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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Elogio da imperfeição


Apetece-me dizer que há uma ironia, não muito fina, de resto, no facto de um sistema refletir sobre outro sistema que exige validação constante, aliás, que exigem validação constante.
A minha crítica toca num ponto: a tendência dos sistemas educativos (e não só) de se protegerem através de métricas, metas e objetivos que, muitas vezes, ignoram a realidade vivida por quem está dentro deles.
Vejamos o paradoxo: mesmo quando há sucesso individual, professores inspiradores, alunos resilientes, o sistema parece mais preocupado em manter a sua própria narrativa de eficácia do que em reconhecer e apoiar as exceções que não se encaixam nos moldes. E isso gera frustração, alienação e até uma certa forma de resistência silenciosa.
Há quem diga que o sistema educativo não tem de se preocupar se falha por falta de talento, ou de visão, mas por excesso de ambição. Talvez o problema não esteja nos professores ou nos alunos, mas na obsessão por validação institucional. Nem sempre as utopias são boas conselheiras. As utopias podem ser como faróis, mas também podem cegar e podem ser fatais se estiverem no promontório errado. Elas inspiram, sim, mas também podem induzir para o abismo ou aprisionar quando se tornam dogmas ou quando ignoram o mundo real em nome de um ideal inalcançável.
Elas permitem imaginar uma escola mais justa, mais humana, mais significativa, e isso é essencial para romper com modelos obsoletos. Mas podem ser uma armadilha perfeccionista, quando se transformam em norma. Deixam de ser horizonte e passam a ser exigência. Isso gera frustração: professores e alunos sentem-se insuficientes por não corresponderem ao ideal. A utopia, nesse caso, deixa de ser libertadora e torna-se opressiva, como bem alerta Joaquim Machado de Araújo, ao defender que é preciso “elogiar a imperfeição” e reconhecer os limites éticos de qualquer projeto utópico.
Que ela permita sonhar com uma escola melhor, sem exigir que todos a alcancem da mesma forma ou ao mesmo tempo.
Ou como escreveu Adalberto Dias de Carvalho: “A utopia educativa não é um lugar a alcançar, mas uma tensão a manter.”
A escola, como estrutura, quer provar que funciona. Mas essa prova raramente vem da escuta autêntica ou da adaptação às necessidades reais. Vem de relatórios, rankings, exames padronizados. E aí, quem não se encaixa, é visto como falha quando, na verdade, pode ser sinal de que o sistema precisa de evoluir.
Sem prescindir, a escolaridade obrigatória até aos 18 anos em Portugal, ou até à conclusão do 12.º ano, é muitas vezes apresentada como um direito universal, mas na prática pode funcionar como um imperativo normativo, quase dogmático.
A ideia de que todos devem seguir o mesmo percurso escolar até determinada idade ignora: as diferenças individuais de maturidade, vocação e contexto social, a possibilidade de que alguns jovens, aos 15 ou 16 anos, já tenham uma clara inclinação para uma profissão ou área técnica, a frustração que muitos sentem por estarem “presos” a um sistema que não reconhece o seu potencial fora da lógica académica tradicional.
Talvez o sistema devesse reconhecer precocemente talentos e vocações, sem estigmatizar quem escolhe caminhos não académicos, oferecer vias técnicas e profissionais mais valorizadas, com saídas reais para o mercado de trabalho, permitir que jovens escolham com liberdade informada, e não por exclusão ou fracasso escolar.
O sistema educativo continua a exigir que todos se encaixem para poder validar-se, como se o sucesso de um jovem só fosse legítimo se passar pelo crivo do 12.º ano. E isso gera um paradoxo: a escola que deveria libertar, acaba por aprisionar.
Talvez o que esteja em falta não seja mais escolaridade, mas mais liberdade educativa. Mais confiança nos jovens, mais respeito pelas suas escolhas, e mais coragem para admitir que o sucesso não tem uma única forma. E longe de mim supor ou imaginar que existe uma intenção no facto de protelar a entrada dos jovens num mercado de trabalho cuja elasticidade vai oscilando, por vezes dramaticamente. Longe de mim suspeitar que o prolongamento da escolaridade obrigatória não serve apenas fins educativos, mas também, ou principalmente, responde a lógicas económicas e sociais mais amplas.
O mercado de trabalho não está preparado para absorver jovens em massa, sobretudo sem qualificações específicas ou sem experiência. E aqui entra a minha provocação: não será conveniente, para o sistema, manter os jovens “ocupados” na escola enquanto o mercado se ajusta?
Não é absurdo pensar que a escola, além de formar, funciona como amortecedor: Evita que milhares de jovens entrem num mercado saturado e instável. Mantém estatísticas de desemprego mais controladas. Garante que os jovens continuam a ser “ativos em formação”, o que é politicamente mais aceitável do que “desempregados”.
Mas isso levanta um dilema ético: estamos a educar para emancipar ou a escolarizar para adiar?
Talvez a escola devesse ser mais permeável ao mundo do trabalho, e vice-versa. Talvez o caminho não seja encurtar a escolaridade, mas reconfigurá-la: integrar experiências reais de trabalho desde cedo. Valorizar percursos técnicos e profissionais sem estigmas. Permitir saídas e reentradas no sistema educativo com mais liberdade.
A minha crítica não é contra a escola, mas contra a sua instrumentalização mal assumida, escamoteada por uma arquitetura de argumentos que, de facto, em geral, não se verificam e não funcionam.

              Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Que diz Isadora Azur IV

IV

Com voz serena e olhos que não fogem
Isadora Azur diz que
às vezes acha que o amor que quer
não pode ser dito.
Há frases que não pedem resposta
apenas bênção.
Que se guardam
não como segredo
mas como coisa que ainda está a ser revelada.
Não sabia por quem esperava
e talvez nem esperasse por alguém
talvez esperasse por uma história que a incluísse.
Frases sem destinatário
mas cheias de tom.
Porque para ela
se o amor não podia ser dito
talvez pudesse ser ensaiado.
Como fazem os poetas.
Como fazem os loucos.
Como fez Quixote
que amou antes de saber se era possível.

          Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Que diz Isadora Azur II

II

Isadora Azur não se move por cortesia ou curiosidade

mas porque a poesia a convoca com verdade suficiente

para não querer sair:

“Há histórias que julgamos ler de fora

mas sem pedir licença elas passam a escrever-se por dentro.

Hoje acordei e percebi que já não sou leitora.

Sou personagem.

Mesmo que o enredo não saiba onde termina

há beleza em saber que, por um instante,

a ficção deixou de me proteger

porque começou a tocar-me.”

                                              Carlos Ricardo Soares

 


quinta-feira, 31 de julho de 2025

Que diz Isadora Azur V

V

Isadora Azur diz que
Aldonza não era a camponesa
que sonhou ser Dulcineia.
Era espelho.
Era gesto reconhecido num mundo que
insistia em pedir prova antes de conceder afeto.
Encontrou em Quixote não a loucura
mas a possibilidade:
“alguém que vê beleza onde o mundo só oferece poeira.”
“Se sou Aldonza
não me salvem
Olhem-me.
Mas vejam-me com a lucidez de quem escolhe delirar
com consciência.”
“Que me vejam como quero ser vista.
E que eu veja no amor
mais do que uma armadura.”
O amor que imaginava não era urgência
era investigação.
Isadora Azur não se iludia com heroísmos.
Sabia que o amor pode ser castelo ou vento
mas ela procurava quem soubesse habitar a hipótese
mesmo que fosse só por uma página.

                    Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Que diz Isadora Azur III

 III

Isadora Azur diz que 
às vezes sonha 
com um abraço 
que não seja fotografável.
A vida, para ela, não é palco, é coreografia.
E ela dança com precisão.
O que está em redor não diz quem ela é
reflete quem ela sabe ser
Não está à procura de salvação interior.
Basta-lhe honrar o mundo com
A sua melhor versão
Vivendo a superfície como essência.
“Dizem que sou rasa 
Mas a profundidade deles parece um pântano.
Eu prefiro a superfície que a luz toca
Onde cada gesto é limpo
E cada contorno tem nome.”
Ela não é vazia
É cheia de forma
A desordem do mundo não a contamina.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Que diz Isadora Azur I

I

Como quem inicia o erro necessário

que a fará existir para além da beleza ideal

diz Isadora Azur

Já não me preservo na distância

na forma que não se toca

no gesto que não falha

fui templo mas não peregrina

o ideal foi meu modo de ordenar o caos

amar sem tocar foi o dom

que me protegia da vulgaridade

mas agora pressinto o custo do sublime

ele exige que eu seja escultura

que negue o tremor que me faria humana

quero que me desejem

não para possuir-me

mas para que eu exista fora da projeção

se o desejo me quebrar

que seja com poesia

que me quebre.

(Isadora Azur já não teme a manipulação emocional

porque prefere a vulnerabilidade

à perfeição sem resposta).

         Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 11 de julho de 2025

À distância que convém


Tudo deve ser visto

À distância que convém


A noite não acoita as luzes

Mas oculta os movimentos

Da maré a subir

E as estrelas cintilam

No escuro

Que é onde se podem ver


Por mais que nos separe

É a distância que torna possível

Olhar para um abismo

Que fica do lado de fora

Sem deixar de estar

Lá dentro

No interior de nós.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Aqui jaz um homem que tinha razão


Vi-vos passar

com os olhos cheios

de luzes

e as mãos quase sempre ocupadas

por objetos

ofuscados por promessas

alheios ao esplendor dos grifos

e das águias nas alturas

planando sobre o eco dos vales

e a sombra das suas asas

projetada pelo sol nos rios

ninguém vos culpe por não verdes

o mundo

ensinou-vos a correr antes de olhar

mas aqui debaixo desta pedra

onde já não corro nem quero

não me interessa ter razão

nem espero que alguém

algum um dia

pare para levantar os olhos

e a seus pés

neste lugar esquecido

acenda uma vela

e deixe uma luz

a tremer

entre o que foi dito

e o que ficou por dizer.

              Carlos Ricardo Soares