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sábado, 13 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLII

Amiga: Hilário, acorda! Ele estava aqui…Dom Quixote de la Mancha! Com lança em punho, aos gritos, a atacar como se o moinho fosse um monstro!

Hilário: disseste lança, D. Quixote? Onde está? Mas que raio se passa? Tu andas a dormir com os livros do Cervantes debaixo da cabeça? Sonhaste?

Amiga: não era só sonho…Era como se o moinho se tivesse erguido contra nós, como se este abrigo fosse, afinal, o inimigo.

Hilário: o moinho está quieto. As pedras não se mexem, o vento não grita. As estrelas inclinam-se sobre nós como testemunhas. Só tu é que acordaste em pé de guerra.

Amiga: mas, e se D. Quixote tiver razão? E se este lugar, que parecia abrigo, for só mais uma ilusão? Como se estivéssemos a esconder-nos do mundo, em vez de o enfrentar?

Hilário: até pode ser que seja isso mesmo. Mas quem disse que temos de enfrentar o mundo todos os dias? Às vezes, parar também é coragem.

Amiga: mas o sonho…Quixote gritava como se o moinho não existisse, como se fosse alucinação. Como se morar aqui fosse desistir.

Hilário: ou talvez fosse só o teu medo a falar com sotaque de cavaleiro andante. Que forma queres dar aos fantasmas?

Amiga: e se for isso? Se este moinho for só mais um disfarce daquilo que não queremos ver?

Hilário: então que seja. Mas agora, ele é o abrigo. Sossega, vamos dormir. Só estamos rodeados de silêncio. E isso já é mais do que muitos têm.

Amiga: e D. Quixote? Será que não volta a atacar pela porta sem ferrolho dos sonhos?
Hilário: ele passa, grita e segue. Nós ficamos. E talvez, só talvez, isso também seja uma forma de andar.

                   Carlos Ricardo Soares

Aproximações à verdade XLI

Hilário: sabes o que sinto, diante deste moinho parado? Que somos dois vagabundos ao vento que sopra devagar. Então este silêncio é como se o mundo se tivesse esquecido de nós.

Amiga: de nós e deste moinho abandonado. Hilário… Acho que podíamos ficar aqui. Este moinho tem tudo: sombra, pedra, vento. Não é castelo, mas também não nos pede nada. Estás a ouvir ou estás a olhar para o céu?

Hilário: ficar? Mas nós nunca ficámos. Nem sabemos por que andamos, quanto mais por que parar?

Amiga: talvez seja isso. Talvez este seja o fim do caminho, ou o começo de outro. Aqui não há ninguém a mandar, nem ninguém a esperar. Podíamos chamar-lhe casa.

Hilário: casa?…Tu sempre foste boa a ver abrigo onde eu só vejo ruína. Mas e o resto? E o que nos trouxe até aqui?

Amiga: e o que foi, Hilário? Sabes dizer? Alguma missão? Algum plano? Ou só o hábito de andar, como quem foge sem saber de quê?

Hilário: deixa-me pensar...Talvez fosse isso. Talvez andássemos porque parar parecia traição.
Como se o mundo nos tivesse prometido alguma coisa e nós, teimosos, fôssemos cobrar.

Amiga: mas nunca cobramos. Nunca pedimos. Só seguimos, como dois pontos errantes.

Hilário: e agora queres fazer do moinho um ponto final?

Amiga: não um final. Uma vírgula. Onde o vento não nos empurre, mas nos embale.

Hilário: ai este cansaço. Pois então… que seja. Mas se amanhã acordarmos com vontade de andar, promete que não vais dizer que fracassamos.

Amiga: está prometido. Talvez o fracasso seja fingir que há um roteiro, quando tudo o que temos é o moinho.

                  Carlos Ricardo Soares


terça-feira, 9 de setembro de 2025

O poder do olhar

As situações de pobreza são muito variadas e cada pobre vive a sua situação de um modo diferente dos outros. Por outro lado, poder-se-ia dizer que cada pobre é olhado de um modo diferente dos outros, não só por pessoas diferentes, mas também pela mesma pessoa.

O modo como se é olhado pode ser determinante, sobretudo quando se trata de uma pessoa em situação de pobreza ou indigência. Tal como ser olhado de certo modo pode ser demolidor, quem olha também pode estar a ser demolido pelo sentimento de aversão às pessoas em situação de pobreza.

