Hilário: sortudos são os que prescindem de mercado e de público, porque se contentam a si mesmos
Amiga: e há alguém assim?
Hilário: não sei, mas parece que concordas com a minha bem-aventurança
Amiga: estás a colocar uma questão dos diabos porque, se as pessoas se contentassem a si próprias, não se esforçavam tanto para ganhar os mercados e as aprovações dos outros
Hilário: o reconhecimento daquilo que se faz nem sempre acompanha o valor e o mérito daquilo que se faz
Amiga: tu passaste a vida inteira a preparar-te para fazeres o cristo nas argolas e, agora que deixaste as competições, de que é que te serve?
Hilário: eu ainda estou para perceber por que razão investi uma vida numa habilidade que só tem valor como espetáculo, se for bastante espetacular, caso contrário...
Amiga: nunca pensaste que estavas a desenvolver uma arte para teu próprio prazer e realização pessoal, como por exemplo, a poesia, ou a música?
Hilário: em momento algum pensei que passaria o resto da vida a divertir-me com as habilidades adquiridas na alta competição
Amiga: não é coisa que uma pessoa aprenda a fazer com o objetivo de se divertir e de ocupar os tempos livres
Hilário: ao menos, tu tiraste um curso e fizeste sempre tudo pelo prazer de satisfazer a tua curiosidade e de mostrares a ti mesma que eras capaz de algo importante
Amiga: deves estar a brincar, não?
Hilário: o mais importante é a satisfação e os frutos que podes colher daquilo a que te dedicas
Amiga: infelizmente, as pessoas falam muito nesse sentido, sem porem a tónica naquilo que fazem, se gostam ou não, se se sentem realizadas, se se sentem bem, para não dizer felizes.
Hilário: o que me faria feliz, não sei. O que me faz feliz é ter a possibilidade, em cada momento, de procurar e de obter satisfação para as necessidades e para aquilo que devo pensar e fazer
Amiga: também podes encontrar isso num emprego
Hilário: dadas as circunstâncias atuais, talvez tenhas razão. Mas depende muito mais do que são as minhas necessidades do que daquilo que posso fazer para as satisfazer
Amiga: seja como for, o problema de se contentar a si mesmo sem ser através dos outros, pelos outros, é algo enigmático e redutor e apresenta-se como hostil, mesmo que a intenção seja simplesmente prescindir dos outros, como se os aliviasses de um peso que, no fundo, tomas para ti, sem que te agradeçam.
Carlos Ricardo Soares
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