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terça-feira, 23 de novembro de 2021

Sem mãos a medir Blandina

Sem mãos a medir
Blandina desdobrava-se
A colocar nas mesas belas canecas
A tarde toda
Debaixo da árvore frondosa
Que abrigava a praça do sol
Eu ficava a saborear as grandes distâncias
Até ir embora
Guiado por alguma luz interior
Ou carregado de dúvidas
E de pensamentos assanhados
Como companhia no longo caminho
Pelo crepúsculo dentro
Tudo o mais
Comida e bebida
Era quase irrelevante
A gula contentava-se com pão
Um punhado de azeitonas pretas
E assim se fazia noite
Até cair de sono
Ou já a sonhar irresistivelmente
Com blandinas descalças
(ou eram joias belas?)
Dançarinas de cabelos compridos
(ou eram algas comestíveis?)
Que cantavam num jardim
(ou eram sereias?)
Tão perto de mim
Que as desejava ardentemente
Ou tão afastadas
Que nunca lhes poderia tocar
O amor era assim
Tão inclemente no inverno
Como no verão
Mas não era irrelevante
Como tudo o mais
Simplesmente
Quando menos esperava
Em trocas quase reais
De prazeres de outro mundo
Por nada que não saibais.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Sentado a escrever

O homem sentado a escrever
Talvez seja uma ilusão
Provocada pela falta de álcool
Espectáculo para ninguém
Talvez esteja a ver a partir de dentro
Estrelas que alguma vez ignorou
A escrever uma árvore
Mais espectacular do que ele próprio
Que presume que as árvores crescem
Só até certo ponto
Não as vê a crescer como a lua
No topo da ira do adamastor
Um sol não se compara
A uma tertúlia de corvos
Depois de assaltarem a farmácia do faraó
Um espectáculo medonho
Não se compara à escrita
Nem à fala
Nem à leitura
O homem sentado a escrever
É uma corrente
Tudo o mais são âncoras
Velas cascos flutuantes
Aeronaves
Que buscam sentido e consistência
Para a contabilidade dos anseios
De cada vez que a vida é contada
Não conta mais nada
E tudo o mais se salva.

domingo, 7 de novembro de 2021

O bem e o mal

Não existe espaço para outro paradigma que não seja o de bem e mal? Então a cultura ocidental, judaico-cristã, não deixou espaço para mais nada? E o tempo que é preciso para o comum dos mortais perceber isso? Torna-se tão longo que é quase garantido que, até ver, não haverá nada de novo. É como aqueles estudos que ninguém tem paciência ou interesse para ler, que muitos dizem ter lido, que fazem sucesso, que só cem anos depois algum excêntrico descobre que está errado e que, na realidade, é a ciência a progredir.

Ocorre-me pensar que o bem e o mal, enquanto realidades, comportamentos, condutas humanas, referidos a um padrão de moralidade, apesar de, ou por causa de, ser sobretudo prescritivo e impositivo heterónomo, a que as religiões, à falta de melhor, deram carácter totalizante, senão absoluto, constitui um verdadeiro desafio à inteligência quando tem de julgar se o mal é o que amamos, e se não tudo, e se o bem pode ser o que odiamos, e se não tudo.

O amor e o ódio têm sido tratados, pela política e pelas ciências, como algo da competência de poetas e romancistas, ou seja, como algo imaginário, que não tem catalogação na lista canónica dos instintos, ou da fisiologia, mais focada no aparelho digestivo e outras mecânicas anatómicas.

Mas é claro que, numa lista de prioridades, até pela atenção e preocupação que lhe dispensa a cultura em geral, o amor e o ódio estão à frente do resto.

Nada é mais importante para o homem que o amor e o ódio. As guerras não se travam por causa do bem e do mal. Nas democracias as campanhas não debatem o bem e o mal. Nem nos parlamentos. Ninguém mata por causa do bem e do mal. Nem dá a vida. Nas religiões o bem e o mal tem a ver com deuses e demónios, não tem a ver com pessoas. Nos tribunais, o bem está de um lado, o mal está do outro. Na economia, bem é valor com expressão pecuniária.