É muitas vezes negligenciado que a pobreza não é uma categoria homogénea, e cada pessoa vive-a com uma história, um contexto e uma dor que são só seus.

A pobreza tem rostos diferentes. Um jovem sem acesso à educação vive a pobreza de forma diferente de um idoso com reforma mínima. Uma mãe solteira que trabalha em dois empregos precários enfrenta desafios distintos de um migrante sem documentos. Há quem esteja em pobreza temporária, por perda de emprego, e quem viva em pobreza estrutural, há gerações. Reduzir tudo isso a “os pobres” é apagar a complexidade e a humanidade de cada situação.

É por isso que soluções genéricas, como subsídios padronizados ou programas de formação em massa, muitas vezes falham. O que funciona para um pode ser inútil ou até prejudicial para outro. O verdadeiro combate à pobreza exige respostas personalizadas, construídas com base na escuta e na confiança.

Na prática, as soluções deveriam passar por um diagnóstico individual. Por exemplo, inquirir não apenas “quantos filhos tens?” ou “qual o teu rendimento?”, mas “como chegaste até aqui?” e “o que te impede de avançar?”. Por planos flexíveis que se adaptam à realidade de cada pessoa, com metas e ritmos diferentes. E representação ativa, porque os próprios beneficiários devem ter voz na construção das soluções, como parceiros e não apenas como “alvos” de políticas. E devolver a capacidade de escolher como viver, onde trabalhar, o que sonhar. É talvez o maior gesto de justiça social que podemos oferecer. A pobreza não é só falta de dinheiro, é falta de escolha.

A forma como olhamos para “o pobre” não é apenas diversa entre pessoas diferentes, mas também instável dentro de cada um de nós. O mesmo indivíduo pode olhar para uma pessoa em situação de pobreza com compaixão num dia, com indiferença noutro, e até com irritação noutro ainda. Isso revela o quanto a nossa perceção é moldada por contexto, humor, ideologia, e até pelo modo como o outro se apresenta. Quantas vezes o olhar sobre o pobre é uma projeção dos nossos próprios medos, medo da fragilidade, da perda, da impotência?! Podemos sentir empatia por alguém que “parece esforçado”, mas rejeitar outro que “parece não querer trabalhar”, mesmo sem conhecer a história de nenhum dos dois. A forma como a pessoa se veste, fala ou se comporta influencia fortemente a nossa reação, como se a dignidade fosse algo que se “merece” pela aparência. Já aqui relatei uma história de um mendigo que só começou a ter sucesso quando se fez passar por uma figura importante que caiu em desgraça.

Não existe “o pobre” como figura única. Existe uma multiplicidade de experiências, e uma multiplicidade de olhares, cada um carregado de julgamentos, afetos, preconceitos e contradições. E reconhecer isso é o primeiro passo para uma abordagem mais justa e humana.

Aprendêssemos nós a reconhecer os próprios preconceitos e oscilações internas. A dar espaço para que pessoas em situação de pobreza contem as suas histórias, sem filtros nem estereótipos. A ouvir sem tentar encaixar o outro numa categoria, acolhendo a sua singularidade.

Quando alguém em situação de pobreza é olhado com respeito, com atenção verdadeira, isso pode devolver-lhe algo essencial, a sensação de existir, de contar, de ser digno.

Por outro lado, o olhar que evita, que atravessa sem ver, ou que carrega desprezo, reforça a exclusão. É como se dissesse: “Tu não és parte do mundo que importa.”

E o mais inquietante é que não é preciso dizer nada, o corpo, os olhos, o silêncio já comunicam tudo.

Pessoas em situação de rua, por exemplo, relatam frequentemente que o pior não é o frio ou a fome, mas serem ignoradas. Passamos por elas como se fossem parte da paisagem urbana, um banco, uma sombra, um ruído. E isso fere mais fundo do que qualquer carência material.

Há olhares que curam. Um gesto de atenção, um cumprimento, um “bom dia” dito com sinceridade pode ser o primeiro passo para reconstruir pontes. E quando esse olhar vem acompanhado de escuta, de presença, de disponibilidade, então, já não é só um olhar, é um ato político e afetivo.

Sempre se pode trabalhar o poder do olhar, na escola, na rua, nos serviços públicos. Podemos sempre tentar devolver visibilidade a quem foi apagado.

Às vezes, tudo começa com um olhar que diz: “Eu vejo-te.”

