Desde que se lembra, e até antes disso, deitou-se sempre com um irracional: o medo. Sabia que o medo era irracional, mas estava lá sempre. Às vezes parecia-lhe que o medo não estava e que em seu lugar se deitava a morte, naquele vazio inexplicável maior do que o medo, que ocupava mais de metade da cama. Quando isso acontecia, ficava acordado, alerta, pronto para fugir e gritar por socorro.
Do outro lado da rua, mesmo em frente, toda a noite, havia pessoas à espera que alguém pedisse socorro: era o quartel dos bombeiros. E, um pouco mais adiante, o posto da polícia.
Uma noite, pouco depois de, numa luta sempre desigual, ter sido vencido pelo cansaço e de, por fim, ter adormecido, acordou estremunhado com o toque da campainha. Eram cinco da manhã e estava escuro. Pelo intercomunicador perguntou «quem é?» e pelo vídeo-porteiro confirmou a presença de um vulto indistinto na escuridão. Uma voz arrastada, de alguém, homem ou mulher, com mais de oitenta anos, denunciava uma euforia perversa «ando há meio século à procura de um homem e tudo indica que, finalmente, o encontrei: esse homem és tu. Já posso viver com a consciência do dever cumprido».
Era alto e vergadiço como um salgueiro. Andava como se fosse gordo. Vestia-se como se o derradeiro inverno estivesse congelado no tempo. Falava mais depressa do que pensava e concluía sempre muito antes de chegar ao fim do raciocínio. Se fumava? Sim, fumava como uma chaminé e seguia o fumo até vê-lo… desaparecido. Nunca se tinha deitado com uma mulher. E sonhava escrever um poema.
No momento em que nasceu, sua mãe estava de pé e não o quis ver, alegando que estava morta. Foi um momento desumano, porque ela não morreu. A parteira compreendeu sem dificuldade as dores daquela mulher «também já fui assim!»-pensou, mas foi em vão que tentou compreender o choro do recém-nascido.
A agonia do Velha parecia interminável. Perguntava pelo Fernando Pessoa «onde estás Fernando? Ah, estás aqui. Estás parecido com uma fotografia que vem num livro, mas muito mais real. Tens meias brancas. Sempre achei que gostavas de meias tintas. Não sobra tempo para escrever. Passo a vida a viver e a sonhar. Talvez um dia me canse de viver e de sonhar e me entretenha a escrever. A escrever-te e a escrever-me. Se não morrer. Se no fim do sonho não estiver a morte». Dizia estas palavras num ritmo irregular e numa sequência algo obscura, aparentemente desconexas, mas ao reduzir a gravação a escrito, foi possível estabelecer, sem margem para dúvidas, a letra e o teor das últimas palavras que o Velha proferiu ainda em vida, como se já estivesse para lá de uma fronteira e o eco que se ouvia fosse numa língua tão desconhecida como o outro mundo.
No momento da morte, o Velha agonizava profundamente… equivocado. E toda a equipa liderada pelo médico Pedrinho se mantinha abismada num mutismo… de espanto. O Dr. Pedrinho soçobrava ao peso da memória de dezenas de moribundos, no leito de morte, como se quisessem despedir-se, olhando-o com estranheza,selando com o silêncio da morte palavras que teriam dito se o reconhecessem. Alguns fixavam-no e até pareciam acusá-lo de estarem a ser despedidos mas outros, nada disso.
Apesar da insuportável dor, não queria sequer tentar impedir que lhe viessem à memória as últimas palavras de uma criança de quatro anos, que tinha sido colhida por um comboio, quando tentava colocar uma pedra sobre o carril. Não fosse a demora em estabilizá-la na linha férrea e não teria escasseado o tempo para retirar-se em segurança, com as duas pernas a salvo e vitoriosa da ousadia.
