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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Tempo de viver

Nada há que possa levar

Nenhuma verdade no alforge

Nenhuma fantasia disfarçada

Nenhuma amargura predileta

Nenhuma vontade frustrada

Nem ódio de estimação

Ou alegria

Nada

E não é por prémio

Sorte de paixão

Por castigo ou dever

Que nada levarei

Mas também nada

Nem mulher

Que tanto adorei

Me levará

Porque não irei

Estarei ausente

Da fortaleza

Da cidade morta

Sem me render

Isso eu sei

Baixo os braços

Ao vento do planalto

Que sopra sem perceber

Os passos em sobressalto

Dos escaravelhos

No momento de ceder

Como quando velhos

Sem alternativa acaba

O tempo de viver.

sábado, 12 de novembro de 2022

A mulher dos meus sonhos

A mulher

É a mulher dos meus sonhos

Indefinida e holista

Como nenhuma outra

Existe em muitas

Inúmeras imensas

E como é bom saber isso

Apesar de doloroso

Não há como fingir

Não há como ignorar

As pérolas

O caleidoscópio dos meus olhos

A mulher dos meus sonhos

Em cada uma que passa

Diante da lente natural

Dessa realidade virtual

Como num desfile

De memórias falsas

Mas mais relevantes

Do que as verdadeiras

Não é universal

E tem tanto de sonho
que é mais real
sob as amendoeiras
em flor.



Arte de bem marear

Tudo muda quando me olhas

Pelas estrelas que aprendi

A tomar como bússola

Na solidão do mar 

Sem ti

Tudo se transfigura

E me passa pela cabeça

Poder estar de volta

A um lugar vazio

Aonde vejo chegar

Uma réstia de pássaro

Caído

Por ter parado

No ar

Sobre o paraíso

E me entregasse à justiça

De te desejar

Sem nada mais em mente

Ao ver-te à minha frente

E acreditar.

 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Ficção e realidade

Ouvi dizer que a guerra é para ti

Como se fosse uma telenovela

Uma ficção muito pobre e mal feita

Que já verteste mais lágrimas a ver filmes

Que já não distingues a ficção da realidade

Que até já chegaste a ver mais realidade na ficção

Do que na realidade em direto

Que não estás preparado para entender

Senão o que alguém te explica

De um modo que não te implica.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Com ódio por amor ou com amor por ódio

Que dizes

Em que língua

Com que léxico

Sabe-lo tu?

Nem eu

Será a língua dos ventos uivantes

Ou o léxico dos cavaleiros inebriados?

Parece mais lume do que água

A despenhar-se sem asas

Sem o azul das aves

Que se elevam como cinzas

Para o cume da mágoa

Que é ser assim

Ouço-te onde estiveres

Até onde estiver o significado

Do teu riso

De uma desordem que acontece

E não almejas

Nem tudo se constrói com palavras

Nem com o que desejas

Mas a destruição é uma constante

Quando olhamos para o que fizemos

Com amor ou ódio

E vemos que não resulta à letra

Que o amor ou ódio não estão lá

Vemos manifestações de ignorância

De um poder de tijolos falsos

A destruição é manifestação de poder

E a resposta é mais destruição

Desse poder.

 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Se a pedra ouvisse

Esteja onde estiver

Faça o que fizer

Pense o que pensar

Diga o que disser

Tenha o que tiver

Sinta o que sentir

Está onde não estou

Estou onde não está

A pedra a ouvir

Se ao coração falasse

Diria mil poemas

À tentativa de possuir

Outros mil ao sentir

A falta

Muitos mais ao engano

Que há nisso tudo

E no que falta sentir

Que nunca é de mais

Se for beleza

Por mais que confunda

A céu aberto

Até o desejo doer

Na cava profunda

Da sombra suave

De castelos de areia

Diria mil tolices

Às flores por perto

Sem fazer ideia do tempo

Sem sepultura

Voltar para trás

Aos gritos

Para fazer a vontade

Aos versos aflitos.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Racionalidade e inteligência

Quando perguntamos para que serve a filosofia, já estamos a filosofar.

A filosofia é a racionalidade humana a operar num ambiente de manifestação de inteligência, da própria racionalidade. E como acredito que não existe irracionalidade, nem nos números irracionais, porque é fruto da racionalidade, distinguiria a faculdade da racionalidade da faculdade da inteligência.