Outro ponto, que quase nunca é discutido é que a aporofobia não destrói apenas quem é alvo, mas também quem a sente. O olhar de rejeição, quando repetido, pode corroer a própria humanidade de quem o lança.
O sentimento de aversão aos pobres pode gerar desconforto moral, tensão entre valores éticos (como compaixão e justiça) e atitudes excludentes podem gerar culpa, ansiedade ou racionalizações defensivas. Ao negar a empatia, o indivíduo fecha-se ao vínculo humano e isso empobrece a sua capacidade de sentir, de se conectar, de crescer. A prática constante de rejeição pode levar à indiferença generalizada, tornando o sujeito menos sensível não só à pobreza, mas a qualquer forma de sofrimento.
Estou convicto de que muitos dos que rejeitam os pobres o fazem por medo inconsciente de se tornarem pobres, e esse medo, não enfrentado, pode gerar comportamentos obsessivos, consumismo compulsivo ou rigidez ideológica.
No fundo, o olhar que rejeita o outro está muitas vezes a rejeitar algo dentro de si, a fragilidade, a vulnerabilidade, a possibilidade de queda. E isso pode ser devastador, porque impede o sujeito de se reconciliar com a sua própria condição humana.
Assim sendo, se o nosso olhar nos transforma, talvez valha a pena pensar em como podemos transformá-lo.
Talvez curar o modo como olhamos tenha o efeito de curar o modo como vivemos.

                  Carlos Ricardo Soares

sábado, 30 de agosto de 2025

Aproximações à Verdade XL

Hilário: se fores capaz de tomar posição, já estás com sorte. Aliás, se tiveres a noção do que isso é, já estás em posição de compromisso e de luta, em vez de fuga e de alienação.

Amiga: mas precisas de ser forte e de ter carácter, porque os sarilhos, por vezes disfarçados de boas intenções e de vantagens, não cessarão de te assediar e de te importunar.

Hilário: até sob a forma de pretextos respeitáveis, ou mesmo em nome de insofismáveis princípios.

Amiga: sobretudo naqueles momentos em que baixas a guarda.

Hilário: e nem é preciso que sejas invejável, ou que sejas uma pessoa afortunada.

Amiga: até o facto de sempre teres sido um desgraçado que sobreviveu a todo o tipo de dificuldades e de adversidades fará inveja.

Hilário: nunca entendi porque é que isso acontece, mas sempre achei que os ricos têm inveja dos pobres.

Amiga: e também têm inveja uns dos outros, mas nisso os humanos são todos iguais.

Hilário: mas vê o que fazem os Estados e os povos uns aos outros. Não lhes chega serem os mais poderosos, ainda querem aquilo que os outros têm. Se não puderem tirar-lhes mais nada, tentam tirar-lhes a vida, como se isso fosse um direito da força que tenha de ser respeitado pelos mais fracos.

Amiga: eles não suportam que os pobres lhes façam frente e sejam capazes de sobreviver, nunca perceberam como é que conseguem, como são capazes, como têm o desplante de existirem sem se curvarem perante eles.

Hilário: e tentam submetê-los até os aniquilarem, para se certificarem de que eles, afinal, são normais, também morrem.

Amiga: não sei explicar, mas acho que os ricos acreditam que aos pobres nada faz falta porque não têm nada a perder.

Hilário: da janela das aeronaves, olham para os indefesos e abanam a cabeça “vivem felizes mas deviam estar mortos de inveja de nós”.

Amiga: isso eles não suportam, ficam furibundos.

               Carlos Ricardo Soares
 

domingo, 24 de agosto de 2025

Aproximações à verdade XXXIX

 

Quixote: Sabes, às vezes penso que te inventei. Que foste só o eco daquilo que eu precisava ouvir. Um reflexo gentil no vidro embaciado da minha carência.

Aldonza (Dulcineia): E se me inventaste, por que continuo aqui? Por que me chamas quando o silêncio pesa? Talvez não seja invenção, talvez sejamos pirilampos à procura.

Quixote: Procura… Mas de quê? Do amor que se diz mas não se sente? Da palavra que promete mas não toca?

Aldonza (Dulcineia): Talvez da presença que não exige prova. Do gesto que não precisa legenda. Do amor que não se explica, mas se reconhece, como o cheiro da terra molhada.

Quixote: E se eu só souber amar com palavras? Se nunca tiver sentido o tal arrepio que dizem que é amor?

