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terça-feira, 25 de outubro de 2022

Racionalidade e inteligência

Quando perguntamos para que serve a filosofia, já estamos a filosofar.

A filosofia é a racionalidade humana a operar num ambiente de manifestação de inteligência, da própria racionalidade. E como acredito que não existe irracionalidade, nem nos números irracionais, porque é fruto da racionalidade, distinguiria a faculdade da racionalidade da faculdade da inteligência.

A racionalidade como função biológica, diria, inerente à biologia, talvez seja dada e tão inevitável como a própria vida. Mas a inteligência é um estado de pensamento complexo, um processo que se desenvolve, agrega e transcende de cada vez que vê e se revê e reflecte e que consegue ter de si própria algum tipo de imagem. Ela instrumentaliza tudo, incluindo as memórias e as conjecturas e não é sua menor qualidade tentar evitar, senão impedir, ser instrumentalizada. Isto coloca-a numa espécie de abstracção, fora do tempo e do espaço, conquanto esteja no tempo e no lugar de um corpo.

Feitas estas considerações para estimular o pensamento, vejo a filosofia como o modo privilegiado de manifestação da inteligência, não necessariamente de inteligência, no sentido de que a inteligência é um processo e a última inteligência é que é inteligente.

Diferencio assim racionalidade de inteligência. Aquela é um mecanismo conatural e constante, diria variável independente, esta é um processo evolutivo e profundamente dinâmico, dependente de imensas variáveis, mais ou menos controláveis, inelutáveis ou acidentais, quer conjunturais, quer estruturais, que “aprende” sempre, independentemente das situações bio culturalmente favoráveis ou desfavoráveis, mas essa aprendizagem é muito variável e inconstante e pode ser mais ou menos ampla e profunda, nomeadamente, a aprendizagem com os erros.

A filosofia é a inteligência em acção. Se fosse uma máquina, começaria por se desmontar a si própria, mas não é e nunca será uma máquina, porque a inteligência não pára, não estaciona, não está em sítio nenhum embora funcione num sistema de conexões neurológicas que nunca repousam.

Ora, a inteligência em acção é a racionalidade a operar num espectro de possibilidades entre as quais, inelutavelmente, escolherá (não escolher também é escolher). Sem consciência, está arredada a possibilidade de escolha. A consciência é o que pode responsabilizar. Mas ninguém tem acesso a ela. O próprio indivíduo é colocado como juiz em causa própria. De pouco ou nada lhe adiantará ajuizar como ajuizaria o Deus absoluto que sonda e conhece as consciências melhor do que elas próprias.

«Atreve-te a pensar por ti próprio». Em reforço de Kant, diria que “pensar é próprio de ti e só podes pensar por ti próprio. A tua consciência é o último tribunal de recurso”.

Inteligência e sentido de dever aparecem-me unificados e radicados na consciência, sempre que se trata de acção. Se a este sentido de dever chamar lei moral, terei aqui mais um determinismo da acção (não estritamente determinismo natural, porque grande parte dos nossos processos biológicos escapam à nossa consciência), que deriva da faculdade da racionalidade.

Já a doutrina cristã do pecado reconhecera função chave e crucial ao reduto da consciência, conferindo-lhe a primazia nos processos de imputação de culpa.

Talvez por necessidade de coerência doutrinal e teológica, a doutrina do perdão dos pecados, mantinha Deus na competência de exclusivo e absoluto perscrutador da consciência de cada um, de omnisciente e infinitamente misericordioso e, ao mesmo tempo, exonerava-o de qualquer responsabilidade onerando a consciência do indivíduo pelos seus actos.

Estes problemas têm sido, aliás, transversais aos sistemas judiciais da cristandade, que têm lidado com a questão da culpa subjectiva, colocando-a entre parêntesis, ou simplesmente, fundando-a no dever ético-social e jurídico de conformação das condutas com a lei.

Do ponto de vista do indivíduo, todavia, o problema subsiste porque é iniludível a clivagem, ou hiato, que existe entre aquilo que é o dever-ser social, colectivo, heterónomo e aquilo que é o dever-ser pessoal, individual, autónomo, os quais, por muitas razões, podem não coincidir e até conflituar, sendo que, a última instância, como já referimos, é deste (sobreleve embora o problema do balanço que fará entre as sanções e a vantagem da obediência).

