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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVII

Hilário: as águias e os grifos habitam os lugares mais altos.

Amiga: como nós, agora, aqui, a invadir o espaço deles.

Hilário: é isso, a águia estava ali pousada para tentar proteger, talvez o ninho.

Amiga: águia ou grifo, não sabemos, mas pousam sempre onde podem ter a melhor perspectiva

Hilário: grande ideia a tua, agora que já se foi para outro lugar, vamos lá ver se descobrimos a razão pela qual pousou ali, naquele ponto.

Amiga: afinal ainda temos mundo para explorar.

Hilário: guiados pelas águias.

Amiga: ou grifos, não sabemos.

Hilário: o céu está tingido de cinza e cobre. O moinho permanece imóvel, como se escutasse o que dizemos.

Amiga: à medida que avançamos em direção ao sítio do grifo, ou da águia, o moinho vai ficando mais ao fundo, envolto em sombra.

Hilário: esta luz suave, quase crepuscular, parece emanar dos teus olhos.

Amiga: eu digo que emana das tuas palavras.

Hilário: não temes ser dissolvida no eco do que pensas?

Amiga: chegamos ao sítio em que avistamos o grifo, ou a águia, pousado a observar-nos. Reparei nesta rocha pontiaguda que aponta para o infinito.

Hilário: daqui podemos ver um pouco daquilo que essa ave enigmática via.

Amiga: os nossos olhos têm um alcance muito mais reduzido e, quanto à mente dessa ave, espero que nos seja favorável dando pistas como a que nos trouxe a este ponto.

Hilário: aqui o tempo chama de volta ao que nunca deixou de ser.

Amiga: a minha avó apontava para o topo das montanhas e dizia que quem chegasse ali não poderia regressar.

Hilário: onde estavas quando a tua avó disse isso?

Amiga: estava com ela, a tentar chegar aqui, ao topo das montanhas.

Hilário: não há começo sem perda, nem fim sem memória. Agora estamos aqui, onde ela almejou chegar, mesmo sem saber o que isto seria.

Amiga: aqui a memória e a liberdade não servem para nada e nisso a minha avó estava certa. Ninguém pensa em liberdade numa ilha em que não há mais ninguém.

Hilário: gosto muito de ti, mas não é para abusares. Aqui, ninguém está sozinho. Ou por acaso serei eu a tua sombra?

     Carlos Ricardo Soares

 


domingo, 5 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVI

Hilário: se o moinho falasse, o que nos diria?!

Amiga: assim o soubéssemos interpretar, porque ele é um documento que fala à maneira dos documentos.

Hilário: ele parece dizer que viemos depois, com passos alheios, e que, sem pedir licença, nos sentamos onde o silêncio de outros repousava.

Amiga: talvez depois de terem rido alto ou chorado em segredo, talvez antes de perderem a memória.

Hilário: se houvesse um rascunho da história deste moinho que alguém tivesse encontrado...

Amiga: mesmo escrito por mãos que nunca souberam escrever, quem sabe?!

Hilário: ou rasgado por mãos que nunca souberam ler, quem sabe?!

Amiga: seríamos sempre confundidos com os que passaram por aqui sem entenderem o que é este lugar.

Hilário: a fragilidade está em quem pensa, em quem sente, em quem hesita. O mundo exige pressa e firmeza, depressa e bem, enquanto tu, querida amiga, tentas caminhar com cuidado, não com receio de tropeçar, mas como quem pisa em folhas secas sem querer fazer barulho.

Amiga: sinto que os pensamentos, neste lugar, pesam mais do que os passos, como se estivessem a ser disputados por forças contrárias umas às outras, e cada palavra tivesse de ser arrancada de memórias que são de outras pessoas.

Hilário: talvez aquela águia, ou será um grifo?, esteja a observar-nos e a ler o nosso pensamento através do nosso embaraço.

Amiga: não sei se sou eu que toco de mais nas coisas, ou se são as coisas que tocam de mais em mim.

Hilário: a mim dói-me não tocar em nada.

Amiga: agora não consigo tirar os olhos daquela águia, ou grifo, que não tira os olhos de nós.

Hilário: talvez nos esteja a ver de outro mundo, ou seja um sinal de que atingimos o limite, a fronteira que separa a vida da morte.

Amiga: como se houvesse fronteira entre o que é e o que já não pode ser.

Hilário: como se este lugar fosse a margem, a última, de algo que não veremos.

Amiga: não sei. Sinto que o tempo aqui parece ter parado para nos deixar pensar.

Hilário: ou para nos deixar partir.

Amiga: mas partir para onde?

Hilário: talvez não seja partir. Talvez seja só deixar de procurar. Ou deixar de fugir.

Amiga: então esse grifo, ou águia, veio dizer que já não precisamos de andar?

Hilário: ou que já não podemos. Que o caminho acabou e o que resta é o silêncio. E que o silêncio, amiga… também é uma forma de estar vivo.

Amiga: ou uma forma de estar quase. Quase…Talvez seja isso que somos: quase a partir, quase a ficar, quase a entender.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLV


Amiga: neste lugar, Hilário…Começo a sentir uma estranheza que nunca tinha experimentado. Não sei o que faço aqui. E não quero partir. Não sei se há algum lugar para onde quisesse ir.

Hilário: mas tu sempre foste a que queria ir. Mesmo sem saber para onde.

Amiga: pois. Mas agora…É como se o mundo passado tivesse deixado de me chamar. E este lugar, tão fora de tudo…Parece dizer que não há urgência em continuar a procurar.

Hilário: talvez isso seja o que nos acontece quando paramos. Não é que o mundo desapareça, o barulho dele é que deixa de nos empurrar.

Amiga: mas não saber o que faço aqui…É como estar num palco sem papel para representar. Sem fala. Perante uma plateia cujos lugares vão sendo ocupados por fantasmas.

Hilário: e se for isso mesmo o que nos resta? Estar. Sem papel, sem roteiro, sem pressa. Só estar.

Amiga: mas não é pouco? Talvez os fantasmas desta imensa plateia que avistamos não estejam aqui para nos verem a atuar, mas para ouvirem as histórias do moinho.

Hilário: é pouco para quem quer ser personagem. Mas é muito para quem aceita ser pessoa.

Amiga: talvez os fantasmas desta imensa plateia não estejam aqui porque nos veem, mas porque ouvem.

Hilário: o moinho é só o lugar onde deixámos de fingir que sabíamos o que é liberdade.

Amiga: e talvez seja o primeiro lugar onde isso não nos cobra nada.

Carlos Ricardo Soares