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sábado, 23 de maio de 2015

A luz

A luz é diáfana
a manhã sinto-a
minha
o ar
pela primeira vez penso-o
mais íntimo do que nunca
Esta relação química literalmente
com o mundo
é a mais encantadora das histórias
das mais imaginárias
e não menos destituídas de fantasia
A minha atenção vibra com o que me envolve
O pior é a carga dos pensamentos
A agenda e não só
Tenho compromissos
E o menor deles não é o compromisso que tenho com a verdade
Para onde quer que vá
não consigo escapar a mim mesmo. 


segunda-feira, 4 de maio de 2015

Morrer de amores


O que sobrevive 
à pré-história do amor 
o amor
a história do amor
ou as razões para morrer 
de amores?




sexta-feira, 1 de maio de 2015

Como nunca


O mais difícil  
são as distâncias
de impossíveis palavras 
no lugar do que é dito
escutar fonemas
como outras águas
brotando 
de um invólucro fissurado 
ver que há o fora das coisas
e que não é possível
falar das coisas por dentro
por não terem lá nada
ou nada mais
que o nosso pensamento
de ausências
difíceis.

sábado, 28 de março de 2015

O poema


Independentemente dos significados, que em poesia pode ser o menos importante ou o menos interessante, o poema toma o leitor por alguém que se vê, inopinadamente, diante de verdades e cenários que se lhe escondiam e que ele, em sonhos, sempre soube que existiam. 

segunda-feira, 2 de março de 2015

Olhos de ver

Não vou entregar-me 
à tristeza
ela é asa 
cansada 
sobre o mar
seduz
a certeza do vento 
sopra
um mistério
empedernido 
não vou sequer escutar
não vou ter o prazer
da música
dos abismos
vou resistir 
ao apelo da tristeza
como quem resiste
ao adeus
e fica triste.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Podia ser
um laivo
do que nasce

a palavra
como o sol
nascente

a memória
confusa
iluminasse
o presente
podia ser
um laivo
de saudade.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Ficar no poema


Dói não poder 

ficar no poema
se fica num tempo 
inexplicável
como uma paisagem 
se nos depara
nos prende
numa viagem
que ainda não é de regresso. 


terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Mel e Sal


Mel não dorme 
Sal acorda 
Mel faz um balanço da sua vida
tem a percepção de que viveu obcecada
com sexo comida bebida guloseimas 
esconderijos sombras e penumbras
mais do que ações e intervenções sociais
como se tivesse vivido dentro de um filme
de uma narrativa destituída de outros valores que não fossem o afecto
o erotismo a sensualidade a gula
enfim todos os pecados 
tudo o mais que saísse disso lhe parecera sempre aborrecido
e insuportável 
entregava-se de preferência a devaneios sem fim
e procurava livros que lhe alimentassem essa espécie de vício
passou por todas as dependências de quem busca
o prazer antes de tudo 
e nunca se libertou de nenhuma 
nem quando corria perigo de vida 
e o médico alertava
de D. Quixote 
Mel nunca teria a alucinação do cavaleiro corajoso e valoroso
considerava essa faceta desinteressante
Mel não tinha nenhuma espécie de megalomania 
e nunca aspirara a outra grandeza 
que não fosse todas as formas de prazer
com o tempo 
tornou-se colecionadora de receitas de prazer 
e se dedicava algum tempo a isso 
e a hierarquizá-las 
era em vista do prazer
Mel não sentia prazer nela própria
nunca pensaria nem diria como o poeta 
“sinto-me confortável e feliz comigo próprio”
a felicidade e o prazer eram exteriores
estavam em coisas e pessoas
dentro dela havia a carência
o desejo a fome
a paixão o vício
e sentia raiva
sempre sentiu por haver tantos interditos
tantas proibições
tantos limites
tantos entraves
tantas obstruções
Mel achava que a cultura era uma tentativa de dar espaço a algo 
mais do que regras de conduta e objetivos económicos.