Entrou no bloco operatório, na tarde de um domingo de festa. Por todo o lado, a subida à primeira divisão dos Convictos Futebol Clube era festejada por multidões embriagadas. Os médicos de urgência mal tiveram tempo para ouvi-la dizer, numa voz que os fez arrepiar «mamã, vamos brincar?».
Passados minutos, o corpo estava frio. O Dr. Pedrinho sentou-se no canto da sala, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cara entre as mãos. Por fim, assoou-se e, recompondo-se, perguntou à Dr.ª Vitória «está a pensar no que vamos dizer e no modo como vamos dizer aos pais? Eles estão lá fora… talvez com esperança». A Dr.ª Vitória acenou com a cabeça, afirmativamente.
A rádio local dedicou um programa especial à morte do Velha. O Amante de Catástrofes fez questão de prestar homenagem a esse homem de quem lhe disseram três coisas: que lhe chamavam Velha, que se apresentava como Alberto Caeiro e que era pastor de transístores. Abriu o programa com rajadas de metralhadora e, após um silêncio sepulcral, declarou, num tom declamatório «assalto e assassínio de um desconhecido».
Os dois repórteres, incumbidos de lhe trazerem notícias do Velha, foram as primeiras pessoas a ser informadas da sua morte, no hospital, onde se deslocaram para tentarem levá-lo ao estúdio para ser entrevistado.
Dois dias antes tê-lo-iam encontrado de perfeita saúde e teriam tido oportunidade de dar a conhecer um pouco da história da própria vida que ele fosse capaz de contar. Mas agora era tarde e ninguém poderia ajudá-los, nem com depoimentos. Por sua vez, as informações do hospital eram lacónicas. Até o nome que constava na ficha de internamento não era aquele pelo qual o Velha era conhecido. E diziam uma hora e uma data do falecimento, mas nenhuma referência ao nascimento, morada, naturalidade, ascendência…
Além disso, sabiam que tinha sido assaltado e agredido, depois das aulas à noite, a caminho de casa e que a polícia lavrou auto da ocorrência. As suas atenções, agora, estariam voltadas para a investigação e eventual descoberta do(s) autor(es) do(s) crime(s).
O quadro clínico do Velha agravara-se e não havia ninguém referenciado como familiar ou amigo a quem o hospital pudesse comunicar a situação. A última pessoa com quem ele tinha vivido falecera dois dias antes dele se despedir da Serra Alta e de, ao chegar a Pérolas Falsas, chorar de inconsolável tristeza. E já tinha passado perto de um ano.
Era a tia-avó Anja, abandonada à solidão, numa aldeia de mais de cem casebres vazios, de portas e janelas escancaradas, cada vez menos visitados pelos fantasmas da memória enferma ao ponto de a ensurdecer e cegar a maior parte do tempo, desde que se levantava até que adormecia.
Com o seu rebanho de transístores, o Velha distraía-se de a ver, àquela que o criara de pequeno, que não conheceu pai nem mãe, nem lhe disseram alguma vez se eram vivos.
Com os anos, ele cresceu e a tia, envelhecendo, deixou, pouco a pouco, de o reconhecer. O Velha não saberia dizer a idade com que ela, arrastando o pesado corpo, no inverno, se deslocava para onde houvesse sol e, no verão, para onde a água fresca cantasse na fonte.
E não sendo capaz de, por si só, regressar a casa era ele quem, incerto de ser ouvido, a guiava, falando todo o tempo do doloroso e lento percurso sobre calhaus rolados, certamente pré-históricos, até aos cinco tormentos que era subirem cinco degraus de granito da escada desmantelada da entrada. A tia-avó, sem poder comentar, gemia e chorava, amparada ao sobrinho-neto e ao cajado cujas marcas da passagem do tempo haviam sido já por este apagadas. Quando, finalmente, chegavam à cozinha ela esperava que ele pusesse na mesa algum alimento para debicarem.
Também foram assim os derradeiros momentos da vida dessa mulher de quem não se sabe se chegou a pensar que o mundo existia para lá da Serra Alta.