Apetece-me dizer que há uma ironia, não muito fina, de resto, no facto de um sistema refletir sobre outro sistema que exige validação constante, aliás,
que exigem validação constante.
A minha crítica toca num ponto: a tendência dos sistemas educativos (e não só) de se protegerem através de métricas, metas e objetivos que,
muitas vezes, ignoram a realidade vivida por quem está dentro deles.
Vejamos o paradoxo: mesmo quando há sucesso individual, professores inspiradores, alunos resilientes, o sistema parece mais preocupado em manter a sua própria narrativa
de eficácia do que em reconhecer e apoiar as exceções que não se encaixam nos moldes. E isso gera frustração, alienação e até uma certa forma de resistência
silenciosa.
Há quem diga que o sistema educativo não tem de se preocupar se falha por falta de talento, ou de visão, mas por excesso de ambição. Talvez o problema
não esteja nos professores ou nos alunos, mas na obsessão por validação institucional. Nem sempre as utopias são boas conselheiras. As utopias podem ser como faróis, mas também
podem cegar e podem ser fatais se estiverem no promontório errado. Elas inspiram, sim, mas também podem induzir para o abismo ou aprisionar quando se tornam dogmas ou quando ignoram o mundo real em nome de um
ideal inalcançável.
Elas permitem imaginar uma escola mais justa, mais humana, mais significativa, e isso é essencial para romper com modelos obsoletos. Mas podem ser uma armadilha perfeccionista,
quando se transformam em norma. Deixam de ser horizonte e passam a ser exigência. Isso gera frustração: professores e alunos sentem-se insuficientes por não corresponderem ao ideal. A utopia, nesse
caso, deixa de ser libertadora e torna-se opressiva, como bem alerta Joaquim Machado de Araújo, ao defender que é preciso “elogiar a imperfeição” e reconhecer os limites éticos de qualquer projeto utópico.
Que ela permita sonhar com uma escola melhor, sem exigir que todos a alcancem da mesma forma ou ao mesmo tempo.
Ou como escreveu Adalberto Dias de Carvalho: “A utopia educativa não é um lugar a alcançar, mas uma tensão a manter.”
A escola, como estrutura, quer provar que funciona. Mas essa prova raramente vem da escuta autêntica ou da adaptação às necessidades reais. Vem de relatórios,
rankings, exames padronizados. E aí, quem não se encaixa, é visto como falha quando, na verdade, pode ser sinal de que o sistema precisa de evoluir.
Sem prescindir, a escolaridade obrigatória até aos 18 anos em Portugal, ou até à conclusão do 12.º ano, é muitas vezes apresentada
como um direito universal, mas na prática pode funcionar como um imperativo normativo, quase dogmático.
A ideia de que todos devem seguir o mesmo percurso escolar até determinada idade ignora: as diferenças individuais de maturidade, vocação e contexto social,
a possibilidade de que alguns jovens, aos 15 ou 16 anos, já tenham uma clara inclinação para uma profissão ou área técnica, a frustração que muitos sentem por estarem
“presos” a um sistema que não reconhece o seu potencial fora da lógica académica tradicional.
Talvez o sistema devesse reconhecer precocemente talentos e vocações, sem estigmatizar quem escolhe caminhos não académicos, oferecer vias técnicas
e profissionais mais valorizadas, com saídas reais para o mercado de trabalho, permitir que jovens escolham com liberdade informada, e não por exclusão ou fracasso escolar.
O sistema educativo continua a exigir que todos se encaixem para poder validar-se, como se o sucesso de um jovem só fosse legítimo se passar pelo crivo do 12.º
ano. E isso gera um paradoxo: a escola que deveria libertar, acaba por aprisionar.
Talvez o que esteja em falta não seja mais escolaridade, mas mais liberdade educativa. Mais confiança nos jovens, mais respeito pelas suas escolhas, e mais coragem
para admitir que o sucesso não tem uma única forma. E longe de mim supor ou imaginar que existe uma intenção no facto de protelar a entrada dos jovens num mercado de trabalho cuja elasticidade vai
oscilando, por vezes dramaticamente. Longe de mim suspeitar que o prolongamento da escolaridade obrigatória não serve apenas fins educativos, mas também, ou principalmente, responde a lógicas económicas
e sociais mais amplas.
O mercado de trabalho não está preparado para absorver jovens em massa, sobretudo sem qualificações específicas ou sem experiência. E aqui
entra a minha provocação: não será conveniente, para o sistema, manter os jovens “ocupados” na escola enquanto o mercado se ajusta?
Não é absurdo pensar que a escola, além de formar, funciona como amortecedor: Evita que milhares de jovens entrem num mercado saturado e instável. Mantém
estatísticas de desemprego mais controladas. Garante que os jovens continuam a ser “ativos em formação”, o que é politicamente mais aceitável do que “desempregados”.
Mas isso levanta um dilema ético: estamos a educar para emancipar ou a escolarizar para adiar?
Talvez a escola devesse ser mais permeável ao mundo do trabalho, e vice-versa. Talvez o caminho não seja encurtar a escolaridade, mas reconfigurá-la: integrar
experiências reais de trabalho desde cedo. Valorizar percursos técnicos e profissionais sem estigmas. Permitir saídas e reentradas no sistema educativo com mais liberdade.
A minha crítica não é contra a escola, mas contra a sua instrumentalização mal assumida, escamoteada por uma arquitetura de argumentos que, de
facto, em geral, não se verificam e não funcionam.
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