre mundo.
Quanto à empregada doméstica, Teresa ainda não compreendeu por que é que a polícia não a interrogou e não a constituiu arguida nos autos. Em seu entender, a empregada doméstica, contratada por iniciativa de A. Carrancas, há muito tempo que tem sido instrumento dócil dele, ou de algo mais sofisticado. Inicialmente, Teresa não se preocupou porque não desconfiava. Mas, agora, quanto mais pensa no que aconteceu, mais tem razões para suspeitar do envolvimento dela e de que possa fazer parte de alguma associação criminosa de que A. Carrancas seja, provavelmente, o cabecilha ou um dos cabecilhas.
As suas dificuldades de locomoção motivaram que a audiência com o Procurador da República tivesse lugar no rés-do-chão do Tribunal. Mesmo assim, Teresa precisa de descansar de cinco em cinco metros. Ainda não se habituou às canadianas e é com esforço hercúleo que avança pé ante pé. A melhor forma que eu encontro de ajudá-la é respeitar o ritmo dela e mostrar compreensão. Na realidade, ao vê-la avançar, eu assisto a um espectáculo de heroísmo e não tenho dúvidas de que ela, daqui a quinze dias, já será capaz de subir as escadas até ao piso superior, apoiada apenas no
corrimão.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (III)

Estava a disputar o último set quando vi entrar uma jovem numa cadeira de rodas empurrada por uma mulher bem vestida e calma, de farta cabeleira e uma touca branca. Enfermeira? -interroguei-me.
Parou de empurrar a cadeira e depois de trocarem algumas impressões entre elas, a mulher de touca branca rodou a cadeira de rodas para uma posição frontal relativamente à área do jogo. Agora já estava a reconhecer a mulher da touca branca. Era a mesma enfermeira, Cândida, que me tinha ajudado a recuperar de uma luxação gleno-umeral traumática.
Terminado o jogo, ao passar junto delas, apercebi-me que a enfermeira também me reconhecera:
-Bom dia! Como está?
-Tudo bem, obrigado!
Neste momento inclinei-me ligeiramente para a jovem na cadeira de rodas e cumprimentei-a. A enfermeira Cândida fez as apresentações da praxe «Dr. Veríssimo, ilustre advogado, eh,eh,eh!» «Drª Teresa, antropóloga, doutoranda».
Estendi a mão para dar um passou bem à Drª Teresa, mas ela nem se mexeu. Olhou-me com uns olhos brilhantes e afáveis.
-Não se preocupe, disse eu, eu compreendo, não tinha reparado.
-A Drª Teresa vai permitir que lhe fale neste assunto: está assim porque foi vítima de um crime grave.
-Como? –perguntei. A enfermeira Cândida olhou para obter aprovação da Drª Teresa para continuar.
- Quando ela estava a dormir, o marido atirou-a do terceiro andar para a rua.
Fiquei estarrecido. Olhei para Teresa, mas ela desviara o olhar para algum lugar estranho que a fez empalidecer e semicerrar os olhos de dor.
- Continua a praticar ténis? – prosseguiu a enfermeira, para desanuviar.
- Ah, sim! Agora menos. Só para manutenção.
Pousei a minha mão na de Teresa, que não esboçou nenhuma reacção.
- Tive muito gosto em conhecê-la. Lamento profundamente o sucedido. Gostava de ajudar, se puder!
- Depois entro em contacto com a enfermeira Cândida. Ainda tem o mesmo número?
- Sim, sim, é o mesmo. Tudo igual.
-Até logo.
-Até logo Dr., prazer em vê-lo.
-Obrigado, igualmente.

sábado, 24 de outubro de 2009

Sei

Sei o imenso sol laranja
Seio que roça a minha face
Aos poentes fatais

Me engano eu
Que nada mais
Me engana

O brilho dos teus olhos doces
O fogo entre nós
Funde-nos como se fosses
A boca da minha voz

Sei os
Teus seios
Na paisagem desfocada
Das respostas difíceis
Às interrogações da luz

Mas não sei o peso
Das palavras que digo
Depois de ser salvo
Por esse silêncio
Desconhecido.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O livro de todo o conhecimento (II)

Decidi estacionar o carro e seguir a pé. Num dia soalheiro e o palácio da justiça a cerca de quinhentos metros? Isso não era nada para um tipo como eu. Ou não tivesse jogado ténis até aos vinte e cinco anos e ganho alguns torneios. Ah!Ah!Ah! Aliás, foi no ténis que conheci a Teresa. De uma beleza espampanante e, ao mesmo tempo, de uma modéstia e de uma inteligência provavelmente inexcedíveis, segundo os meus padrões, claro. Assim a vi logo no primeiro contacto e essas impressões perduraram e foram sendo confirmadas e ultrapassadas posteriormente com o aprofundamento da nossa relação. Mesmo que tentasse, não seria capaz de disfarçar a admiração que senti por ela desde o princípio e que ela, a cada momento, mais me inspirava. E o fascínio? O respeito por uma mulher que eu, obviamente, idolatrava? Chamar cegueira a esta paixão pode ser um jogo de palavras mas não o julgo supérfluo.
Teresa estava avisada do meu atraso. Quando cheguei, ela esboçou um compreensivo sorriso e disse-me que a funcionária do tribunal já tinha chamado por nós, mas que lhe explicara a razão do atraso e que este seria breve. A funcionária aguardou que eu chegasse.
A nossa comparência no tribunal estava relacionada com um processo-crime em que Teresa era vítima de violência doméstica. E fico por aqui por causa do segredo de justiça.