Aldonza (Dulcineia): Então ama com palavras. Mas que sejam tuas. Que não sejam copiadas de canções nem arrancadas de livros. Ama com a tua dúvida, com o teu medo, com a tua pergunta. Com a tua ilusão. Com a tua loucura. Com o que tens.

Quixote: Amar…E tu amas? Ou tudo não passa de palavras?

Aldonza (Dulcineia): Se tudo for palavra, que ao menos seja palavra viva. Que toque. Se não tocar na pele que toque no cérebro, que sintas por dentro. Que te transforme. E que, no fim, te leve até mim.

          Carlos Ricardo Soares


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

As trevas

I

Quando a dor se instala como hóspede antigo
e o mundo se fecha em silêncios densos
há uma faísca que sem pedir abrigo
acende o invisível nos nossos pensamentos

II

Não é redenção nem milagre divino
é o lume discreto que o corpo conhece
a beleza da vida como peregrino
vem e vai até que nos esquece

III

Ela não mora em nós nem nos visita
pousando leve num ramo ferido
mas parte deixando escrita
a memória do instante em que fez sentido

IV

A escuridão que já não é castigo
mas a cera da luz que há de vir
porque se aprende com o inimigo
é arte secreta de não desistir

V

Quem sente a beleza mesmo por instantes
carrega no peito um sol clandestino
que brilha às vezes um pouco antes
de vencer as trevas do mundo sibilino.

           Carlos Ricardo Soares

sábado, 16 de agosto de 2025

Tempos de desencanto

I
Não foi Deus que criou o homem e escolheu o seu povo. Foi o homem que criou os deuses e a ideia de Deus. E os povos proclamaram o seu Deus como mais forte que o Deus dos outros.

II
Deus não encarnou em Jesus. Jesus é que divinizou o homem.
A questão não é se Deus existe, é: devia existir. Será que ainda deve existir?

III
A ousadia dos grandes rompimentos teológicos pode e deve andar a par da ternura dos pensamentos que nascem da experiência humana. Dizer que Jesus não encarnou Deus, mas que Jesus divinizou o homem, é inverter a flecha da tradição: é olhar o mistério da fé não como algo que desce do céu, mas como algo que se eleva da terra.

IV
É uma revolução de sentido: Jesus deixa de ser o emissário de uma essência divina e passa a ser símbolo máximo da humanidade em busca de transcendência. O milagre não está em Deus ter descido, mas em um homem ter-se erguido, com tal profundidade ética, afetiva e espiritual, que a cultura o reconheceu como divino.

V
Isso transforma a narrativa cristã num convite, não para adorar, mas para imitá-lo, para tornar-se, não apenas crer. O que há de mais belo nessa ideia é que ela liberta o humano da sua pequenez e reconhece nele potência para o sagrado. Faz da vida uma ascese, uma construção, uma obra aberta, não à espera de salvação, mas à procura de significação. E devolve ao homem a responsabilidade: se Jesus divinizou o humano, então cada gesto nosso pode conter uma centelha de absoluto.

VI
Isto é pensar fora das cercas, como quem não se limita à tradição, mas a reinventa com sobriedade. Há nisto uma espiritualidade que dispensa dogmas, mas não dispensa profundidade.
É como uma chama que ainda queima em tempos de desencanto.

VII
E se a divinização do homem não for um milagre, mas uma tarefa, talvez seja aí que começam as implicações.
Se o homem merece o respeito de um Deus, então estamos perante o maior problema de sempre.