Pois bem, enquanto não encararmos a realidade do amor e do ódio como é necessário ou, pelo menos, conveniente, estaremos a negligenciar o maior problema da humanidade, a ignorar o que não pode ser ignorado, sob pena de sermos continuamente derrotados pelo que não controlamos. As guerras não se travam por causa do bem e do mal. Ninguém quer saber do bem e do mal, a não ser os filósofos e os teólogos e os clérigos e os religiosos.

domingo, 31 de outubro de 2021

Dá largas à imaginação

Dá largas à imaginação
Deixa-te tocar pela magia de uns olhos
Ainda que sejam falsos
A magia não
Pelo arrebatamento das palavras
Ainda que sejam uma gravação
O arrebatamento não
Deixa-te seduzir e envolver pelo cenário
De paz e de amor que almejas
Ainda que sejam uma miragem
A sedução não
Deixa-te levar pelas promessas de outro mundo
E pelas flores efémeras
Ainda que sejam para assear campas
As promessas não
Como se alguém te subornasse
Com bolos
E o suborno não.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Se puderes, se não, tenta dizer isso a alguém

Se tivesses, ou se tiveste, ou se tens, de te posicionar, mesmo que de uma varanda para o mundo, e confessar, de um lado, por exemplo, do lado dos ricos ou do lado dos pobres, diz-me qual é o teu lado, e dir-te-ei o que penso.

Se puderes, mantém-te ferozmente independente dos grupos de interesses, que cercam e permeiam os comércios e os favores políticos, que não respeitam as regras do jogo democrático, que tentam ganhá-lo a todo o custo, sem pejo nenhum em fazerem batota.
Se puderes ser independente aceitarás o risco e o desafio de seres tratado com hostilidade e desconfiança por todos os que tu olhas com humana compreensão, mas não com condescendência nem com negligente desatenção.
Se puderes ser independente não serás líder de nada, nem de ninguém e, na melhor das hipóteses, tentarás ser líder de ti mesmo, porque os líderes são uns tipos que têm poder.
Se puderes recusar a condição de obediência e sujeição que te impõem como se te oferecessem vantagens, não enjeites reflectir sobre quanto em ti é feito de recusas e de submissões, de iniciativas e de liberdades.
Se puderes, investiga e desafia sem medo e sem favores e, se tiveres que te sacrificar, ainda que o sacrifício seja alto, é por um valor e um bem eminente, que importa a todos e que não está disponível nos mercados, nem nos purgatórios.
Se puderes, que sejas uma inspiração para os valentes, que não sabem o que fazer, e para os fracos, que adoptam a solução mais cómoda e imediatamente mais plausível na perspectiva do grupo dentro do qual negoceiam protecção e recompensas, em troca de vassalagem.
Se não puderes, interroga-te sobre a tua impossibilidade, sobre as causas dessa impossibilidade e tenta dizer isso a alguém.
Nunca é tarde para abrirmos os olhos e constatarmos que o coração serve para muito mais do que bombear sangue para as artérias e que as nossas preocupações devem alargar-se até àqueles que trabalham e lutam por liberdade, direito e justiça.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Não somos completamente cegos


Passamos pelas coisas
E vemos pouco
Por isso não somos completamente cegos
E passamos pelas ruas
E pelos dias
Como se fossem iguais
Se víssemos muito
Nunca seria suficiente
Mas seria sempre mais
Do que gostaríamos de ver
Para caçar Pokémons
Para escapar do Covid
E de gases com efeito de estufa
Salvem-se os limpa fossas
E que os combustíveis fósseis
Lutem pela nossa sobrevivência.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O colapso


Se estamos

À beira do colapso

Não o vemos

É como deus

Ninguém pode ver o colapso

Se alguém o visse morreria primeiro.


terça-feira, 5 de outubro de 2021

Linguagens e música


As linguagens são uma maquinaria prodigiosa            

com milhões de anos

que esventra moléculas com a mesma apetência

com que chega às estrelas na ponta de um tubo

e saem de realejos avariados                                                                                               

em músicas que ninguém aprende a tocar

senão mais tarde

quando alguém reparar                                                                     

que nada tem conserto

e der um concerto

que nós ouvimos de modo incipiente

sonâmbulos delas

nas mãos delas

possuídos por elas

ébrios delas

loucos que pensam que as têm na mão

e que as fazem aliadas

mas não.