A transição do sistema teocrático milenar até à modernidade e contemporaneidade foi brutal mas nem por isso assimilada e integrada no “modus vivendi”, como soía.

A ideia de Deus é muito difícil de abandonar, ou de substituir, porque a ideia de Deus reúne tudo o que há de bom, bem, justo, misericordioso e, se não existe, devia existir. Vamos continuar a lutar para que exista Deus.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Banhos celestes

Sabendo nós que o íntimo é grande

E o divino é humano

O pensamento é pequeno

E o sublime é mundano

Vemos uma margem irresistível

A atravessar o rio

A erguer-se nua

A pentear-se para as águas

Como uma república na rua 

Aves fogem à passagem

Como a noite se enche de latidos

E o destino de verdades intemporais

Num regaço de falsos pruridos

A nossa sorte

É que ela

Talvez impura

Toma banhos de rosas

Nos nossos sentidos

Culpados

Da sua formosura.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Falar com paixão

A paixão pelos livros existe e tentar explicá-la pode ser um desafio muito interessante, quando percebemos que é uma paixão muito secreta e estranha, até por dizermos que é paixão, em vez de lhe darmos outro nome.
Desde ser de tanta subjectividade que dificilmente se conceberá que alguém trate da paixão pelos livros sem ser apaixonado pelos livros, até à suspeita de que não haverá duas paixões iguais pelos livros, ou sequer parecidas, a paixão pelos livros é uma boa aproximação aos livros enquanto arte de tentar revelar e descrever e explicar paixões, esse reduto de subjectividade que alguns se atrevem a objectivar, acreditando e contando com alguma possibilidade da linguagem para o comunicar.
Cada paixão é única e, muitas vezes compreensível a partir, não de quem a vive, mas da interpretação que dela faz.
É problemático, para não dizer ilegítimo, falar de paixões sem aceitar entrar e falar das próprias paixões, como se pudéssemos falar, em abstracto, de paixões concretas.
Duvido que haja paixão sem uma narrativa, embora nem sempre haja uma narrativa disponível e, muitas vezes, seja até impossível uma narrativa verdadeira de uma paixão.
Teço estes pensamentos ao pensar que fui e sou apaixonado pelos livros e que, ainda hoje, ao tentar reconhecê-lo e explicá-lo a mim mesmo, me surpreendo com a dificuldade de fazer-me entender o que é isso.
Se nem todas as paixões têm o seu quê de conflituosas (conflito interior), há paixões que o são muito e colocam o indivíduo num campo de batalha em que é invariavelmente vencido. Talvez por isso, há quem tenha como lema precaver-se de paixões e quem nem tenha de o fazer, porque não sabe o que é.
Os livros entraram na minha vida não à força, como a catequese, as orações, a escola, a cana da Índia, a palmatória, a polícia, mas com a sedução de poder rejeitá-los ou pegá-los a meu bel-prazer.
Quanto à catequese, escola, polícia, não vi alternativa à coerção. Quanto aos livros, nunca desisti de pensar que, enquanto não ler um livro, não sei o que ele encerra, e porque aprendi a namorar os livros muito antes de saber o que é amá-los, percebi que os livros são inesgotáveis fontes de prazer, por mais que nos revelem a escala que é preciso ter em mente, quando lemos.
E se esse namoro era do mais estranho e engraçado, para não dizer infantil, e envergonhado, que há, o amor ainda o é mais.
Mas como passar bem sem o que se ama?
Quem quer ver-se livre do que ama?

sábado, 8 de outubro de 2022

Completa escuridão

Ao trovão poderoso

Na floresta desconhecida

Encontraram refúgio numa gruta

Esbaforidos pelo tumulto da fuga

Na completa escuridão

Tatearam sem se verem

Algo descomunal

Que respirava como dois animais

E tremia como se fosse dar um salto

Estavam a cair dentro

De um poço mais

Tudo o que ficava para trás

Não os preocupava nada

E as consequências reais

Andavam longe do seu pensamento

Até que sucumbiram ao sono

E tiveram sonhos iguais.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Amantes