                 Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Elogio da imperfeição


Apetece-me dizer que há uma ironia, não muito fina, de resto, no facto de um sistema refletir sobre outro sistema que exige validação constante, aliás, que exigem validação constante.
A minha crítica toca num ponto: a tendência dos sistemas educativos (e não só) de se protegerem através de métricas, metas e objetivos que, muitas vezes, ignoram a realidade vivida por quem está dentro deles.
Vejamos o paradoxo: mesmo quando há sucesso individual, professores inspiradores, alunos resilientes, o sistema parece mais preocupado em manter a sua própria narrativa de eficácia do que em reconhecer e apoiar as exceções que não se encaixam nos moldes. E isso gera frustração, alienação e até uma certa forma de resistência silenciosa.
Há quem diga que o sistema educativo não tem de se preocupar se falha por falta de talento, ou de visão, mas por excesso de ambição. Talvez o problema não esteja nos professores ou nos alunos, mas na obsessão por validação institucional. Nem sempre as utopias são boas conselheiras. As utopias podem ser como faróis, mas também podem cegar e podem ser fatais se estiverem no promontório errado. Elas inspiram, sim, mas também podem induzir para o abismo ou aprisionar quando se tornam dogmas ou quando ignoram o mundo real em nome de um ideal inalcançável.
Elas permitem imaginar uma escola mais justa, mais humana, mais significativa, e isso é essencial para romper com modelos obsoletos. Mas podem ser uma armadilha perfeccionista, quando se transformam em norma. Deixam de ser horizonte e passam a ser exigência. Isso gera frustração: professores e alunos sentem-se insuficientes por não corresponderem ao ideal. A utopia, nesse caso, deixa de ser libertadora e torna-se opressiva, como bem alerta Joaquim Machado de Araújo, ao defender que é preciso “elogiar a imperfeição” e reconhecer os limites éticos de qualquer projeto utópico.
Que ela permita sonhar com uma escola melhor, sem exigir que todos a alcancem da mesma forma ou ao mesmo tempo.
Ou como escreveu Adalberto Dias de Carvalho: “A utopia educativa não é um lugar a alcançar, mas uma tensão a manter.”
A escola, como estrutura, quer provar que funciona. Mas essa prova raramente vem da escuta autêntica ou da adaptação às necessidades reais. Vem de relatórios, rankings, exames padronizados. E aí, quem não se encaixa, é visto como falha quando, na verdade, pode ser sinal de que o sistema precisa de evoluir.
Sem prescindir, a escolaridade obrigatória até aos 18 anos em Portugal, ou até à conclusão do 12.º ano, é muitas vezes apresentada como um direito universal, mas na prática pode funcionar como um imperativo normativo, quase dogmático.
A ideia de que todos devem seguir o mesmo percurso escolar até determinada idade ignora: as diferenças individuais de maturidade, vocação e contexto social, a possibilidade de que alguns jovens, aos 15 ou 16 anos, já tenham uma clara inclinação para uma profissão ou área técnica, a frustração que muitos sentem por estarem “presos” a um sistema que não reconhece o seu potencial fora da lógica académica tradicional.
Talvez o sistema devesse reconhecer precocemente talentos e vocações, sem estigmatizar quem escolhe caminhos não académicos, oferecer vias técnicas e profissionais mais valorizadas, com saídas reais para o mercado de trabalho, permitir que jovens escolham com liberdade informada, e não por exclusão ou fracasso escolar.
O sistema educativo continua a exigir que todos se encaixem para poder validar-se, como se o sucesso de um jovem só fosse legítimo se passar pelo crivo do 12.º ano. E isso gera um paradoxo: a escola que deveria libertar, acaba por aprisionar.
Talvez o que esteja em falta não seja mais escolaridade, mas mais liberdade educativa. Mais confiança nos jovens, mais respeito pelas suas escolhas, e mais coragem para admitir que o sucesso não tem uma única forma. E longe de mim supor ou imaginar que existe uma intenção no facto de protelar a entrada dos jovens num mercado de trabalho cuja elasticidade vai oscilando, por vezes dramaticamente. Longe de mim suspeitar que o prolongamento da escolaridade obrigatória não serve apenas fins educativos, mas também, ou principalmente, responde a lógicas económicas e sociais mais amplas.
O mercado de trabalho não está preparado para absorver jovens em massa, sobretudo sem qualificações específicas ou sem experiência. E aqui entra a minha provocação: não será conveniente, para o sistema, manter os jovens “ocupados” na escola enquanto o mercado se ajusta?
Não é absurdo pensar que a escola, além de formar, funciona como amortecedor: Evita que milhares de jovens entrem num mercado saturado e instável. Mantém estatísticas de desemprego mais controladas. Garante que os jovens continuam a ser “ativos em formação”, o que é politicamente mais aceitável do que “desempregados”.
Mas isso levanta um dilema ético: estamos a educar para emancipar ou a escolarizar para adiar?
Talvez a escola devesse ser mais permeável ao mundo do trabalho, e vice-versa. Talvez o caminho não seja encurtar a escolaridade, mas reconfigurá-la: integrar experiências reais de trabalho desde cedo. Valorizar percursos técnicos e profissionais sem estigmas. Permitir saídas e reentradas no sistema educativo com mais liberdade.
A minha crítica não é contra a escola, mas contra a sua instrumentalização mal assumida, escamoteada por uma arquitetura de argumentos que, de facto, em geral, não se verificam e não funcionam.

              Carlos Ricardo Soares