A racionalidade como função biológica, diria, inerente à biologia, talvez seja dada e tão inevitável como a própria vida. Mas a inteligência é um estado de pensamento complexo, um processo que se desenvolve, agrega e transcende de cada vez que vê e se revê e reflecte e que consegue ter de si própria algum tipo de imagem. Ela instrumentaliza tudo, incluindo as memórias e as conjecturas e não é sua menor qualidade tentar evitar, senão impedir, ser instrumentalizada. Isto coloca-a numa espécie de abstracção, fora do tempo e do espaço, conquanto esteja no tempo e no lugar de um corpo.

Feitas estas considerações para estimular o pensamento, vejo a filosofia como o modo privilegiado de manifestação da inteligência, não necessariamente de inteligência, no sentido de que a inteligência é um processo e a última inteligência é que é inteligente.

Diferencio assim racionalidade de inteligência. Aquela é um mecanismo conatural e constante, diria variável independente, esta é um processo evolutivo e profundamente dinâmico, dependente de imensas variáveis, mais ou menos controláveis, inelutáveis ou acidentais, quer conjunturais, quer estruturais, que “aprende” sempre, independentemente das situações bio culturalmente favoráveis ou desfavoráveis, mas essa aprendizagem é muito variável e inconstante e pode ser mais ou menos ampla e profunda, nomeadamente, a aprendizagem com os erros.

A filosofia é a inteligência em acção. Se fosse uma máquina, começaria por se desmontar a si própria, mas não é e nunca será uma máquina, porque a inteligência não pára, não estaciona, não está em sítio nenhum embora funcione num sistema de conexões neurológicas que nunca repousam.

Ora, a inteligência em acção é a racionalidade a operar num espectro de possibilidades entre as quais, inelutavelmente, escolherá (não escolher também é escolher). Sem consciência, está arredada a possibilidade de escolha. A consciência é o que pode responsabilizar. Mas ninguém tem acesso a ela. O próprio indivíduo é colocado como juiz em causa própria. De pouco ou nada lhe adiantará ajuizar como ajuizaria o Deus absoluto que sonda e conhece as consciências melhor do que elas próprias.

«Atreve-te a pensar por ti próprio». Em reforço de Kant, diria que “pensar é próprio de ti e só podes pensar por ti próprio. A tua consciência é o último tribunal de recurso”.

Inteligência e sentido de dever aparecem-me unificados e radicados na consciência, sempre que se trata de acção. Se a este sentido de dever chamar lei moral, terei aqui mais um determinismo da acção (não estritamente determinismo natural, porque grande parte dos nossos processos biológicos escapam à nossa consciência), que deriva da faculdade da racionalidade.

Já a doutrina cristã do pecado reconhecera função chave e crucial ao reduto da consciência, conferindo-lhe a primazia nos processos de imputação de culpa.

Talvez por necessidade de coerência doutrinal e teológica, a doutrina do perdão dos pecados, mantinha Deus na competência de exclusivo e absoluto perscrutador da consciência de cada um, de omnisciente e infinitamente misericordioso e, ao mesmo tempo, exonerava-o de qualquer responsabilidade onerando a consciência do indivíduo pelos seus actos.

Estes problemas têm sido, aliás, transversais aos sistemas judiciais da cristandade, que têm lidado com a questão da culpa subjectiva, colocando-a entre parêntesis, ou simplesmente, fundando-a no dever ético-social e jurídico de conformação das condutas com a lei.

Do ponto de vista do indivíduo, todavia, o problema subsiste porque é iniludível a clivagem, ou hiato, que existe entre aquilo que é o dever-ser social, colectivo, heterónomo e aquilo que é o dever-ser pessoal, individual, autónomo, os quais, por muitas razões, podem não coincidir e até conflituar, sendo que, a última instância, como já referimos, é deste (sobreleve embora o problema do balanço que fará entre as sanções e a vantagem da obediência).

A transição do sistema teocrático milenar até à modernidade e contemporaneidade foi brutal mas nem por isso assimilada e integrada no “modus vivendi”, como soía.

A ideia de Deus é muito difícil de abandonar, ou de substituir, porque a ideia de Deus reúne tudo o que há de bom, bem, justo, misericordioso e, se não existe, devia existir. Vamos continuar a lutar para que exista Deus.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Banhos celestes

Sabendo nós que o íntimo é grande

E o divino é humano

O pensamento é pequeno

E o sublime é mundano

Vemos uma margem irresistível

A atravessar o rio

A erguer-se nua

A pentear-se para as águas

Como uma república na rua 

Aves fogem à passagem

Como a noite se enche de latidos

E o destino de verdades intemporais

Num regaço de falsos pruridos

A nossa sorte

É que ela

Talvez impura

Toma banhos de rosas

Nos nossos sentidos

Culpados

Da sua formosura.