Para junto dela

Corre ao encontro

E todos os caminhos vão dar

Ao acampamento

Por onde passa

Todos os sinais indicam

A barraca onde não cabe altivez

E é recebido com honras

De amante

Que enfrentou desventuras

Para estar junto dela

No seu leito macio

Munido desse triunfo

De não se submeter

À triste velhice.


domingo, 2 de outubro de 2022

Metáforas

Os que fecharam as portas

Deixaram o silêncio de fora

A vadiar penitente

Até encontrar a chave das fechaduras

E tomar conta de tudo

Antes que as portas se abrissem com o vento

O silêncio saiu

De fora para dentro

A vadiar como um rio novo

A que não se chamaria rio ainda

E talvez não venha a ser

Senão metáfora de deus.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A importância dos livros

Há que enfatizar, por um lado, a inegável influência e importância do livro na consolidação e desenvolvimento das culturas, nomeadamente a ocidental e, por outro lado, a hipótese de que o livro não tem tido a atenção e o fervor de tantos adeptos quanto merecia.
O fenómeno da escrita, mormente da divulgação do conhecimento através do livro, tem sido visto por muitos estudiosos como um factor decisivo do desenvolvimento da civilização e do conhecimento, ainda que o livro, como tudo o que é instrumental, sirva para quase tudo aquilo que pode ser instrumentalizado por ele e nem tudo é consensual ou pacífico.
Aqui, não obstante, encontramos mais um motivo, ou razão, para preservarmos o livro como meio privilegiado de cultura e de diversidade, mas mais ainda de liberdade e de comunicação.
O papel activo que o livro exige ao leitor, só por si, é um indicador de que quem o lê não o faria se não lhe encontrasse bastante interesse (independentemente de alguém considerar que esse interesse é grande ou pequeno ou nulo).
Durante muito tempo, o fascínio pelo fenómeno da escrita foi de tal ordem que tudo passou a girar em torno dela até atingir uma estereotipação e uma estilização que a transformou em algo valorizado por si próprio, pela sua dificuldade e poder simbólico de uma elite de especialistas, mais como uma arte e um domínio dos deuses, para espectáculo atordoador dos leigos analfabetos.
O caso não era para menos.
O poder das palavras institucionalizadoras, imperativas, prescritivas, declarativas, que deferem ou indeferem, que ordenam e impõem, que decidem o que as coisas são, sempre teve e continua a ter uma imensidão de devotos rendidos à sua magia transformadora das realidades que mais interessam a todos.
Curioso é que este poder das palavras tenha sido tanto maior, e assim continua a ser, quanto mais hermético, e acessível apenas a uma elite, for o seu código. De tal modo que, por exemplo o latim, não sem muita relutância, só recentemente vem sendo substituído, em actos oficiais e religiosos, pela língua viva.
A vulgarização do livro esteve associada à disseminação do acesso ao poder que o livro conferia e, de vários modos, a elite “do poder do livro” reagiu contra isso. Mas, como seria de esperar, à medida que o poder do livro se disseminou também passou a ser menor a atractividade motivada por algo que estava associado ao simbolismo do livro e não ao valor intrínseco do seu registo.
A desmistificação do saber livresco, por exemplo, é muito recente e foi uma enorme conquista da cultura, mas só foi possível, suponho eu, pela divulgação e acesso generalizado ao livro como meio privilegiado, senão único, de acesso a cultura e a conhecimentos relevantes, para além do senso comum.
Acontece, ainda assim, que o livro é visto, umas vezes, como meio de realização de objectivos expressivos e discursivos e narrativos e comunicativos, inclusivé científicos, líricos, críticos, filosóficos, jurídicos, técnicos, etc., outras vezes, como fim em si mesmo, ou simplesmente como uma mercadoria, à boleia da inquestionável reputação do livro, na sua função de “transcendência” a que temos acesso se os lermos, mais do que se alguém os ler para nós, ou por nós.

sábado, 24 de setembro de 2022

O que é sentir

Sonhar

E só depois dizer

O que acontece

Dizer

E só depois ver

O que é difícil

Fazer

E só depois saber

As palavras que mais usas

Poder

E só depois deixar

De querer

Escrever

E só depois sentir

Que o prazer também se escreve

Com prazer

E só depois interrogar

O que é sentir

sem doer.